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Um convite à reflexão sobre o papel do judiciário na superação do preconceito contra a homoafetividade
De Walter r. Fisher a Anthony Niedwiecki: um convite à reflexão sobre o papel do judiciário na superação do preconceito contra a homoafetividade na América do Norte e sua possível influência no Brasil
Rafael Calmon Rangel
Juiz de Direito no Espírito Santo
Mestrando em Direito Processual Civil na UFES
Ao que parece, pode-se afirmar com cada vez mais segurança que os direitos relacionados à homoafetividade vêm se consolidando no Brasil.
Talvez porque os brasileiros estejam deixando um pouco de lado a associação que sempre foi feita entre homossexualismo e uma série de características denotativas de tudo aquilo que seja repugnante aos olhos dos heterossexuais.
Não se nega que "depois daquele beijo" possivelmente tenha se podido olhar adiante, através talvez, e percebido que não existe nenhuma obscenidade no amor, como oportunamente percebido por Martha Medeiros[1].
Mas a resistência ainda existe e o debate é constante.
De sua parte, o legislador pouco ou nada faz, relegando ao Poder Judiciário uma intromissão legítima na seara legislativa, embora sob o olhar discordante de alguns, que insistem em ver nessa atuação, alguma espécie de ofensa ao primado contido no artigo 2º da Constituição da República.
Não se sabe ao certo até que ponto essa intromissão possa ser condenada, dada a inexistência de tutelas jurisdicionais eficazes para se forçar o Legislativo a legislar[2].
Na prática, porém, visualiza-se com bastante frequência a asseguração dos direitos das minorias por meio de pronunciamentos judiciais, o que decerto tem contribuído para o aumento da credibilidade dessa instituição, especialmente frente ao Governo Federal e ao Congresso Nacional[3].
Recentemente, intensos debates vêm sendo travados nas Cortes Superiores, envolvendo a extensão dos efeitos do reconhecimento das uniões homoafetivas e sua repercussão, por exemplo, sobre a desnecessidade de comprovação do esforço comum na aquisição patrimonial[4] e sobre o direito de inscrição de dependentes em plano de saúde[5].
Mas, a lista de objetivos é extensa, bastando ver o minucioso levantamento efetuado pelas Dras. Maria Berenice Dias e Mirian Correia, ainda na década passada, de vários direitos negados aos casais homoafetivos, dos quais muitos ainda se encontram pendentes de reconhecimento[6].
Considerando o congestionamento das casas legislativas e o panorama que se apresenta, possivelmente o Legislativo continuará andando a passos lentos nessa seara, relegando mais uma vez ao Judiciário a apreciação das questões a ela relacionadas.
Isso tudo demonstra como juízes e políticos se pautam em premissas completamente diferentes para avaliar os acontecimentos do cotidiano e suas possíveis repercussões na sociedade organizada.
Ainda mais surpreendente é saber que esse "fenômeno" não se restringe ao Brasil.
Em recente artigo científico, denominado "Save Our Children: Overcoming the Narrative that Gays and Lesbians are Harmful to Children"[7], esse assunto veio novamente à tona nos Estados Unidos da América, desta vez repleto de elementos fáticos e técnicos comprovando as assertivas lá lançadas.
O texto, de autoria do professor adjunto da John Marshall Law School de Chicago/EUA, Dr. Anthony Niedwiecki, e publicado no volume nº 21 do "Duke Journal of Gender Law & Policy"[8], faz uma análise detida sobre o papel do Poder Judiciário na evolução dos direitos homoafetivos naquele país, apesar da resistência do Legislativo e de determinados setores da sociedade, assentada sob os mais diversos (e falsos) argumentos.
Como ponto de partida, ele toma os fundamentos da teoria comunicativa denominada "paradigma narrativo", de autoria de Walter R. Fisher[9], para tentar demonstrar porque os julgadores estão mais propensos a questionar os argumentos contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto os eleitores são mais suscetíveis de acolher tais argumentos, na medida em que eles soarem coerentes às suas próprias experiências e valores pessoais.
De acordo com essa teoria, os leigos, como a maioria dos eleitores, avaliam as estórias que lhes são contadas pautados em suas próprias experiências, valores e concepções sobre moralidade, em um processo rotulado por ele como "racionalidade narrativa", ao passo que os julgadores possuem a habilidade técnica e aptidão para utilizarem a razão e lógica na avaliação desses mesmos argumentos.
Logo, argumentos estruturados coerentemente sob o ponto de vista da narrativa, estrutura, matéria e probabilidade possuiriam maior aptidão de convencer as pessoas leigas e influenciá-las a agir em conformidade com esse entendimento, ainda que os fundamentos utilizados fossem falaciosos, o que não necessariamente ocorreria no sistema judiciário.
A fim de comprovar que os elementos teoréticos utilizados por FISHER comportavam plena aplicação no sistema norte-americano, NIEDWIECKI inicia seu ensaio demonstrando como os opositores aos direitos de igualdade entre sexos desenvolveram toda uma campanha, suficientemente convincente para a sociedade da época (início dos anos 70), em torno dos possíveis prejuízos que os gays e lésbicas poderiam representar para as crianças, ao associá-los à pedofilia, abusos sexuais cometidos por padres contra meninos e o crescimento do número de casos de HIV/AIDS.
De acordo com a narrativa, negar direitos aos gays significaria a proteção da própria infância na América.
Sob o tendencioso título "Salvem nossas crianças" foi criada a primeira organização norte-americana destinada a barrar a equiparação de direitos, cujos fundamentos utilizados para angariar adeptos iam desde as acusações de que gays seduziam e molestavam crianças, até que eles necessitariam de recrutá-las para manter viva a "comunidade gay", pelo fato de não poderem procriar entre si.
Para se ter ideia da estratégia utilizada pelo "Salvem nossas crianças", um dos anúncios publicados pela organização em um jornal de Miami tinha a seguinte redação:
This recruitment of our children is absolutely necessary for the survival and growth of homosexuality—for since homosexuals cannot reproduce, they must recruit, must refresh their ranks. And who qualifies as a likely recruit: a 35-year old father or mother of two. . . or a teenage boy or girl who is surging with sexual awareness? (The Los Angeles Police Department recently reported that 25,000 boys 17 years old or younger in that city alone have been recruited into a homosexual ring to provide sex for adult male customers. One boy, just 12 years old, was described as a $1,000-a-day prostitute.)[10]
Em outro declarava-se publicamente a formação de uma cruzada contrária aos defensores da igualdade, sob o seguinte texto:
What these people really want, hidden behind the obscure legal phrases is the legal right to propose to our children that there is an acceptable alternate way of life. No one has a human right to corrupt out children. Prostitutes, pimps and drug pushers, like homosexuals, have civil rights, too, but they do not have the right to influence our children to choose their way of life. Before I yield to this insidious attack on God and his laws, and parents and their right to protect their children, I will lead such a crusade to stop it as this country has not seen before.[11]
Segundo o professor, não demorou para que essa campanha se robustecesse cada vez mais, devido à associação entre gays e a visível crise da HIV/AIDS que assolou a América nos anos 80, o debate travado em uma das maiores organizações de jovens dos EUA, os "Boy Scouts of America" e sua política de exclusão de gays, a emergência da organização conservacionista cristã "Moral Majority" e o clamor que rondava os escândalos envolvendo moléstias sexuais e igreja católica.
A única saída dos defensores dos direitos iguais continuava sendo a busca pela tutela jurisdicional, que, em sentido diametralmente oposto, passava a conferir tratamento igualitário em cada vez mais Estados.
Percebendo que o Judiciário examinava as reivindicações sob perspectiva completamente diversa do Legislativo, os opositores reforçaram sua atuação perante este órgão até conseguirem editar a conhecida Defense of Marriage Act - DOMA (Lei de Defesa do Matrimônio), sancionada pelo Presidente Bill Clinton em 1996, que definia o casamento como ato praticado entre um homem e uma mulher, proibindo o Governo Federal de reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo e desobrigando qualquer entidade político-administrativa dos Estados Unidos no mesmo sentido[12].
Daí por diante, a própria história se encarregou de demonstrar que as vitórias dos proponentes dos direitos iguais na seara judicial foram decisivas para a alteração da legislação em diversos estados, que passaram a admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda que ao arrepio da legislação federal, a qual somente veio a ser oficialmente declarada inconstitucional pela Suprema Corte dos Estados Unidos em meados do ano de 2013[13].
Ao longo do ensaio o professor demonstra que, como já era de se esperar, as alegações em torno dos potenciais prejuízos que os gays e lésbicas poderiam causar às crianças jamais foram comprovados; ao revés, pareceres elaborados por profissionais de diversas áreas, incluindo a mais respeitada associação de médicos pediatras da América, sinalizaram no sentido de que um dos fatores de maior repercussão na infância humana é a estabilidade do relacionamento dos responsáveis pela criação das crianças[14] e não suas respectivas orientações sexuais[15].
Com a aceitação cada vez maior por parte do Judiciário, os casais gays começaram a se tornar muito mais visíveis ao público em geral. Via de consequência, imagens positivas a respeito de uniões entre pessoas do mesmo sexo e do relacionamento delas com seus filhos emergiram e se tornaram parte da cultura e mídia americanas.
Não se nega que a conjuntura de nosso país seja completamente diversa da dos Estados Unidos da América; isso não impede que por aqui também se detectem reações semelhantes contra os direitos da igualdade, como diariamente exibido nos noticiários.
A sociedade deve estar atenta ao desenrolar dos fatos, acompanhando de perto os acontecimentos sociais, de preferência com o auxílio de dados estatísticos confiáveis, sob pena de sofrer semelhante manipulação por parte daqueles que conseguem elaborar um discurso aparentemente bem estruturado, embora carente de qualquer comprovação científica.
Neste ponto, é de se enaltecer o papel que o IBDFAM, por meio do corpo de juristas a ele associado, tem desempenhado nas conquistas obtidas por toda essa parcela da população.
Por meio dessas singelas considerações, justifico o propósito que me animou na elaboração deste texto, recomendando a leitura do o estudo desenvolvido pelo professor Anthony Niedwiecki, não só por sua autoridade, mas especialmente pelo alerta que traz consigo, que certamente lhe atribui o qualificativo de literatura obrigatória a qualquer estudo que pretenda ser desenvolvido na área.
[1] http://direitohomoafetivo.com.br/anexos/artigo/112__98b6f0cac0beb5fee5df4e7a0b108f12.pdf
[2] O entendimento do Supremo Tribunal Federal permanece no sentido da impossibilidade de se coagir o Poder Legislativo a legislar. A respeito, confira-se MI nº 232/RJ, DJ de 27.03.92; MI nº 284/DF, DJ de 26.06.92; MI nº 361/RJ, DJ de 17.06.94 e MI nº 584/SP, DJ de 22.02.02.
[3] Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11221/Relat%C
3%B3rio%20ICJBrasil%20-%20Ano%204.pdf?sequence=1>. Acesso em 16.mar.2014. O CNJ ainda não forneceu números da pesquisa que fornecerá dados para a construção do índice de confiança no judiciário. A meta, entretanto, é que esse indicador alcance 70% de aprovação, até o final de 2014, conforme informação colhida em: <http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/gestao-e-planejamento-do-judiciario/indicadores/486-rodape/gestao-planejament
o-e-pesquisa/indicadores/13655-01-indice-de-confianca-no-poder-judiciario>. Acesso em 16.mar.2014.
[4] STJ, EDcl no REsp 633713/RS, DJe de 28.02.14.
[5] STJ, AgRg no REsp 1298129/SP, DJe de 05.09.13.
[6] Editora Abril. Revista Superinteressante. Edição nº 202. Julho/2004.
[7] Em tradução livre: "Salvem nossas crianças: superando a narrativa de que gays e lésbicas são prejudiciais para as crianças".
[8] O artigo foi publicado no volume nº 21:125/2013. Disponível em: <http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1248&context=djglp>. Acesso em 15.mar.2014.
[9] Human Communication as Narration: Toward a Philosophy of Reason, Value, and Action. Columbia: University of North Carolina Press. 1987
[10] Em tradução livre: "Este recrutamento de nossas crianças é absolutamente necessário para a sobrevivência e o crescimento da homossexualidade, já que os homossexuais não podem se reproduzir, eles devem recrutar, atualizar sua classe. E quem se qualifica como um recruta provável: um pai de 35 anos de idade ou mãe de dois filhos. . . ou um adolescente ou jovem que está em fase de conscientização sexual? (O Departamento de Polícia de Los Angeles informou recentemente que 25 mil meninos de até 17 anos ou mais jovens, apenas naquela cidade, foram recrutados em um homossexual para oferecer sexo para homens adultos. Um menino, de apenas 12 anos, foi descrito como um prostituto de US$ 1.000.00-por dia.)"
[11] Em tradução livre: "O que essas pessoas realmente querem, escondidas atrás das frases legais obscuras é o direito de propor aos nossos filhos que existe uma forma aceitável de vida alternativa. Ninguém tem o direito humano de corromper crianças. As prostitutas, cafetões e traficantes de drogas, como os homossexuais, têm direitos civis, também, mas eles não têm o direito de influenciar os nossos filhos a escolher o seu modo de vida. Antes de ceder a esse ataque insidioso a Deus e Suas leis, aos pais e seu direito de proteger os seus filhos, eu conduzirei uma cruzada de tão magnitude para pará-lo, como este país jamais viu antes."
[12] Public Law nº. 104-199, 110 Stat. 2419 (DOMA):
1. Ch 1. § 7. Definition of ‘marriage’ and ‘spouse’: [...] the word ‘marriage’ means only a legal union between one man and one woman as husband and wife, and the word ‘spouse’ refers only to a person of the opposite sex who is a husband or a wife.”;
28. Ch. 115. § 1738C - “No State, territory, or possession of the United States, or Indian tribe, shall be required to give effect to any public act, record, or judicial proceeding of any other State, territory, possession, or tribe respecting a relationship between persons of the same sex that is treated as a marriage under the laws of such other State, territory, possession, or tribe, or a right or claim arising from such relationship.”
[13] http://www.supremecourt.gov/opinions/12pdf/12-307_6j37.pdf
[14]http://www.nydailynews.com/life-style/health/pediatricians-endorse-gay-marriage-healthy-kids-article-1.1294914
[15] http://www.socialworkers.org/pubs/news/2002/01/gay.htm
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