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O casamento e sua natureza jurídica – contrato especial de Direito de Família
Pedro Terra pôs-se de pé e gritou:
- Bibiana!
A moça apareceu.
- É verdade que vosmecê gosta desse tal Capitão Rodrigo? (...)
Sem erguer a cabeça, balbuciou:
- Gosto, papai.
Eu não sei se ele quer casar comigo...(...)
- E assim mesmo quer casar com ele?
- Se ele quiser eu quero.
O padre via na moça a decisão de Ana Terra: o mesmo jeito de falar , quase a mesma voz...[1]
Afirmar a natureza jurídica de algo é, em linguagem simples, responder à pergunta: ‘que é isso para o direito?” É tradicional a mania que os juristas e professores têm de buscar conceitos e natureza jurídica sobre tudo. É que realmente nos traz um conforto intelectual saber os contornos, motivos, base e alcance dos institutos. Faz a coisa ficar mais clara e palpável para o ensino e aplicação prática. No magistério de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por exemplo, tal ideologia se ratifica com a frase: “
Neste rumo, procuramos aqui sugerir e debater acerca da caracterização jurídica do casamento, tanto no embate entre as teorias que fundamentam sua natureza – contratualista, institucionalista e eclética – quanto na síntese sobre o conceito entre ato jurídico em senso estrito ou negócio jurídico bilateral (contrato).
Assim, iniciamos com a demarcação das três correntes que estudam a natureza jurídica do casamento:
· a contratualista, que entende o mesmo como negócio jurídico bilateral;
· a institucional, que “fundamenta seu ponto de vista na interferência direta da autoridade pública, que é essencial na formação do matrimônio”, e por possuir efeitos “que não se limitam, como nos contratos, a constituir direitos de crédito entre os nubentes, mas sim, a família legítima e uma série de relações de cunho patrimonial e extrapatrimonial”.[3]
· a eclética, que congrega as duas acima.
E como dito no intróito, em se tratando da matéria no enquadramento na teoria geral dos fatos jurídicos, há ainda respeitável entendimento do casamento como ato jurídico em senso estrito. Ou seja, seria do gênero ato jurídico como um contrato, mas na espécie “ato jurídico em senso estrito” e não “negócio jurídico”.[4]
Tal entendimento leva em consideração que o casamento é ato jurídico stricto sensu pelo fato de que “manifestada a vontade, são atraídos certos efeitos e deveres jurídicos predefinidos no ordenamento a que é necessário se submeter”, na preciosa e sempre brilhante observação das professoras Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues.[5] Já os contratos teriam sua gênese e os demais efeitos futuros sempre determinados pela vontade. [6]
No entanto, mesmo na constante e obrigatória consulta às ideias e autores(as) acima citados, cravamos a natureza jurídica do casamento como contrato, ou seja: do gênero negócio jurídico bilateral. Obviamente, um contrato especial, não empresarial, e sim um contrato especial de direito de família.[7]
O argumento é simples. Nasce da vontade de duas partes, com objeto lícito e forma prescrita em lei. O fato de ter seus efeitos previstos e guiados por lei – como entendem aqueles grandes autores que os classificam como atos em sentido estrito – não desfigura o acordo de vontades entre duas partes para um fim de direito (conceito clássico de contrato). Nessa linha de raciocínio sintetizam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
Quando se entende o casamento como uma forma contratual, considera-se que o ato matrimonial, como todo e qualquer contrato, tem o seu núcleo existencial no consentimento, sem se olvidar, por óbvio, o seu especial regramento e conseqüentes peculiaridades.[8]
O mesmo é reforçado por Hironaka: “Quer nos parecer que o caráter volitivo está sempre presente no casamento, mesmo que quando apresenta-se limitado e regulamentado por normas de ordem pública, de caráter imperativo, cogente, imutável”.[9]
Basta verificar que outros contratos também surgem da vontade e também têm alguns efeitos futuros determinados exclusivamente pela lei, o que não é capaz de mudar sua categoria para atos jurídicos stricto sensu. Vide contratos típicos que seguem preceitos legais futuros, sem se falar nos contratos de adesão e contratos coativos onde a vontade é diminuta ou mesmo nenhuma![10] Isto tudo não os torna atos jurídicos em senso estrito.[11]
Além disso, devido à função social e boa-fé, os contratos também sofrem interferência externa e normas de ordem pública em seu corpo e alma. Acrescente-se ainda que o casamento pode ser desfeito também pela vontade das partes pela resilição bilateral ou distrato – como num contrato –, ou mesmo na combinação do pacto antenupcial.[12]
Mas claro é que trata-se de um contrato especial, norteado também pelas normas específicas do direito de família, assim como os contratos de trabalho também possuem suas regras próprias na CLT, por exemplo. Sílvio Rodrigues ratifica:
Casamento é o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem a mútua assistência.[13]
Voltando às correntes que embasam o conceito, para aquele entendimento do casamento como instituição, sua fundamentação principal se dá pelo fato de que o casamento não possui apenas aspectos patrimoniais. Nele há o affectio maritalis, o que abrange a personalidade humana no que diz respeito à família. Argumentam que os contratos seriam temporários e com interesses materiais privados, sendo o casamento matéria de ordem pública. Washington de Barros Monteiro, nessa toada, caracteriza o casamento “em sua natureza de ordem pública, pois a legislação que versa sobre o matrimônio está acima da vontade e das convenções particulares”.[14]
Concluímos então que o casamento é um contrato especial de direito de família. É negócio jurídico bilateral pois formado e guiado pela vontade das partes, mesmo que com normas e contornos legais/externos que não desconstituem sua junção de acordo entre os dois, como dito. O que não podemos é equipar tal contrato especial de direito de família à compra e venda, locação, leasing ou alienação fiduciária[16]. Ainda mais em tempo de constitucionalização, boa-fé e função social...
Referências
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 7. ed. São Paulo: Renovar, 2008.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
RODRIGUES, Renata de Lima; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. O Direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, vol. I.
_____. Novo Curso de Direito Civil: Direito de família - as famílias em perspectiva constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, vol. VI.
MACEDO, Humberto Gomes. Teoria geral dos contratos. Belo Horizonte: Initia Via, 2013.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. V.
_____. Curso de Direito Civil. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. II.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral do direito civil. 23.ed.Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.I.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. III.
VERISSIMO, Erico. Um certo capitão Rodrigo. 34.ed. São Paulo: Globo, 1997.
[1] VERISSIMO. Um certo capitão Rodrigo, p. 126-127.
[2] “GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: parte geral, p. 182-183. Indagado a respeito da natureza jurídica de determinada figura, deve o estudioso do direito cuidar de apontar em que categoria se enquadra, ressaltando as teorias explicativas de sua existência. Assim, fica claro concluir que a natureza jurídica do contrato, por exemplo, é a de negócio jurídico, uma vez que nesta última categoria subsume-se a referida figura, encontrando, também aí, a sua explicação teórica existencial (a teoria do negócio jurídico explica a natureza do contrato).”
[3] HIRONAKA. Direito civil: estudos, p. 37-38.
[4] AMARAL. Direito civil, p. 385.
[5] RODRIGUES; TEIXEIRA. O Direito das famílias entre a norma e a realidade, p. 158.
[6] Caio Mário da Silva Pereira também explica sobre a diferença das espécies negócio e ato: “observa-se, então, que se distinguem o “negócio jurídico” e ao “ato jurídico”. Aquele (negócio) é a declaração de vontade, em que o agente persegue o efeito jurídico (Rechtsgeschäft); no ato jurídico stricto sensu ocorre manifestação volitiva também, mas os efeitos jurídicos são gerados independentemente de serem perseguidos diretamente pelo agente”. PEREIRA. Instituições de direito civil, p. 407.
[7] Salutar consulta ao Código Civil Português em seu artigo 1577: "Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código".
[8] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Direito de família, p. 117-118.
[9] HIRONAKA. Direito civil: estudos, p. 38.
[10] MACEDO. Teoria geral dos contratos, p. 131.
[11] Vide, dentre tantos outros, a locação imobiliária urbana e seus efeitos pela Lei 8.245/91.
[12] Observe que o próprio artigo acerca do regime utiliza a palavra “convenção”, que afeta aos negócios jurídicos (grifos nossos):
(CC) Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. §2o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
Art. 1.640. Não havendoconvenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.
Art. 1.653. É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento.
[13] RODRIGUES. Direito civil, p. 19.
[14] MONTEIRO. Curso de Direito Civil, p. 22.
[15] (CC) Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 2.035. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
[16] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Direito de família, p. 117.
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