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Enigmático mundo do direito das sucessões
Escrever é uma arte, já o disse Arthur Schopenhauer. Escrever um texto jurídico, então, envolve, por assim dizer, o domínio de duas artes: a primeira, a arte da língua portuguesa; a segunda, a arte (rectius: Ciência) do Direito.
A linguagem dos operadores do Direito deve ser correta, clara e persuasiva, sem descurar da tecnicidade a ela inerente. Sabe-se que a palavra é o símbolo da ideia, portanto é necessário conhecer o seu exato significado, de modo a transmitir ao leitor precisamente aquilo que se pretende, com suficiente grau de enfoque.
Nossa legislação, doutrina e jurisprudência, utilizam em grande extensão palavras e expressões que, muitas vezes, são de difícil compreensão, por imprimirem sentido demasiadamente técnico e restrito. Recorrer aos dicionários jurídicos passa a ser, nesse contexto, atividade quase diária dos profissionais que se esmeram no uso da língua.
O Direito das Sucessões está repleto de terminologia técnica ou, como preferem alguns, vale-se frequentemente de palavras "difíceis", que desafiam nosso intelecto a todo instante na tentativa de desvendar o seu enigmático mundo. Mas, seria impossível que os sucessionistas se expressassem de maneira clara e "fácil", objetivando aproximar o jurisdicionado dos assuntos inerentes à Justiça? O movimento norte-americano denominado "plain language" (algo como "linguagem clara e objetiva") teria aplicação no Brasil?
Pensamos que deva haver uma forma (técnica) de "falar fácil", já que "falar difícil" pode revelar alguma erudição do narrador, porém frequentemente impede a exata compreensão da ideia que se quer transmitir ao ouvinte ou leitor.
Alguns exemplos podem ser colhidos no "Dicionário Didático do Direito das Sucessões", de Eliasar Rosa, Ed. Lumen Juris, 1994, livro fininho, mas de inestimável valor.
Em vez de utilizarmos a palavra "adenção", poderíamos nos referir simplesmente à revogação do legado ou doação. "Adição da herança" significa, etimologicamente, ir em direção a ela, isto é, aceitá-la. Melhor dizer "bens imóveis" e não "bens de raiz", expressão esta antiquíssima. "Caudal hereditário" nada mais é que "acervo hereditário", "herança bruta". Relativamente ao testamento cerrado, a expressão "cerrar e coser" significa "fechar e costurar". Parece elegante e menos impactante fazer menção à morte como sendo "decesso", "defunção" ou "trespasse", para nos referirmos a algo absolutamente natural em nossas vidas, que é o falecimento. Do mesmo modo, a palavra "exerdação" soa chique, mas o sinônimo "deserdação" parece ser mais comumente compreensível e, a propósito, é uma pena civil nada louvável. Nos tabelionatos, vemos frequentemente a expressão assinar "em público e raso", que tem o sentido de assinar em presença de testemunhas e com assinatura por extenso. "Estípite" é o tronco de uma geração, ou seja, a origem de uma família ou raça. A despeito do nome, "herança danosa" não significa necessariamente algo ruim: o patrimônio hereditário transmissível abrange os cômodos e os incômodos, os créditos e os débitos deixados pelo "de cujus". "Herdeiro putativo" poderia ser mais facilmente referido como sendo "herdeiro aparente", e "heréu" nada mais é que herdeiro. "Irmãos colaços", também denominados "irmãos de leite", são os que foram amamentados pela mesma mulher, embora filhos de mães diferentes. Expressão muito vista no dia a dia da prática forense, "monte-mor" tem relação com a totalidade dos bens a serem inventariados ("mor" é forma sincopada de maior), contrapondo-se ao monte líquido, que é o valor dos bens, menos as dívidas atendidas. Já a posse que se adquire por força de lei, sem necessidade de apreensão material do bem possuído, leva o estranho nome de "posse civilíssima", embora possa ser chamada também de "posse artificial" e "posse ficta", mercê do princípio de saisine. E quem seria o "primo de todo mundo"? A resposta é simples: é o Fisco, pois o Estado, em caso de vacância, adquire a herança compulsoriamente como se fosse primo de qualquer defunto. Menção deve ser feita, ainda, à expressão "revogação nua" do testamento, para dizer que o ato revogatório pode ser imotivado. Por que utilizar a palavra "supérstite" se as palavras cônjuge e companheiro "sobrevivente" e "sobrevivo" são muito mais compreensíveis à população em geral? Outrossim, não seria mais prática a referência ao testamento "verbal" em vez de testamento "nuncupativo"?
A lista das nossas anotações seria enorme, mas para não alongar, lembramos que o usufruto "vidual", tem a ver com "viuvez" e não com vida.
Ficam aqui registradas as nossas sugestões para simplificação terminológica das palavras e expressões afetas ao Direito das Sucessões. Afinal, nesse complexo mundo de verborragia latente, o difícil é falar fácil!
Bibliografia:
PEREIRA, Tarlei Lemos. Direito Sucessório dos Conviventes na União Estável: uma abordagem crítica ao artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Letras Jurídicas. 2013.
ROSA, Eliasar. Dicionário Didático do Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 1994.
O autor é Mestre em Direito.
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