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O seqüestro dos afetos - a mentira
Fonte: Boletim nº 19
É quase missão impossível compreendermos as motivações, inclusive por suas raízes estenderem-se ao inconsciente, que levam as pessoas a terem atitudes como no caso da mulher que seqüestrou bebês da maternidade e os criou como sendo seus filhos biológicos. Mas a dificuldade, somada ao fato de que a informação é indireta, serve mais como alerta, não nos desobrigando em fazer considerações a respeito da dinâmica das relações.
Buscamos o entendimento recorrendo às nossas especialidades profissionais, tentando enquadrar em artigos da lei ou ainda em algum diagnóstico. Este mais próprio da especialidade médica da psiquiatria; fora do contexto médico, dar um diagnóstico, dar o nome de alguma doença, buscando um excesso de objetividade, pode servir muitas vezes para descarregar nossa revolta e alimentar o preconceito.
É um caso que nos comove, desperta nossas paixões, mas que deve sobretudo ser pensado como um disparador para discussões que possam ir além de uma reação emocional de simpatia e antipatia. A contribuição da psicanálise vem no sentido de nos fazer pensar, utilizando nossa compreensão - razão e sentimentos, inclusive nossa capacidade de empatia, sobretudo, neste caso, com os filhos.
Parte da dificuldade advém também do fato de trata-se de uma mãe - que todos acreditamos, ou gostaríamos de acreditar - ser sempre fonte de um amor puro, imaculado. O que instiga é justamente o que nos coloca frente à impossibilidade de um uso maniqueista do pensamento, sendo impossível julgar uma mãe como totalmente boa ou má. No fundo todos sabemos da impossibilidade de um juízo de valor neste sentido, pois ninguém é totalmente bom ou mau.
Mas sabemos sim que o exercício da função materna implica na prevalência do amor, por definição altruista, acima de interesses egoístas, embora estes sempre existam. Sobretudo na família, o amor deve ser equilibrado segundo o diferente exercício das funções (materna, paterna, filial), necessariamente assimétricas na família. É com base na dinâmica das diferenças que os indivíduos vão se constituir e que as relações vão se estabelecer, segundo esta verdade - da realidade da função de cada um, da posse de estado. Amor, ainda mais dos pais, e verdade são indissociáveis, e a mentira ou omissão, por nobres que possam ser os motivos que se alegue, implica na quebra da confiança necessária para o exercício de funções. Poderíamos dizer que o amor dos pais é diferente pela medida de altruismo nele contido. Por definição, este comportamento tem como objetivo o bem dos filhos, o que não significa amor incondicional, a qualquer preço e às custas de faltar com a verdade. Amor e verdade devem andar de mãos dadas e sem dúvida a mentira em nada contribui para um desenvolvimento saudável.
O que temos é que quando uma mulher toma crianças de outra mãe, perverte o que seria a função materna ao juntar esta função com roubo e mentira; o que se agrava quando se utiliza os filhos com a finalidade de obter vantagens econômicas, e, neste caso, repetindo a mentira com quem elegeu para ser o suposto pai.
Em situações desta natureza chama a atenção uma docilidade, quase que uma solicitude compulsiva dos filhos, que mesmo sendo vítimas de uma mentira, aparentemente, num primeiro momento, se mantêm incondicionalmente ao lado da mãe que teria seqüestrado uma parte de suas identidades. Esta solicitude é também uma conseqüência do que se confunde com o que seria amor, em que a agressão de que foram vítimas não teria para eles este sentido, como se amor devesse ser sempre incondicional. O amor incondicional faz parte do mito do amor materno e também, como vemos, do mito do amor filial. Na realidade, o amor incondicional traz em si uma mentira de amor.
O que leva uma mulher a realizar tudo isto? Obviamente uma confusão em relação aos afetos, amor e agressão, e com relação ao que é ser mãe, como se o ser mãe justificasse todos os meios para a realização de tal fim. Casos assim indicam uma divisão na personalidade, em que de um lado fica o amor e de outro, a mentira e os recursos perversos para obter o que seria a realização deste amor, aliado a um certo triunfo sobre outras mulheres. É uma maternagem que fica prejudicada, não havendo de início o verdadeiro reconhecimento do que é maternidade, denunciado pela falta de empatia com as mães, que pelas circunstâncias foram condenadas, até o momento, a ser somente mães biológicas, ficando impedidas da realização da parentalidade socioafetiva.
Chamo atenção para o fato de que outras pessoas sabiam dos fatos, direta ou indiretamente, o que foi mantido como segredo durante muito tempo, e que agora se revela de forma explosiva. Não são raros os segredos familiares, ocultos, às vezes por gerações, e que obviamente se mantêm em nome da proteção, em nome do que se mal entende como amor, mas que podem contribuir para a construção de relações patológicas.
O direito à identidade se dá pela via biológica, social - que inclui o nome e sobrenome e pela via afetiva. Esta última e a verdade que contém é o fundamento da parentalidade sócioafetiva. Para o desenvolvimento de uma identidade saudável todos estes aspectos devem estar em sintonia. Mesmo nos casos de adoção, seja pela via legal, seja pela chamada adoção à brasileira, em que se registra como próprio o filho de outrem. Este tipo de adoção é fruto, em alguns casos, das dificuldades legais, reais ou imaginárias, nos processos de adoção. Mas pode haver casos em que há um exacerbado egoísmo, um narcisismo em admitir as limitações em gerar filhos, e ainda há casos que extrapolam o que seriam motivos ditos nobres, quando os filhos são utilizados ainda para outros fins, como obter vantagens econômicas. Situações com as quais, independentemente de envolverem adoção, em maior ou menor proporção, se defrontam os operadores do Direito. O que deve sempre prevalecer é o princípio do melhor interesse da criança, que necessita de pais que transmitam a verdade dos afetos, sendo que a mentira aumenta ao invés de, em nome do amor, economizar sofrimento.
Ainda com base neste princípio, ficam outras perguntas inspiradas pelo caso em tela, será que não se repete um "seqüestro" ao utilizar de forma sensacionalista a triste história destas pessoas; ao utilizar, sem a concordância, o DNA para exame, como foi o caso de uma das filhas, e ainda se podemos nos referir a estes filhos pelos seus nomes de origem ou pelos nomes com que foram criados e que agora fazem parte integrante de suas identidades. Penso que é essencial, nestes casos o concurso de profissionais que possam mediar os relacionamentos, não só em seus aspectos legais, mas da área de saúde mental, auxiliando na diminuição do sofrimento por que passam pessoas que são vítimas nesta situação.
E ainda, será que nos casos de adoção, não temos também um problema sério quando fica somente a critério dos pais adotantes, que têm um trabalho extra no exercício da parentalidade, revelar, ou não, muitas vezes seguindo motivações inconscientes, que os filhos têm outra origem biológica, impedindo assim o acesso à parte de suas identidades, também mentindo ou omitindo em nome do amor? Finalmente, cabe pensar qual o significado simbólico que pode ter um pai-Estado ao retirar do registro o nome dos pais biológicos.
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