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Adoção especial
A recente lei nº 12.955, do último dia 05 do corrente mês, estabelece prioridade de tramitação aos processos de adoção em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença crônica. A tanto acrescenta parágrafo, o 9º, ao artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). O que muda, afinal?
Lei anterior, a de nº 12.010, de 03 de agosto de 2009, já dispõe sobre o instituto da adoção e o aperfeiçoamento da sistemática prevista para a garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, na forma do referido Estatuto.
Aquela lei produziu as mudanças mais significativas, inclusive a dizer que a adoção é medida excepcional à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança (ou adolescente) na família natural ou extensa (parágrafo 1º do artigo 39 do ECA); entendendo-se como família extensa ou ampliada a que se estende para além da unidade “pais e filhos” ou da unidade “casal”, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (parágrafo 1º do artigo 25 do ECA).
Ora bem. Prioridade processual na tramitação do feito é inerente aos mecanismos de tutela máxima ou integral de pessoas vulneráveis, não se confundindo, na hipótese, com a prioridade do próprio instituto, e a favor delas, no caso o da adoção de crianças deficientes ou com doença crônica.
Haveria melhor de cuidar a lei no sentido de oportunizar a prioridade de adoção, nessas hipóteses, com políticas públicas de incentivo, após, evidentemente, esgotados os meios de permanência do adotando potencial na sua família extensa (artigo 39, par. 1º, ECA); quiçá com “bolsa-adoção”, outra espécie de “bolsa-família” (!), essa com profunda significação social.
De mais a mais, qual o sentido juridicamente indeterminado de prioridade de tramitação do feito, senão imaginar que a sua tramitação não deverá render-se às burocracias da própria lei?
No ponto, certo que a adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso (artigo 46), considere-se, então, que esse prazo seja bastante mitigado, pela tipificidade da situação, não podendo, todavia, ser dispensado o estágio, à falta de ressalva da lei.
Abreviar procedimentos da guarda provisória será, em primeira análise, uma resposta mínima que a nova lei oferece ao problema social de crianças ou adolescentes, portadoras de necessidades especiais ou com problemas de saúde, incluídas em programas de adoção. Na verdade, esse universo chega a 22,6% das crianças disponíveis para adoção, em Cadastro Nacional de Adoção, do Conselho Nacional de Justiça, considerando-se as soropositivas, as deficientes físicas, as deficientes mentais, ou as com doenças tratáveis ou não tratáveis.
Lado outro, importa assinalar que no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), das 5,4 mil crianças e jovens para adoção, 4,3 mil (80%) estão na faixa etária acima de 9 anos. Enquanto isso, mais de vinte e dois mil inscritos interessados na adoção, são exigentes nas suas preferências, protraindo as escolhas e a efetividade das adoções.
Bem de ver, a propósito, que o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), lançado em 29.04.2008, no objetivo primordial de agilizar os processos de adoção “por meio de mapeamento de informações unificadas”, para além disso presta-se, com inegável possibilidade, para a implantação de políticas públicas na área. (conferir: www.cnj.jus.br).
Mas não é só. A dinâmica de preferência ou prioridade, em cadastros, deve ser orientada em favor da criança e não aos adotantes inscritos, porque o interesse pela adoção deve ser considerado em prol da criança e não dos pais interessados, segundo o princípio do melhor interesse do menor, extraído da doutrina da sua proteção integral, já expressa no art. 1º do ECA. O interesse maior da criança é um interesse diretor e regente.
Com maior precisão, o artigo 1o da Lei n. 12.010/2009 prevê a garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, “devendo o enfoque estar sempre voltado aos interesses do menor, que devem prevalecer sobre os demais”. Neste sentido finalístico, o ministro Massami Uyeda, relator do Resp n. 1.172.067, sublinhando que são nobres os propósitos contidos no artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entendeu que a observância do cadastro com a inscrição cronológica dos adotantes não pode prevalecer sobre o melhor interesse do menor. “Não se está a preterir o direito de um casal pelo outro, uma vez que, efetivamente, o direito destes não está em discussão. O que se busca, na verdade, é priorizar o direito da criança de ser adotada pelo casal com o qual, na espécie, tenha estabelecido laços de afetividade”, acentuou o relator.
Em outras latitudes, cuide-se também ponderar sobre a prioridade, nos casos onde não identificados pessoa ou casal interessado na adoção de crianças especiais, das suas colocações mais urgentes sob a guarda de famílias cadastradas em programa de acolhimento familiar, na forma prevista pelo parágrafo 11 do artigo 50 do Estatuto. Por identidade de razões, haverá também pensar, topicamente, em preparação psicossocial e jurídica especificas àqueles postulantes pais adotantes de crianças em situações que tais, guardando conformidade com o parágrafo 3º do mesmo artigo 50.
Logo, crianças especiais merecem tratamento especial, por òbvio, com prioridade à adoção e aos programas de acolhimento, não devendo ser condenadas, indefinidamente, às filas de longa espera ou esquecidas em abrigos.
Em ser assim, haveria melhor de ter cuidado a novel lei a respeito da “adoção intuitu personae”, mitigada que foi pelo parágrafo 13 do artigo 50 do ECA, quando ali tratou de exceções à regra do cadastro prévio (a exemplo da adoção unilateral ou por parente do adotando com laços de convivência e afetividade já verificados). Adoção direta e pessoal, sim, por se tratar de crianças especiais. Com efeito, melhor teria sido inserir inciso IV àquele parágrafo 13 do artigo 50 para cogitar da especialidade da adoção e não, propriamente, da tramitação do seu processo.
De todo modo, quer parecer, agora, essencial, com a edição na Lei nº 12.955, que diretivas do Conselho Nacional de Justiça e da Corregedoria Nacional de Justiça venham dispor sobre o exato alcance da prioridade de tramitação dos feitos de adoção, que envolvam crianças especiais. A adoção especial reclama mecanismos mais eficazes para a sua efetividade.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
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