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Ponto final
Dúvida não há de que o instituto da concorrência introduzido no direito sucessório pelo novo Código Civil é ponto dos mais polêmicos. A dificuldade de leitura do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil é tamanha, que, na hipótese de o autor da herança ser casado pelo regime da comunhão parcial de bens, a doutrina o interpreta de maneiras diametralmente opostas. Uns afirmam que, se o falecido deixou bens particulares, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros e recebe parte da herança. Já outra corrente entende exatamente o contrário, ou seja, somente se o cônjuge falecido não deixar bens além da meação é que o viúvo concorre com os herdeiros que o antecedem na ordem de vocação hereditária. Mas as soluções preconizadas não se esgotam nessas duas possibilidades. Há quem diz que o cônjuge concorre exclusivamente com relação aos bens particulares, mas ainda há outros que sustentam que o direito à concorrência é só sobre os aqüestos.
Ainda que não se pretenda colocar um ponto final na discussão, imperiosa é uma nova leitura do texto legal, principalmente com os ricos subsídios que a discussão tem aportado ao debate.
O caput do artigo 1.829 do Código Civil estabelece a ordem de vocação hereditária, identificando em seus incisos os direitos dos herdeiros necessários (art. 1.845) e dos herdeiros legítimos (colaterais até o 4º grau, art. 1.939).
Em primeiro lugar, a lei (inciso I do art. 1.829) assegura o direito sucessório dos descendentes, concedendo, no entanto, ao cônjuge sobrevivente uma percentagem da herança. O dispositivo que assegura o direito à herança e à concorrência é claro: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente.
Esse verdadeiro estado condominial gerado entre filhos e viúvo sobre o acervo hereditário não é irrestrito. O artigo que elege os sucessores de primeiro grau e consagra o direito de concorrer já estabelece, em seu próprio bojo, exceções ao benefício vidual. As causas de afastamento do direito estão condicionadas ao regime de bens do casamento. Ou seja, o legislador, depois de consagrar o instituto da concorrência, abre exceções, identificando os regimes de bens que levam à exclusão do direito. Antes são apontados, de forma conjunta, os dois regimes de bens que afastam a concorrência. Depois, a lei refere outro regime de bens e, por meio de uma condicionante, identifica a variante que autoriza a concorrência.
A regra é a concorrência; e a não-concorrência é a exceção. A primeira ressalva ao direito é feita por meio da expressão “salvo se”, que assim deve ser lido: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este (o cônjuge sobrevivente) com o autor da herança pelo regime da comunhão universal, ou na separação obrigatória de bens (art. 1.641 – e não 1.640 – parágrafo único).
A parte final do mesmo dispositivo trata do direito à concorrência quando o casamento se rege pelo regime da comunhão parcial de bens. É aqui que se situa a controvérsia maior. Identificar, afinal, qual a hipótese em que há concorrência: se quando o de cujus tem bens particulares ou quando ele não tem bens particulares. Desse impasse só se pode sair atentando-se para o fato de que o sinal gráfico de ponto-e-vírgula secciona as diversas hipóteses.
Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, (...) se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.
Não se pode olvidar que a regra é a concorrência. Esse direito se sujeita a exceções, limitações de caráter restritivo. O legislador identifica as hipóteses em que o direito é afastado: (1) no regime da comunhão universal de bens e (2) no regime da separação obrigatória. No regime da comunhão parcial, a lei aponta a hipótese em que o direito é assegurado (3): quando houver bens particulares. A ressalva última decorre da duplicidade de situações que este regime contém (existência ou não de bens exclusivos), o que impõe tratamento diferenciado a cada modalidade. Em respeito à natureza mesma do regime legal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares no acervo hereditário.
A interpretação desse intrincado e pouco claro dispositivo legal não pode ser outra, sob pena de se subverter o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optar pelo regime da comunhão parcial (isto é, ao não firmar pacto antenupcial), quiseram garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento, assim como dos recebidos por doações ou herança.
Quando da dissolução da sociedade conjugal, os cônjuges desejam que os bens sejam partilhados desta maneira: cada um fica com seus bens particulares e divide-se o patrimônio adquirido durante a vida em comum. O fato de o casamento ultimar por separação, divórcio ou morte não pode permitir que a partição seja feita de forma diversa da eleita pelas partes. Aliás, essa foi a preocupação do legislador em fazer a ressalva em sede sucessória, para que se respeitasse a característica do regime de separação de bens: comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento (art. 1.658), excluindo-se da comunhão os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar (inc. I do art. 1.659).
Ainda que se questione a continuidade lógica da enumeração, o fato é que a lei identificou duas hipóteses em que afasta o direito de concorrer e apontou a permanência do direito ao tratar de modalidade que dispõe de dúplice situação por sujeita a regramento próprio.
Admitir possibilidade diversa, ou seja, que existe uma dupla negação em tal dispositivo legal, pelo uso das expressões “salvo se” e “ou, se” e sustentar o direito à concorrência somente se existirem bens particulares, é subverter o regime da comunhão parcial de bens; é atentar contra a vontade dos cônjuges; é afrontar a lógica a que deve sempre se ater o intérprete. Necessário visualizar a lei dentro do sistema, o artigo dentro da lei, e não se apegar a exacerbado tecnicismo formal, na tentativa de entender a lógica gramatical do que está escrito.
Basta figurar um exemplo para flagrar a incongruência do que vem sendo sustentado: alguém, tendo filhos e bens, vem a casar e recebe a herança de seu genitor. Quando de sua morte, o viúvo (que não é o genitor dos filhos do de cujus) recebe fração igual a cada um dos herdeiros. Ou seja, o cônjuge sobrevivente torna-se proprietário de parte da meação do finado e de parte da herança do sogro. Vindo o cônjuge a morrer, seu patrimônio – integrado dos bens do ex-marido – passará aos seus sucessores (seus filhos, seus pais, seu novo cônjuge ou seus irmãos ou sobrinhos), pois não reverterá aos órfãos o patrimônio que o pai havia amealhado sozinho, nem a herança do avô, que cairão em mãos de estranhos.
E, como não há qualquer regime de bens que impeça tal resultado, talvez a solução seja não casar, viver só ou em união estável, onde inexiste esse risco que, certamente, ninguém há de querer correr.
Tomara o legislador empreste uma redação mais clara ao novo instituto, única forma para se colocar na controvérsia um ponto final.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional – IBDFAM.
Ainda que não se pretenda colocar um ponto final na discussão, imperiosa é uma nova leitura do texto legal, principalmente com os ricos subsídios que a discussão tem aportado ao debate.
O caput do artigo 1.829 do Código Civil estabelece a ordem de vocação hereditária, identificando em seus incisos os direitos dos herdeiros necessários (art. 1.845) e dos herdeiros legítimos (colaterais até o 4º grau, art. 1.939).
Em primeiro lugar, a lei (inciso I do art. 1.829) assegura o direito sucessório dos descendentes, concedendo, no entanto, ao cônjuge sobrevivente uma percentagem da herança. O dispositivo que assegura o direito à herança e à concorrência é claro: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente.
Esse verdadeiro estado condominial gerado entre filhos e viúvo sobre o acervo hereditário não é irrestrito. O artigo que elege os sucessores de primeiro grau e consagra o direito de concorrer já estabelece, em seu próprio bojo, exceções ao benefício vidual. As causas de afastamento do direito estão condicionadas ao regime de bens do casamento. Ou seja, o legislador, depois de consagrar o instituto da concorrência, abre exceções, identificando os regimes de bens que levam à exclusão do direito. Antes são apontados, de forma conjunta, os dois regimes de bens que afastam a concorrência. Depois, a lei refere outro regime de bens e, por meio de uma condicionante, identifica a variante que autoriza a concorrência.
A regra é a concorrência; e a não-concorrência é a exceção. A primeira ressalva ao direito é feita por meio da expressão “salvo se”, que assim deve ser lido: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este (o cônjuge sobrevivente) com o autor da herança pelo regime da comunhão universal, ou na separação obrigatória de bens (art. 1.641 – e não 1.640 – parágrafo único).
A parte final do mesmo dispositivo trata do direito à concorrência quando o casamento se rege pelo regime da comunhão parcial de bens. É aqui que se situa a controvérsia maior. Identificar, afinal, qual a hipótese em que há concorrência: se quando o de cujus tem bens particulares ou quando ele não tem bens particulares. Desse impasse só se pode sair atentando-se para o fato de que o sinal gráfico de ponto-e-vírgula secciona as diversas hipóteses.
Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, (...) se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.
Não se pode olvidar que a regra é a concorrência. Esse direito se sujeita a exceções, limitações de caráter restritivo. O legislador identifica as hipóteses em que o direito é afastado: (1) no regime da comunhão universal de bens e (2) no regime da separação obrigatória. No regime da comunhão parcial, a lei aponta a hipótese em que o direito é assegurado (3): quando houver bens particulares. A ressalva última decorre da duplicidade de situações que este regime contém (existência ou não de bens exclusivos), o que impõe tratamento diferenciado a cada modalidade. Em respeito à natureza mesma do regime legal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares no acervo hereditário.
A interpretação desse intrincado e pouco claro dispositivo legal não pode ser outra, sob pena de se subverter o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optar pelo regime da comunhão parcial (isto é, ao não firmar pacto antenupcial), quiseram garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento, assim como dos recebidos por doações ou herança.
Quando da dissolução da sociedade conjugal, os cônjuges desejam que os bens sejam partilhados desta maneira: cada um fica com seus bens particulares e divide-se o patrimônio adquirido durante a vida em comum. O fato de o casamento ultimar por separação, divórcio ou morte não pode permitir que a partição seja feita de forma diversa da eleita pelas partes. Aliás, essa foi a preocupação do legislador em fazer a ressalva em sede sucessória, para que se respeitasse a característica do regime de separação de bens: comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento (art. 1.658), excluindo-se da comunhão os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar (inc. I do art. 1.659).
Ainda que se questione a continuidade lógica da enumeração, o fato é que a lei identificou duas hipóteses em que afasta o direito de concorrer e apontou a permanência do direito ao tratar de modalidade que dispõe de dúplice situação por sujeita a regramento próprio.
Admitir possibilidade diversa, ou seja, que existe uma dupla negação em tal dispositivo legal, pelo uso das expressões “salvo se” e “ou, se” e sustentar o direito à concorrência somente se existirem bens particulares, é subverter o regime da comunhão parcial de bens; é atentar contra a vontade dos cônjuges; é afrontar a lógica a que deve sempre se ater o intérprete. Necessário visualizar a lei dentro do sistema, o artigo dentro da lei, e não se apegar a exacerbado tecnicismo formal, na tentativa de entender a lógica gramatical do que está escrito.
Basta figurar um exemplo para flagrar a incongruência do que vem sendo sustentado: alguém, tendo filhos e bens, vem a casar e recebe a herança de seu genitor. Quando de sua morte, o viúvo (que não é o genitor dos filhos do de cujus) recebe fração igual a cada um dos herdeiros. Ou seja, o cônjuge sobrevivente torna-se proprietário de parte da meação do finado e de parte da herança do sogro. Vindo o cônjuge a morrer, seu patrimônio – integrado dos bens do ex-marido – passará aos seus sucessores (seus filhos, seus pais, seu novo cônjuge ou seus irmãos ou sobrinhos), pois não reverterá aos órfãos o patrimônio que o pai havia amealhado sozinho, nem a herança do avô, que cairão em mãos de estranhos.
E, como não há qualquer regime de bens que impeça tal resultado, talvez a solução seja não casar, viver só ou em união estável, onde inexiste esse risco que, certamente, ninguém há de querer correr.
Tomara o legislador empreste uma redação mais clara ao novo instituto, única forma para se colocar na controvérsia um ponto final.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional – IBDFAM.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM