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Feminicídio íntimo
O homicídio em razão do gênero, com índice brasileiro de 4,4 assassinatos em 100 mil mulheres, colocando o país no sétimo lugar em um ranking de 83 outros (Mapa da Violência 2012/Cebela-Flacso), malgrado a vigência da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) há sete anos, não tem ainda uma tipificação penal própria. O feminicídio não existe como tipo penal específico, apesar de estatísticas que o indicam ocorrente no registro de 43.654 mulheres assassinadas, no país, na última década (2000/2010); precisamente uma mulher morta a cada duas horas.
Pior: em recente pesquisa, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA - (set./2013), apuram-se em média 5.664 mortes de mulheres “por causas violentas” a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, tudo representando uma a cada 90 minutos.
Segue-se, no particular, o feminicídio íntimo, homicídio que vitimiza a mulher no seu ambiente doméstico e familiar, como ponto extremo de um ciclo de violência que a subjuga, de forma contínua. O Mapa indicou que 41% das mortes foram na intimidade do lar; mortes anunciadas por diversas formas prévias de agressão. Outra recente pesquisa assinala que 16,7% das agressões são diárias, 25,0% semanalmente, e 8,3% ao mês (Data Senado, pg. 49), importando que 62,1% constituem agressões físicas e 37,9% representam agressões psicológicas.
Isto afirmado, de saída, cuide-se que Indicadores Estratégicos devam avaliar a efetividade da Lei Maria da Penha, em níveis de profilaxia criminal, a partir de medidas protetivas de urgência que inibam, com maior segurança, os desfechos letais. Essas medidas de natureza cível guarnecem uma aparente tutela de proteção, porém de tempo determinado deixam, ao largo, as eventuais recidivas de agressões.
Sublinha-se urgente uma política pública legislativa que introduza na ordem jurídica do país o feminicídio comum e o feminicídio íntimo, já catalogados como tipos penais em onze países da América Latina; estabeleça protocolos mais científicos de instrução criminal, em unidades judiciárias especializadas e articule, mecanismos de pesquisas etiológicas dos crimes, permitindo as análises de suas principais causas determinantes.
Nessa diretiva, tramita o PLS nº 292/2013, da senadora Ana Rita Esgário (ES), relatora da “Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência Doméstica”, incluindo os tipos de feminicídio como circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio e aguardando pauta de audiências públicas.
Pois bem. Está em curso a “Campanha dos Dezesseis Dias de Ativismo pela Mulher”, no período entre 25/11 e 10/12, lançada em 1991 pelo “Center for Women's Global Leadershi” – CWGL (Centro de Liderança Global de Mulheres) e repetida a cada ano, em denúncia de todas as formas de violência contra as mulheres ocorridas no mundo.
Os termos das datas são de significação absoluta: (i) O 25/11 é declarado o “Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher” e (ii) o 10/12 é o “Dia Internacional de Direitos Humanos”. Nesse liame, impõe-se toda a defesa urgente e intimorata da dignidade da mulher. O primeiro assinala homenagem às irmãs Maria Teresa, Pátria e Minerva (“Las Mariposas”), assassinadas naquela data, em 1960, na República Dominicana, quando juntas lutavam contra as injustiças sociais da ditadura do governo de Rafael Leônidas Trujillo. Em 1999, o dia foi proclamado, pela Organização das Nações Unidas (ONU), como "Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher", objetivando estimular governos e sociedade civil a combaterem a violência de gênero. O segundo celebra os direitos humanos fundamentais, consagrando a sua garantia no mundo inteiro.
Mais ainda: no interregno situa-se o 06/12, “Dia Mundial de Mobilização dos Homens pelo fim da violência contra a Mulher”, lembrando o massacre de Montreal (1989), quando Marc Lepine assassinou quatorze mulheres em sala de aula, à queima roupa, indignado por estudarem Engenharia, curso que só admitia destinado aos homens. O dia inspirou, em todo mundo, a “Campanha do Laço Branco” e no Brasil foi instituído pela Lei nº 11.489/2007.
Neste “iter” temporal, impõe-se de boa nota assinalar três importantes eventos ocorridos, esta semana:
(i) realizou-se, em Vitória (ES) o V Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – FONAVID (27 a 29/11), tendo como tema central “As Medidas Protetivas de Urgência”, dispostas na Lei Maria da Penha. O evento destinou-se, em primazia, analisar a eficácia e o êxito das medidas protetivas expedidas, cerca de 350 mil, desde a vigência da Lei nº 11.340/2006, e perante mais de 850 mil procedimentos judiciais realizados. Nada mais simbólico e operacional que tenha sido assim: Espirito Santo é o estado que registra o maior índice de feminicídio (9,8), mais que o dobro da média nacional; curiosamente onde machismo e patriarcado não assumem maiores visibilidades.
(ii) Prática judiciária efetivada pelo Tribunal de Justiça do Espirito Santo, por iniciativa do seu presidente, des. Pedro Valls Feu Rosa, obteve o “Prêmio Innovare”, quinta-feira última (28.11). A prática consiste no “Botão do Pânico”, entregue a mulheres sob proteção máxima, em face dos seus maridos ou companheiros, com maior potencialidade de agressões graves. O equipamento, com GPS, utilizado ante qualquer risco ou aproximação do pretenso agressor (inclusive aquele que desobedeça ordem judicial de distância mínima atribuída), faz operar intervenção policial em torno de sete minutos. Para além disso, grava em ato instante o som ambiente do local onde acionado, servindo de prova judicial.
(iii) O IX Congresso Brasileiro de Direito de Família (20-22/11), maior evento jurídico nacional, organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), deliberou em resolução pela criação, nos quadros diretivos do instituto, da Comissão de Violência Doméstica, sob a presidência de Adélia Pessoa (SE) e integrada pela des. Rosana Fachin (PR). A iniciativa configura notável incremento aos estudos doutrinários e à atuação institucional em difusão da cultura da não violência de gênero, diante da elevada credibilidade científica do instituto.
Posto isso, impende referir a estimativa de a cada doze segundos, uma mulher sofrer agressão em nosso país, quando em contraponto, no feminicídio, o agressor busca, em dialética aviltante, fazer preponderar a “culpabilidade da vitima como justificativa dessa forma extrema de violência” (Mapa, 2012).
Induvidoso que a violência de gênero, figurando a mulher como vítima, constitui patologia social severa e os reflexos mais graves das agressões íntimas situam-se quando ela tenha filhos, também vitimas diretas ou indiretas da violência familiar.
No tema, a legislação deve ser aprimorada para acompanhar, expressamente, os avanços jurisprudenciais. Reclama-se, pois, a edição de um Estatuto da Mulher, em normatização de todos os seus direitos e, sobretudo, para a devida prevenção e repressão criminais de todos os delitos contra ela praticados.
Afinal, lugar de mulher é no coração do homem e na responsabilidade social que a dignifique pela relação substancialmente igualitária entre os gêneros.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
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