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Planejando a família in vitro: o direito ao planejamento familiar e as famílias monoparentais
Sumário: Introdução. 1. O fenômeno da reprodução assistida e a família contemporânea. 2. A possibilidade da monoparentalidade planejada através da reprodução assistida. 3. O respeito à autonomia reprodutiva e o reconhecimento dos direitos reprodutivos no plano internacional e interno. 4. A tutela da autonomia reprodutiva em face do direito à biparentalidade do filho a ser gerado: das contribuições bioéticas à proteção jurídica. 5. O direito à reprodução e o problema da elegibilidade individual à reprodução assistida. 6. O tratamento da elegibilidade na Resolução CFM n. 1.957/2010. 7. O desejo de ter filhos entre o livre planejamento familiar e a paternidade responsável: em busca de uma ponderação necessária de índole constitucional. Conclusão. Referências.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o conteúdo e a extensão do direito ao planejamento familiar no direito brasileiro e seus efeitos sobre o acesso às técnicas de reprodução assistida e organização familiar diante da tutela da autonomia reprodutiva. A família contemporânea desvinculou-se da exclusividade do vínculo matrimonial como forma legítima de constituição familiar, notadamente com a promulgação da Constituição da República de 1988, que, finalmente, recepcionou as alterações da realidade social e a evolução jurisprudencial, estabelecendo novas diretrizes jurídicas, a exemplo da dignidade da pessoa humana e solidariedade familiar. Modificou-se a vocação da familiaridade, que passa a abarcar uma pluralidade de entidades familiares, dentre elas a família monoparental, e, a partir de sua concepção instrumental, afigura-se como o grupo social intermédio hábil a proporcionar o desenvolvimento dos membros da comunidade familiar. A par destas mudanças, agregam-se os efeitos da biotecnociência, particularmente o fenômeno da reprodução assistida, que possibilitou a constituição de famílias monoparentais de forma planejada, viabilizando, assim, que o projeto reprodutivo seja uma decisão deliberada de eventual genitor solteiro. Desta nova forma de constituição familiar, seus limites legais e princípios jurídicos aplicáveis, trata este artigo, a partir da análise da Resolução CFM n. 1.957/2011 à luz dos valores constitucionais.
Palavras-chave: Direito ao planejamento familiar; família monoparental; parentalidade responsável; dignidade humana.
Abstract: The contemporary family is unlinked to the exclusivity of marriage as a legitimate means of family formation, especially with the promulgation of the 1988 Constitution, which finally welcomed the changes in social reality and developments in case law, establishing new legal guidelines, such as human dignity and family solidarity. Changed the vocation of families, which now encompass a variety of family entities, among them single parents, and, from his instrumental conception, it now appears as the social group able to provide adequate development of family members. Alongside with these changes, add the effects of biotechnology, particularly the phenomenon of assisted reproduction, which enabled the formation of single parent families in a planned manner, enabling thus the reproduction project is a deliberate decision to eventual single parent. This new way of constituting a family, their legal criteria and applicable legal principles, is the objective of this article, from the analysis of CFM Resolution no. 1.957/2011 the light of constitutional values.
Keywords: Right to family planning; parent family; responsible parenthood; human dignity.
Introdução
Dentre tantas mudanças empreendidas no direito civil contemporâneo, particularmente o tripé no qual durante longo período a tradicional dogmática civilista se assentou - a saber, o contrato, a propriedade e a família, formam os alvos mais atingidos pelas transformações decorrentes da teoria crítica e da constitucionalização do direito civil. Alvejada tanto por mutações constantes no substrato social, mas aceleradas no fim do século passado pelo desenvolvimento da biotecnociência, quanto no substrato axiológico, agora de índole constitucional, o contexto social e jurídico no qual se insere a familiaridade hodierna, além das importantes modificações já operadas, tem desempenhado um papel crucial na valorização e promoção da dignidade e pleno desenvolvimento da pessoa humana, a qual diante do atual ordenamento pátrio afigura-se como valor central de todo o sistema, que tem na Constituição sua orientação e seu fundamento, direcionando todo seu arsenal à integral proteção do ser.
Assim, da matrimonialização à pluralização da família, houve o reconhecimento, na Constituição da República de 1988, de novas entidades familiares, que objetivam o desenvolvimento da pessoa humana, compreendendo-as como um espaço democrático[1], no qual deve imperar a confiança e afeto recíprocos. Assim, em função das opções e valores constitucionais inseridos a partir de 1988, alterou-se, de uma vez por todas, a concepção de família no ordenamento brasileiro, que passa a albergar em seu conceito a flexibilidade, quanto às diversas formas de estruturas familiares[2], e a instrumentalidade, voltando-se para a realização e desenvolvimento da personalidade de seus membros. Concebe-se, desse modo, a família-instrumento ou a família-serviente que é exatamente a sua vocação como grupo intermediário hábil a proporcionar um ambiente favorável às necessidades existenciais de cada um e de todos, com base no relacionamento respeitoso, cooperativo e solidário.
Com o atual entendimento da família como um instrumento para a realização pessoal, e tendo em vista que podem ocorrer confrontações entre a tutela da personalidade de um dos membros da família com os demais, percebe-se que o direito ainda não conformou diversas situações existenciais nas quais se confrontam o direito ao pleno desenvolvimento do ser humano inserido em determinado seio familiar, carecendo, portanto, que ponderações sejam realizadas no sentido de harmonizar a tutela da dignidade da pessoa em si considerada, sem, no entanto, olvidar o caráter relacional presente no grupo familiar.
Dentre os possíveis exemplos de confrontações no campo existencial entre os integrantes da família, ainda que com carga de potencialidade, é o direito à reprodução, por via artificial, de pessoa solteira em face do direito à biparentalidade da futura criança. Tal matéria encontra-se longe de um possível consenso no mundo jurídico, ainda mais com as alterações promovidas pela Constituição da República de 1988 que, se de um lado, reconheceu a família monoparental e o direito ao planejamento familiar, por outro, atribuiu primazia aos interesses das crianças e adolescentes.
Se antes atrelada a valores matrimoniais e patrimoniais, o desejo de ter um filho constituía uma das finalidades do casamento, como “conseqüência natural da satisfação do ‘débito conjugal’” (BARBOZA, 2004, p. 157), agora, desvinculada das exigências de uma união formal, passa a ser concebida como um projeto de vida, intimamente relacionado à autonomia reprodutiva e ao próprio desenvolvimento da personalidade de quem almeja ser genitor. Nada obstante, as possibilidades de concretização do desejo parental aumentaram potencialmente com o recurso às técnicas de reprodução assistida, as quais trouxeram novos problemas à familiaridade contemporânea.
Embora, em princípio, destinadas a casais heterossexuais inférteis, não tardou que grupos sociais não contemplados inicialmente pelo discurso biomédico se aproveitassem dessas técnicas como meio de constituir uma família, demonstrando a imprevisibilidade na delimitação ou restrições quanto à sua utilização pela sociedade. Com efeito, pouco se debatia sobre as formas de constituição familiar que essas técnicas proporcionavam às pessoas, em conjugalidade ou individualmente, heterossexuais ou homossexuais, e que o nascimento desse novo ser acarretaria na formação de uma nova família, ainda que monoparental.
A escolha político-jurídica quanto à terapeuticidade ou não deste ato médico, ou se somente o desejo parental bastaria para legitimar o uso destes procedimentos, é crucial para o desenvolvimento do debate. Sob esse viés, cabe indagar se é possível a eleição de determinadas pessoas ou formas de conjugalidade ao uso das técnicas de reprodução humana assistida sem ofender aos princípios fundamentais constitucionais da liberdade, privacidade, igualdade e não-discriminação? Ou, sob outra ótica, se a tutela jurídica do simples desejo de se ter filho chancela a procriação artificial sem colocar em risco à proteção ao pleno desenvolvimento da personalidade da futura criança?
Em 06 de janeiro de 2011, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução n. 1.957, que revogou in totum a Resolução n. 1.358, de 19 de novembro de 1992, estabelecendo novas regras, ainda que de cunho deontológico, relativas à reprodução assistida. Dentre as inovações, a nova resolução ampliou o rol subjetivo dos pleiteantes ao dispor que “todas as pessoas capazes podem ser receptoras das técnicas de reprodução assistida”, diferente da resolução anterior que restringia o acesso às mulheres sozinhas, casadas ou em união estável. Embora de inquestionável progresso, é preciso examinar os efeitos dessa nova regra contida na resolução do CFM, de modo a harmonizá-la com os preceitos esculpidos na Constituição brasileira de 1988.
Assim, trata este artigo de analisar os princípios aplicáveis à questão da elegibilidade individual às técnicas de reprodução humana assistida diante da proteção à autonomia reprodutiva e do direito ao planejamento familiar, respeitando o direito fundamental à liberdade e à pluralidade e solidariedade familiar.
1. O fenômeno da reprodução assistida e a família contemporânea
As ciências biomédicas se desenvolveram de forma extraordinária, marcadamente no âmbito da reprodução assistida, que se difundiu velozmente no Brasil. Segundo Bruno Lewicki, é indispensável para essa análise, o que ele denominou de duplo estímulo– cultural e tecnológico - (LEWICKI, 2001, p. 100), fator determinante para a explosão do uso das técnicas de reprodução humana assistida pelo mundo afora. Ressalva, ainda, que “[...] não seria a evolução da técnica o único motivo que impulsionaria a multiplicação das possibilidades no campo da reprodução assistida, bem como a sua ampla aceitação pela sociedade” (LEWICKI, 2001, p. 103), mas a crescente disponibilidade de serviços ligados à reprodução assistida no mercado e o desejo de realização do projeto parental via artificial se coadunam em favor de sua elevada incorporação sociocultural (BRAZ; SCHRAMM, 2005, p. 181).
O termo reprodução assistida (RA)[3] comporta um conjunto de técnicas de tratamento médico paliativo, que visam superar às condições de in/hipofertilidade humana, com fins a obtenção da fecundação (CORRÊA, 2001, p. 11). Elas objetivam substituir a relação sexual da reprodução biológica e envolvem a intervenção, no ato da fecundação, de no mínimo um terceiro sujeito, o médico, e em alguns casos há a existência de um quarto, representado pela figura do doador de material reprodutivo humano.
A literatura jurídica costuma separar esses métodos em função de o ato ocorrer dentro ou fora do corpo da mulher. Assim, há técnicas intracorpóreas, em que a fecundação ocorre no interior do corpo da mulher, compreendendo as hipóteses de inseminação artificial (AI), mais antigas e simples, que consistem na introdução do sêmen no aparelho reprodutivo feminino. E, há também, as extracorpóreas, nas quais a fertilização do embrião se dá em laboratório, fora do corpo da mulher, caso da fertilização in vitro(FIV)[4], sendo que nesta modalidade as controvérsias jurídicas costumam ser mais agudas, visto que seu desenvolvimento descortinou novas perspectivas, acarretando um aumento significativo no número de procedimentos de reprodução assistida.
Ao descortinar possibilidades de intervenção médica na própria forma de reprodução humana, que de biológica passa a poder ser também através de concepção artificial, com potencial de transformar a organização da família, a filiação e o parentesco, o fenômeno da reprodução assistida surpreendeu ao servir como “um poderoso instrumento de reforço da moral heterossexual e de padrões de constituição de famílias assentados em premissas naturalistas do feminino e do masculino”.[5]
A moralização do debate bioético mudou os possíveis rumos previstos para o campo das tecnologias reprodutivas, com realce para a restrição aos usos dessas técnicas por pessoas ou casais não enquadrados dentro do clássico modelo matrimonial entre homem e mulher, na contramão, inexplicavelmente, das profundas transformações operadas no seio da plural família contemporânea (DINIZ, 2005, p. 1).
Neste sentido, Marilena Villela Corrêa afirma que “a família moderna já tinha sofrido profundas e diversas modificações (monoparentalidade, uniões homossexuais, divórcios e novos casamentos, etc.) quando a reprodução assistida surgiu”, e, ao contrário do que se poderia imaginar, observa a autora que “não é possível falar em mudanças significativas em nossos sistemas simbólicos ligados à filiação, ao parentesco e à família, mesmo porque, ao menos num primeiro momento, elas [as tecnologias reprodutivas] têm atuado no sentido de respeitar e reforçar esses sistemas” (CORRÊA, 2001, p. 203-204).
Sob esse viés, Debora Diniz elucida que “de avanços tecnológicos no passado, doação de esperma e gestação de substituição passaram a ser vistas como técnicas imorais que ameaçam a estabilidade dos valores heterossexuais no campo da reprodução biológica e social” (DINIZ, 2006, p. 186-187).
Vislumbra-se, nesta esta perspectiva, uma moral de caráter externo, altamente restritiva à utilização desse conjunto de técnicas, dominante no debate público cercado de dogmas religiosos, e, na esfera privada, de autodeterminação da vontade de procriar, uma moral elástica, distinta, geralmente, da exteriorizada socialmente. Nesta, há absoluta prevalência do puro desejo de se ter filhos. Sob essa via, observa-se uma certa “despreocupação social” quanto às restrições em virtude da limitada eficácia que possuem as regras pertinentes a este assunto.
Nesta esteira, escreveu Debora Diniz: “ter filhos biologicamente vinculados é mais do que um desejo de exercer a maternidade ou paternidade, pois significa a vinculação a um ideal de reprodução social pela função da família e da filiação, inserindo os indivíduos em uma ordem de parentesco” (DINIZ, 2009, p. 5).
A principal consequência dessa moralização do domínio bioético, particularmente na experiência brasileira, é a ineficácia social das pretensões normativas, mais apropriadamente das regras deontológicas existentes, em virtude de o debate ético e legislativo sobre a reprodução assistida, não raras vezes, caminharem à margem da nova concepção de família, filiação e parentesco, há tempos renovada na estrutura social dominante e, em grande parte, já reconhecida após a Constituição da República de 1988.
Embora seus efeitos não se limitem sobre o direito de família, é nesta seara que se vislumbram as hipóteses mais delicadas moralmente, capazes de subverterem as tradicionais regras e princípios aplicáveis as relações familiares. Assim, ainda que seu potencial de transformação de formações sociais imemoriais, como a família, o gênero, a maternidade e a paternidade, não se tenham operado, ao menos na sua totalidade, na efetiva releitura destes institutos, certo é que as práticas já disseminadas e as hipóteses já aventadas descortinaram a fragilidade de alguns, ou a ruína de outros.
Além do mais, a manutenção dos sistemas estruturantes no contexto da familiaridade e parentalidade em conjunturas gerais e abstratas não impediram, em momento algum, que o sublime desejo de uns se sobrepujasse à moralidade média, tornando factíveis exemplos antes reservados ao campo ficcional.
A despeito das pretensões de limitações de uso, altamente discutidas no meio acadêmico e legislativo, é indiscutível o velamento das práticas de reprodução assistida no Brasil[6], o que propicia um campo aberto à consecução de interesses individuais ou de casais que desejam ter filhos, fruto da inexistência de regulamentação jurídica e da concentração dos centros especializados no setor de saúde privado. Certo é, que nessa área, há uma dissociação entre a pretensão regulamentar, as incipientes e esparsas regras existentes sobre o assunto[7] e as práticas diárias verificadas nas clínicas especializadas.
Desde a segunda metade da década de setenta do século XX, e depois com a popularização dos métodos conceptivos artificiais, reinam as incertezas e a falta de consenso político, e mesmo, em que pese à imanência da pluralidade moral neste campo, o encaminhamento legislativo está distante de um fim, ainda que provisório em razão do contínuo avanço da biociência e do posicionamento social mutante.
Observa-se, ainda, que a insegurança jurídica acarretada pela carência legislativa não é exclusividade das questões relativas à elegibilidade individual à reprodução assistida, visto que a ausência de regulamentação e o longo monopólio dos serviços de saúde privados na oferta dessas técnicas, bem como a fragilidade dos dados – realidade na qual se assenta o campo da reprodução assistida no Brasil, somente colaboram para a obscuridade e incerteza que circundam toda a disciplina atinente ao tema.
Desse modo, se, por um lado, os avanços da biotecnociência foram responsáveis por profundas alterações nas relações familiares contemporâneas, por outro, seria excesso lhes imputar todas as modificações sofridas pela família moderna, como o divórcio, as uniões homoafetivas e a monoparentalidade. Ao contrário, o surgimento da reprodução assistida que, num primeiro momento, seria capaz de ampliar os meios de constituição da família monoparental, antes restritos às vicissitudes da vida, parece não ter surtido impacto social relevante. Assim, a possibilidade de constituição de famílias monoparentais através da utilização individual pelas pessoas das técnicas de reprodução assistida não foi imediatamente acatada pela sociedade, o que, por sua vez, refletiu na frenagem pelo direito no uso dessas tecnologias para esses fins.
2. A possibilidade de monoparentalidade planejada através da reprodução assistida
A família contemporânea desvinculou-se da exclusividade do vínculo matrimonial como forma legítima de constituição familiar, notadamente com a promulgação da Constituição da República de 1988, que, finalmente, recepcionou as alterações da realidade social e a evolução jurisprudencial, estabelecendo novas diretrizes jurídicas, a exemplo da dignidade da pessoa humana e solidariedade familiar.
Modificou-se a vocação da familiaridade, que passa a abarcar uma pluralidade de entidades familiares, dentre elas a família monoparental, e, a partir de sua concepção instrumental, afigura-se como o grupo social intermédio hábil a proporcionar o desenvolvimento dos membros da comunidade familiar.
Da decretação de seu fim à atual defesa e promoção da familiaridade, agora calcada na comunhão de afeto, deslocada a valor central a sua constituição e caracterização na órbita jurídica, outros são os princípios informadores dos relacionamentos inseridos no contexto da vida familiar. De sua democratização à pluralização, passando pela igualdade entre os cônjuges e filhos e o prioritário interesse das crianças e adolescentes, antigas reinvidicações e agora estabelecidos constitucionalmente, defluem-se alterações estruturais na família contemporânea.
Tendo em vista o princípio da pluralidade das entidades familiares, a Constituição da República de 1988, em seu art. 226, parágrafo 4º, prevê a comunidade formada pelos ascendentes e seus descendentes - as chamadas famílias monoparentais. Com efeito, essa forma de estrutura familiar sempre existiu, no entanto, além de não ter o reconhecimento jurídico e estatuto específico, este último inexistente até hoje, sempre esteve reservado à imprevisibilidade dos acontecimentos da vida. E, mesmo após mais de duas décadas de seu reconhecimento em sede constitucional, a doutrina ainda é reticente em aceitar o planejamento destas entidades familiares.
No Brasil, o reconhecimento social e jurídico da família monoparental foi contemporâneo à disseminação das técnicas de reprodução assistida. Contudo, indiferentes à possibilidade de planejamento da monoparentalidade, alguns autores argumentam que permitir sua constituição artificialmente, ou seja, por opção livre e consciente do genitor individual, seria uma forma de estimular a sua formação, o que defendem não ser o objetivo do dispositivo constitucional.
Neste sentido, Eduardo de Oliveira Leite entende ser “precipitado e equivocado [invocar o] art. 226, parágrafo 4º do texto constitucional como argumento legitimador da inseminação artificial da mulher solteira, separada ou divorciada”, pois defende que “o dispositivo constitucional, de forma louvável, apenas inseriu na esfera da proteção estatal, as famílias ‘monoparentais’; em momento algum as reconheceu com vistas a proliferação das mesmas” (LEITE, 1995, p. 356). Registra, ainda, Guilherme Calmon Nogueira da Gama que “a Constituição não estimula a formação de famílias monoparentais, mas as reconhece” (GAMA, 2000, p. 359).
Até hoje poucos são os autores que incluem dentre o rol de causas constitutivas da monoparentalidade, a pessoa solteira que faz uso da procriação artificial, sendo comum encontrar resistência ainda maior quando se trata do homem solteiro elegível, em razão da necessidade do recurso à gestação de substituição, assunto ainda longe de consenso político-social e já fortemente restringido pela resolução CFM n. 1.957/2010.[8]
Aponta Demian Diniz da Costa que “de uma forma geral, alguns aspectos, ou melhor, algumas causas de monoparentalidade são encontradas em diversas sociedades, tornando-se comum entre diversos países, como, por exemplo, a viuvez, o celibato, o divórcio e a separação”. No entanto, mais a frente, ressalva o autor que “a monoparentalidade planejada merece especial atenção”, como nos casos de adoção e uso de técnicas de reprodução assistida, restringindo, contudo, às hipóteses de mulheres solteiras (COSTA, 2002, pp. 31, 36 e 45-49).
Resta saber, portanto, se as causas de constituição da família monoparental somente podem ser derivadas de infortúnios da vida e não de uma decisão autônoma e consciente do eventual genitor. Com efeito, conforme se pretende demonstrar, o reconhecimento da autonomia reprodutiva no ordenamento brasileiro reforça a possibilidade de formação da família monoparental desvinculada da ideia de circunstâncias alheias da vida, circunscrevendo-a no campo da liberdade de escolhas de cada pessoa, admitindo-se, portanto, a elegibilidade individual à reprodução assistida como forma de constituição de uma entidade familiar.
3. O respeito à autonomia reprodutiva e o reconhecimento dos direitos reprodutivos no plano internacional e interno
Não demorou muito para que a esfera de respeito à autodeterminação das pessoas alcançasse a vida reprodutiva, o que ganhou impulso do movimento feminista e das tecnologias reprodutivas. Desse modo, a despeito das reivindicações feministas, principal força motriz na promoção desse direito, em torno da questão reprodutiva remontar a década de sessenta do século passado, esclarece Maria Betânia de Melo Ávila que “[...] a formalização da ideia em termos de direitos reprodutivos é bastante recente”, em razão de o discurso feminista ter privilegiado, ao menos, num primeiro momento, “[...] a luta pela descriminalização do aborto e o acesso à contracepção” (ÁVILA, 1994, p. 9) não abarcando à época a atual abrangência do tema dos direitos reprodutivos.
A primitiva noção de direitos reprodutivos, se é que assim se pode denominar, refletia, nas palavras de Maria Betânia de Melo Ávila, “[...] a tensão entre a maternidade obrigatória, concebida como elemento de dominação do homem em relação à mulher, e a contracepção, entendida como forma de libertação”. Nesse contexto, o atual entendimento desses direitos, em sentido negativo e positivo, deve-se, segundo a autora, à “redefinição do pensamento feminista sobre a liberdade reprodutiva”, posto que “a concepção e o exercício da maternidade eram possibilidades que, do ponto de vista moral, já estavam dadas, inclusive como prerrogativas fundamentais ou essenciais da existência das mulheres” (ÁVILA, 1994, p. 9).
Acrescenta Miriam Ventura que o privilégio referente à “[...] a proteção do nascituro e a constituição e estabilidade familiar”, determinam “uma interdependência entre os direitos das mulheres e os da criança ou da família que, na forma ou na prática, desconsidera aspectos fundamentais da posição das mulheres como titulares de direitos próprios e o fato de que os riscos e custos da procriação se dão em seus corpos” (VENTURA, 2005, p. 117-118).
Flávia Piovesan sustenta, desse modo, que o conceito de direitos reprodutivos “tem sido assim ampliado, no sentido de abarcar todo o campo relacionado com a reprodução e sexualidade humanas, passando a compreender direitos reprodutivos e sexuais, concebidos no âmbito dos direitos humanos” (PIOVESAN, 2003, p. 242).[9]
Reconhece, nessa linha, Flávia Piovesan que “a emergência dos direitos reprodutivos como direitos humanos é um fenômeno contemporâneo” (PIOVESAN, 2003, p. 272), ou, em outras palavras, os direitos sobre a sexualidade e a reprodução “chegaram tardiamente”[10], consolidados somente com a edição dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos nos anos noventa do século passado, em especial pela Declaração e o Programa de Ação sobre população e Desenvolvimento do Cairo de 1994 e pela Declaração e o Programa de Ação de Pequim de 1995 (PIOVESAN, 2003, p. 272).
Informa Leila Linhares que esses documentos básicos, mesmo não sendo textos legais, pelo menos no sentido estrito comumente empregado, por inferência de seus princípios basilares, “aprovados por consenso pelos Estados-membros das Nações Unidas”, configuram-se “como fonte do direito que devem ser incorporadas na sua interpretação e aplicação” (LINHARES apud PIOVESAN, 2001, p. 242).
O Programa de Ação da Conferência Internacional do Cairo sobre População e Desenvolvimento relaciona o conceito de direitos reprodutivos com a definição de saúde reprodutiva, em observância dos preceitos emitidos pela Organização Mundial de Saúde, assegurando que “[...] saúde reprodutiva pressupõe a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e de reproduzir-se, contando com a liberdade de fazê-lo ou não, quando e com que freqüência”, encontrando-se implícito “[...] o direito de homens e mulheres à obtenção de informação e a ter acesso a métodos de planejamento familiar de sua escolha que sejam seguros, efetivos, disponíveis e aceitáveis, bem como a outros métodos de regulação da fertilidade de sua escolha não contrários à lei”.[11]
No ordenamento pátrio, embora o termo “direitos reprodutivos” ainda não tenha adquirido assento legal, a Constituição da República de 1988, em seu art. 226, parágrafo 7º, ao dispor sobre o direito ao planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, permitiu a introdução, ainda que de modo indireto, da autonomia reprodutiva no sistema jurídico-constitucional brasileiro, complementado pela Lei nº. 9.263, de 12 de janeiro de 1996.
Para Heloisa Helena Barboza, o exame do parágrafo 7º, do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, “permite reconhecer a introdução em nosso sistema de denominada ‘autonomia reprodutiva’”, assegurando-se, para tanto, “o acesso às informações e meios para sua efetivação, ao se atribuir ao Estado o dever de propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, e ao se vedar qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (BARBOSA, 2008, p. 778).
Segundo Daniel Sarmento, o fundamento da autonomia reprodutiva pode ser extraído da “própria ideia de dignidade humana da mulher (art. 1º, III, CF), bem como nos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade (art. 5º, caput e inciso X, CF)”, sendo dotada, portanto, “de inequívoco fundamento constitucional” (SARMENTO, 2007, p. 43-44).
Sem embargos, embora não se confundam, o desenvolvimento dos direitos ligados à sexualidade e reprodução humanas preenche e fortalece o conteúdo da autonomia reprodutiva, o que é igualmente verificado com o direito ao planejamento familiar, sobretudo este, por ser o único termo expresso na Constituição da República de 1988, tem sido utilizado como fundamento normativo e axiológico dos outros dois, ainda que de modo reflexo.
No campo do direito civil, deve-se atentar para o processo de ampliação da autonomia, de modo a superar a visão individualista e patrimonialista intrínseca à construção do termo autonomia privada. Com efeito, deve-se encarar que o fenômeno da autonomia privada assume uma dimensão bem mais ampla do que o entendimento tradicional que a condensou em torno da teoria do negócio jurídico, chegando-se a considerar este como ato de autonomia privada por excelência. Sob outro ângulo, o negócio jurídico constituiria o instrumento maior da autonomia privada. No entanto, circunscrever um fenômeno tão vasto sob a ótica exclusiva de um ato jurídico patrimonialmente elaborado é sacrificá-lo, sem extrair suas potencialidades, desatendendo, assim, a vontade do constituinte de proteger integralmente a pessoa, permitindo que as escolhas existenciais – geralmente não exteriorizadas sob o manto de um negócio jurídico – encontre amparo como um ato de autonomia legítimo e merecedor de tutela.
Na trajetória desta orientação, os atos de autonomia privada não se expressam somente através da categoria dos negócios jurídicos. No âmbito das situações jurídicas subjetivas existenciais notadamente se verifica a insuficiência daquele como único instrumento legítimo de expressão amparado pela ordem jurídica. No intento de concretizar a diretriz máxima do sistema normativo-constitucional pátrio – a dignidade da pessoa humana – reclama-se pela ampliação dos meios de exteriorização da vontade real e consciente na deliberação sobre seu próprio projeto existencial, deixando ao alvedrio das pessoas, desde que não atentatório ao dever de solidariedade social e, excepcionalmente, ao conteúdo heterônomo da dignidade humana, às escolhas existenciais manifestadas por intermédio do direito à autodeterminação pessoal.
Sobre a projeção existencial da autonomia privada, Maria Celina Bodin de Moraes escreveu que:
Na legalidade constitucional a noção de autonomia privada sofre uma profunda e marcante transformação conforme a sua incidência ocorra no âmbito de uma relação patrimonial ou de uma relação pessoal, não patrimonial. Assim é justamente porque o legislador democrático, também no Brasil, tem perfeita noção de que a vida, para ser digna (CF, art. 1º, II), precisa, intrinsecamente, da mais ampla liberdade possível no que toca às relações não patrimoniais (MORAES, 2010, p. 190).
Porém, impulsos a parte da despatrimonialização do conteúdo da autonomia privada carreados pela constitucionalização do direito civil, anterior tem sido a afirmação da autonomia reprodutiva pelo discurso bioético, a qual teve de ser angariada pelo direito em virtude da crescente demanda de processos que procuram dirimir conflitos no âmbito da engenharia genética.
Assim, afora as discussões de cunho doutrinário, no plano jurisprudencial, o ajuizamento de ações constitucionais, como a ADPF nº. 54 e a ADIn nº. 3.510, bem como de habeas corpus que versam sobre o direito da gestante de interromper a gravidez de feto anencéfalo, incrementaram e fortaleceram o princípio da autonomia reprodutiva no país, a partir do momento em que julgadores tiveram de se posicionar sobre pautas antigas, mas que retornam com força, a exemplo do aborto e as tecnologias reprodutivas, como no caso da utilização para fins científicos ou terapêuticos de células-tronco de embriões humanos obtidos por meio de fertilização in vitro, todos remetendo às liberdades e capacidades ligadas à reprodução humana, seja em seu aspecto contraceptivo, mais comum, ou referente aos emergentes temas vinculados à concepção.
4. A tutela da autonomia reprodutiva em face do direito à biparentalidade do filho a ser gerado: das contribuições bioéticas à proteção jurídica
O princípio ético da autonomia reprodutiva sempre foi um dos eixos fundamentais da construção da bioética sob a perspectiva da teoria principialista[12] Segundo Debora Diniz e Dirce Guilhem, “ao final da década de 1970 estava demarcado o campo da bioética”, que desde seu início esteve fortemente vinculada à teoria principialista, devendo a esta, inclusive, a consolidação de sua força teórica. No entanto, a valorização dos princípios éticos, como ferramenta para a mediação dos conflitos morais, acabou por gerar a confusão comum da “disciplina com uma de suas correntes teóricas”, de modo que “na verdade, o que se pode verificar nesses vinte anos de hegemonia da teoria principialista na bioética é um predomínio do princípio da autonomia sobre os outros três” (DINIZ e GUILHEM, 2006, p. 34-37).
A noção de autonomia nunca foi exclusiva da área jurídica, muito pelo contrário, é possível sustentar que, muitas vezes, esta sofre influxos de outros campos do conhecimento. Se o discurso jurídico somente agora reconstrói os fundamentos da autonomia privada, antes limitada aos atos negociais, na seara bioética desde sua afirmação acadêmica que há uma sobrevalorização do princípio da autonomia, “tão caro a tradição filosófica anglo-saxã” (DINIZ e GUILHEM, 2006, p. 40-41), em virtude de estes serem os países centrais na irradiação dos conhecimentos bioéticos.
A teoria dos quatro princípios, como também é conhecida a teoria principialista, foi formulada por Tom Beauchamp e James Childress, nos Estados Unidos, e assim foi batizada por fundar-se nos princípios éticos da beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça, considerados “dogmas” na mediação dos conflitos práticos da biomedicina[13]defende que os “princípios da bioética não devem ser preteridos pelo legislador, na medida em que têm por fundamento valores reconhecidos pelo direito”, no entanto, ressalva, que, no campo jurídico, deverá ser observado o método e formulações próprios dos direito (BARBOZA, 2000, p. 215).. Heloisa Helena Barboza
Superados os debates acerca da importância do reconhecimento e respeito ao exercício da autonomia reprodutiva, atualmente, o discurso bioético enfrenta o problema sobre a “imposição ou não de limites ao exercício da autonomia reprodutiva" (DINIZ, 2003, p. 117) , em virtude, principalmente, da fragilidade do “idealismo universalizante” (DINIZ e GUILHEM, 2006, p. 33) dos princípios éticos universais capazes, supostamente, de mediarem todos os conflitos morais típicos da cartilha bioética, evidenciando a “falência universalista da teoria principialista” (DINIZ e GUILHEM, 2006, p. 33).
Desse modo, vê-se que enquanto na seara jurídica o princípio da autonomia reprodutiva vem ganhando cada vez mais projeção e vitalidade, quer no seu reconhecimento pelo direito, quer na viabilidade constitucional e efetividade quanto à sua aplicabilidade, no campo bioético seu caráter absoluto tem cedido espaço às confrontações com os interesses dos futuros filhos (DINIZ, 2003, p. 179), sem, contudo, perder sua força e centralidade tão caros a este domínio.
Assim, embora caminhem em sentidos opostos - o direito na busca pelo seu definitivo reconhecimento, enquanto a bioética recepciona a relativização da soberania da autonomia reprodutiva das pessoas[14], vislumbra-se a possibilidade de confluências entre os fundamentos e limitações em ambas as áreas, rumo a um ponto de harmonização entre as diferentes perspectivas possíveis, facilitando a consolidação e promoção do princípio da autonomia reprodutiva, sem que com isso se dê prevalência ao exercício ilimitado, característico do discurso bioético primitivo, ou descarte-se sua influência em prol dos direitos dos futuros filhos, como habituou-se o direito.
Assim, diante da tutela da autonomia reprodutiva, assentada na recente afirmação histórica dos direitos reprodutivos e sexuais no campo dos direitos humanos fundamentais (PIOVESAN, 2003, p. 272), e da ampliação do alcance do direito ao planejamento familiar ao aspecto conceptivo[15], deve-se indagar até que ponto é possível limitar estes direitos em confronto com o direito à biparentalidade? E se este não decorre do princípio do melhor interesse da criança, existe fundamento legal, e quais são estes, para a exigência da figura materna e paterna para a utilização de técnicas de reprodução assistida, especialmente face à inexigibilidade nos casos de adoção?[16]
Ainda à vigência da Resolução n. 1358/92, no que concerne aos usuários das técnicas de reprodução assistida[17], a doutrina se posicionava no sentido de somente permitir que mulheres casadas ou em união estável se submetam à reprodução artificial, de modo a evitar o risco de posterior ausência do vínculo paterno[18]. Rose Melo Vencelau Meireles entende que "acolher a possibilidade de uma pessoa ser concebida sem pai, é frustrá-la do convívio familiar e, principalmente, afrontar a sua dignidade. A criança tem direito à biparentalidade”, refutando a possibilidade de argumentação com base na proteção às família monoparentais, “pois o que se pretende com a norma do §4º do art. 226 da CF é que também tenham proteção do Estado, uma vez que venham a se formar tais circunstâncias. Diferencia-se a hipótese do legislador estimular certas situações, daquela em que se protege uma situação em que venha ocorrer, como na concretização da família monoparental" (VENCELAU, 2004, p. 56).
Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
Não há como reconhecer, em regra, o direito à reprodução em relação à pessoa sozinha, levando em conta especialmente o princípio do melhor interesse da (futura) criança que, privada do pai ou da mãe, se sujeitaria à estrutura familiar parcial, tornando-a desigual em relação às demais pessoas desde o momento da concepção. Tal regra, no entanto, não deve ser absoluta, especialmente à luz da ordem civil constitucional instaurada em 1988 no direito brasileiro. A lei nº 9263/96, no seu artigo 3º, autoriza a monoparentalidade na reprodução assistida, desde que observados, no caso concreto, os princípios constitucionais relacionados ao planejamento familiar e à assistência do Poder Público, além da própria esterilidade da pessoa (GAMA, 2003, p. 1008).
Resistências à parte de relegar a formação da monoparentalidade somente a causas imprevisíveis, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90 – se reconheceu a possibilidade de planejamento da formação da comunidade monoparental, em virtude da não restrição às pessoas solteiras, maiores e capazes, voluntariamente e deliberadamente constituírem um vínculo paterno-filial com base na socioafetividade, ou seja, através da adoção. Uma das possíveis explicações para a restrição nas hipóteses de reprodução assistida assenta-se no caráter de solidariedade social geralmente atribuído ao ato de adoção, enquanto que na procriação artificial opera-se o inverso, como se fosse um ato egoístico gerar um filho sem lhe possibilitar, ainda que futuramente, o reconhecimento da paternidade/maternidade.
É claro que ao se reconhecer o direito à reprodução são indispensáveis que se considerem os direitos fundamentais da criança, mesmo que ainda não concebidas ou nascidas, estabelecidos, no plano internacional, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas e, na ordem interna, no Estatuto da Criança e do Adolescente, visto que a decisão sobre procriar ou não interfere de modo decisivo na esfera de interesses do filho a porvir. Que tal confrontação deve necessariamente ser harmonizada não resta maiores dúvidas, em virtude da proteção antecipada ao desenvolvimento da personalidade da futura criança, no entanto, o que se debate é a controversa existência do direito da futura criança à biparentalidade, e se este deve integrar o princípio do melhor interesse da criança.
A própria convenção, em seu art. 7º, afirma que: “a criança deve ser registrada ao nascimento a ter direito a um nome, e o direito a adquirir uma nacionalidade e, na medida do possível, tem o direito de conhecer seus pais e de se criada por eles”, reconhecendo, assim, a importância da convivência familiar caracterizada pela “triangularização” do vínculo paterno-filial, no entanto, mitiga tal imposição ao aceitar que nem sempre é possível e, muito menos, indispensável a dupla figura parental (BRAUNER, 1998, p. 151).
Assim, em que pese à preponderância dos interesses da futura criança, esta deve ser entendida como a capacidade de fornecer “todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto”, não havendo incompatibilidade entre a doutrina do melhor interesse da criança e a monoparentalidade programada. O próprio texto constitucional ao expressar que o direito ao planejamento familiar funda-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade (parentalidade) responsável, ao mesmo tempo em que impõe a relatividade dos interesses do indivíduo que deseja gerar, em respeito aos direitos da futura criança, exige também que se não restrinja os direitos do eventual genitor única e exclusivamente em razão de seu estado civil, posto que a falta de “triangularização” tradicional da relação parental não enseja, por si só, prejuízos ao filho planejado.
5. O direito à reprodução e o problema da elegibilidade individual à reprodução assistida
Intensos foram os debates acerca dos efeitos da reprodução assistida sobre o campo da filiação, da inseminação post mortem, e, mais recentemente, da destinação dos embriões excedentes[19], que, por sua vez, depende da intrincada definição da natureza jurídica dos embriões congelados. A despeito dos tímidos avanços em algumas dessas questões[20], outras se qualificam e exigem novas respostas à evolução do contexto social e jurídico que, juntos, descortinam o problema da elegibilidade individual das pessoas às técnicas de reprodução assistida, a qual se acirra no caso dos homens solteiros, pois a regulamentação da gestação de substituição ainda não ocorreu, discutindo-se, inclusive, sua licitude.
Contudo, ao invés da opção pelo debate, se legítimo ou não o emprego dessas técnicas como via de formação de uma família, garantido através do direito à procriação[21] - que até pouco tempo atrás sempre fora visto como mera faculdade[22], preferiu-se a restrição imediata, calcada na suposta proteção do bem-estar da criança a ser gerada, a exemplo da Europa, em oposição ao amplo reconhecimento do direito de ter filhos, com base na proteção da privacidade, inexistindo, portanto, distinção se por meio de relação sexual ou tecnologias conceptivas, como é o caso dos Estados Unidos (BARBOZA, 1993, p. 38).
No entanto, em que pese à formação dessas duas linhas de entendimento, na América Latina, optou-se, ao menos, num primeiro momento, pelo ocultamento dessas questões[23], sendo que o tardio debate legislativo brasileiro tem-se inclinado a vertente adotada em alguns países europeus.[24]
Relata Heloisa Helena Barboza, com base nos ensinamentos de Encarna Roca i Trías, que já na década de oitenta do século passado, época de expansão no uso das técnicas de reprodução medicamente assistida, mais precisamente no ano de 1987, em “[...] consulta ao Comitê Diretor dos Direitos Humanos (CDDH) sobre a existência ou não do direito de procriar, mas precisamente sobre a garantia, na Carta Européia, de um direito absoluto de procriar, incluído no direito à vida”, obteve-se uma resposta negativa do Comitê. Nesse sentido, reconhece a autora que “em sentido estrito, nem a Comunidade Européia, nem Declarações e Convênios Internacionais, reconhecem explicitamente o direito de procriação como tal, mas apenas o ‘de fundar uma família’” (BARBOZA, 2008, p. 780-781).
Essa, inclusive, já havia sido a recomendação do Relatório Warnock, primeiro documento de consulta sobre as tecnologias reprodutivas, tido como marco ético para o debate legislativo internacional, produzido em 1984, na Grã-Bretanha, no qual se sugere “[...] como uma regra geral, é melhor para as crianças nascerem em uma família composta por pai e mãe, apesar de se reconhecer a impossibilidade de determinar-se ou predizer com certeza quanto tempo tal relacionamento durará” (QUEIROZ, 2002, p. 28-29).
Em que pese à questão do acesso às tecnologias reprodutivas, e, consequentemente, da forma de organização familiar possível de ser constituída a partir dessas técnicas estejam “[...] sendo regulado[s] na própria prática, isto é, em função do poder aquisitivo dos solicitantes” (CORRÊA; LOYOLA, 2005, p. 106), a inclusão ao debate da temática dos direitos reprodutivos tem modificado as estruturas jurídicas e sociais que emolduravam o tratamento destinado à compreensão do matéria.
Assim, é a própria atividade de (re)interpretação do tecido normativo que tem permitido o retorno das discussões sobre o tema, que, se não fosse a inexistência de regulamentação, pareceriam solucionados, ao menos do ponto de vista da moral cristã, que não admite a utilização dessas tecnologias por casais homoafetivos e pessoas solteiras com animus de constituir família, ainda que monoparental.
Desse modo, infere-se do próprio texto da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamentou o art. 226, parágrafo 7º da Constituição de 1988, a ampliação e o novo entendimento do direito ao planejamento familiar no país. Ademais, ao incluir “a assistência à concepção e contracepção”, devendo, para tanto, serem oferecidos “todos os métodos e técnicas [...] cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”, nos respectivos artigos 3º, parágrafo único, I e 9º, permitiu que se incluíssem as novas tecnologias reprodutivas como possíveis recursos à concepção.
No entanto, cabe perquirir ainda se é possível aplicar tais dispositivos em relação à todas as pessoas, independentemente de pertencerem as entidades familiares mencionadas no art. 226 do CRFB/1988 ou se é dispensável a previsão na lex matter, adotando-se a exemplificatividade do rol, e, por fim, qual deve ser o entendimento dado ao termo “casal” presente no artigo 226, parágrafo 7º, visto que a partir dessa interpretação, literal ou sistêmica, os efeitos e consequências daí advindos serão espraiados em toda a análise da matéria.
Vale lembrar, entretanto, que o artigo 1º da Lei complementar sobre planejamento familiar declara expressamente ser direito de todo cidadão, não permitindo, portanto, fazer ressalvas acerca das pessoas elegíveis às técnicas de reprodução assistida, mesmo que individualmente consideradas e com fins à instituição da monoparentalidade, de forma planejada e consciente, entendimento não comungado, contudo, com grande parte da doutrina pátria.
É bastante comum a confusão entre as garantias de acesso - que abarca a análise tanto de elementos de ordem objetiva, subjetiva e formal, e que acaba por englobar a questão mais específica da elegibilidade às técnicas de reprodução assistida - que corresponde tão-somente aos sujeitos elegíveis aos procedimentos.
Como o debate sobre o acesso aos serviços de procriação artificial encampa desde o problema da desigualdade, em virtude dos altos valores envolvidos, até à instabilidade emocional dos pacientes, o exame da matéria acabou por ser direcionado como questão de saúde pública, a reboque da definição pela Organização Mundial de Saúde, impondo, portanto, a observância dos princípios da universalidade e equidade contidos no dispositivo constitucional reservado à promoção do direito à saúde, art. 196, da Constituição de 1988.
No entanto, enquanto não se define a opção político-legislativa acerca da terapeuticidade ou não do ato médico de reprodução assistida, defende Debora Diniz que “a maneira mais razoável e não discriminatória de fundamentar a elegibilidade às técnicas reprodutivas seria deslocá-las do campo da saúde e aproximá-las do campo dos direitos fundamentais, em especial do direito ao planejamento familiar” (DINIZ, 2006, p. 9).
Alguns são os motivos que se apresentam, parecendo ser favorável à discussão este deslocamento. Primeiro, em virtude da dificuldade em se diagnosticar, em muitos os casos clínicos, a infertilidade. Em segundo, consiste na grande confusão provocada entre os termos infecundidade e infertilidade, que, muito embora, não se confundam, diversos estudos e projetos de lei utilizam indistintamente os termos.
Sobre o assunto, discorre Debora Diniz que “Infertilidade e infecundidade são expressões de diferentes fenômenos, apesar de no campo das tecnologias reprodutivas serem dois conceitos intimamente ligados”, ensinando ainda que “a infecundade é a ausência de filhos. [...] pode ser voluntária ou involuntária. No primeiro caso, a ausência de filhos é parte de um projeto pessoal ou conjugal e não se expressa como um problema biomédico. Já a infecundidade involuntária é aquela comumente traduzida em termos biomédicos como sinônimo de infertilidade” (DINIZ, 2005, p. 1).
Desse modo, a afirmação da autonomia reprodutiva dentro do ordenamento jurídico nacional, mesmo que por via oblíqua, e o reconhecimento do aspecto conceptivo (ou positivo) do direito ao planejamento familiar embasam a existência de um direito à procriação, que embora ainda questionável seu status jurídico dentro do ordenamento pátrio, se mera faculdade, direito individual ou direito fundamental, tendenciosa tem sido a doutrina em acatar o último enquadramento.
O que, em princípio, poderia aparentar um locus normativo condizente com a tutela da reprodução humana pretendida, e, consequentemente, traduzir-se em proteção adequada, não tem alterado substancialmente os limites jurídicos do exercício desse direito, eis que o colocam dentre os direitos humanos fundamentais mais relativizados[25] frente à colisão com os demais, restando-lhe posição desprivilegiada na ponderação destes, em que pese a sua consideração como uma das manifestações dos direitos fundamentais.
6. O tratamento da elegibilidade na Resolução CFM n. 1.957/2010
Ao contrário da disposição expressa na Resolução CFM n. 1.358/1992, que restringia a utilização das técnicas de reprodução assistida às mulheres solteira, casadas ou em união estável, a nova Resolução CFM n. 1.957/2010 modificou este entendimento, ampliando os possíveis sujeitos receptores destas técnicas para “todas as pessoas capazes”.
Desse modo, ressalta Debora Diniz que foi preciso uma espera de “quase duas décadas para afirmar publicamente que o desejo de filhos é algo comum a todas as pessoas” (DINIZ, 2011). Ou seja, a partir da interpretação desta norma, pode-se inferir que “um homem sozinho, uma mulher lésbica, uma travesti ou uma pessoa intersexo, qualquer uma delas pode ter seu desejo de filhos realizado com o auxílio das técnicas médicas” (DINIZ, 2011).
Com efeito, o inteiro teor do item II do anexo único da resolução que trata dos pacientes das técnicas de reprodução assistida está contido na seguinte disposição:
1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente.
Logo após sua publicação, a modificação foi alardeada na mídia como “uma revolução moral sem precedentes no campo da família no Brasil” (DINIZ, 2011), o que pode, equivocadamente, ensejar que a elegibilidade à reprodução assistida seja irrestrita, desprovida de limites. Em que pese se revele como um importante passo rumo à democratização no acesso às técnicas de reprodução assistida e respeito à autonomia reprodutiva das pessoas, independentemente da opção sexual, não se pode olvidar os demais valores em jogo, sob pena de conceder-lhe uma proteção ilimitada desprovida das necessárias ponderações, de modo a assegurar os direitos da futura criança.
Com efeito, a nova resolução ao se referir a “todas as pessoas capazes” possibilita um avanço significativo, em detrimento da postura tradicional de afirmação da heterossexualidade e da família matrimonializada. No entanto, caberia a uma lei ordinária, conquanto seja a sede adequada, o tratamento da questão da elegibilidade conjugal e individual à reprodução assistida, ainda que dependente da gestação em substituição, de modo a balancear os princípios fundamentais envolvidos.
O principal mérito desta resolução, em razão de ser uma ferramenta voltada precipuamente aos médicos, reside em fornecer parâmetros éticos na atuação médica, conscientizando-os que o desejo de filhos não é restrito aos casais heterossexuais, mas pelo contrário, estendem-se às demais pessoas, independentemente do estado civil e opção sexual. Mesmo que através de uma norma ética, concede segurança à equipe médica, que se encontra respaldada por uma diretriz emanada de seu próprio órgão de classe. Neste sentido, pelo menos, em princípio, “um médico de medicina reprodutiva não poderá se recusar a atender um casal de mulheres lésbicas ou um homem sozinho que faça uso de uma gravidez de substituição para ter filho” (DINIZ, 2011).
É inquestionável o avanço desta norma ética ao ampliar significativamente as pessoas elegíveis ao recurso às técnicas de reprodução assistida no Brasil, desvinculando-se, a princípio, da exigência de biparentalidade heterossexual ou das denominadas “produções independentes”[26]. Embora direcionada aos médicos que atuam na área da reprodução assistida, esta resolução é relevante na medida em que há mais de duas décadas se espera por uma regulamentação ordinária sobre o tema no ordenamento jurídico. No entanto, por inércia do legislador brasileiro, se aglomeram os projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional.[27]
Desse modo, em que pese uma interpretação mais condizente com os preceitos constitucionais permitisse a possibilidade de ampliar o rol de pacientes das técnicas artificias procriativas ainda sob a égide da resolução anterior, não se pode descurar da importância desta norma ética no sentido de respaldar uma atuação médica sem preconceitos. Assim, a partir da vigência da nova resolução começa a se dissipar as dúvidas existentes anteriormente e confere, ao menos, amparo ético às práticas médicas, diluindo as eventuais responsabilidades futuras. Neste sentido, escreveu Debora Diniz que como “um homem sozinho ou uma mulher gay em união estável não eram acolhidos pela antiga resolução, [...] os médicos poderiam se sentir intimidados em atendê-los pelo risco de um processo ético no conselho” (DINIZ, 2011).
No entanto, não se pode, do ponto de vista jurídico, recepcionar esta nova norma ética como uma medida extremada e ilimitada, concedendo um caráter quase que absoluto ao direito à reprodução, como expressão da autonomia reprodutiva das pessoas humanas, tendo em vista que há outros valores em jogo, e estes devem merecer a devida atenção em um ordenamento unitário e que encontra na Constituição seu fundamento e sua tábua axiológica a guiar e condicionar toda a legislação infraconstitucional, reinterpretando todas as normas legais à luz de seus comandos. Como já afirmado, embora esta resolução não possua força normativa em sentido estrito, sendo considerada um ato normativo lato sensu de cunho deontológico, voltado para a classe médica, deve-se proceder ao necessário exame a partir das normas constitucionais envolvidas no caso.
Desse modo, a resolução em questão afigura-se como um instrumento hábil a direcionar a atuação dos médicos, tendo, acertadamente, ampliado os sujeitos elegíveis às técnicas de reprodução assistida. Não cabe ao médico eleger quem são as pessoas legitimadas a se submeterem ao recurso da medicina reprodutiva, discriminando os pleiteantes em virtude do estado civil ou opção sexual. Mas é papel do direito, a partir dos comandos constitucionais, realizar o equacionamento dos valores envolvidos, de modo a respeitar à autonomia reprodutiva e o direito ao planejamento familiar, ao mesmo tempo em que se asseguram os direitos do filho a porvir.
7. O desejo de ter filhos entre o livre planejamento familiar e a paternidade responsável: em busca da ponderação necessária de índole constitucional
O advento da Constituição de 1988 alterou de vez os possíveis rumos que viessem a ser adotados pela legislação infraconstitucional no tocante à reprodução assistida, um dos principais temas integrantes da nova disciplina em desenvolvimento, o biodireito[28]. O reconhecimento, não mais puramente formal, da supremacia e da força normativa à Constituição tem delineado a fisionomia e os pilares sobre os quais o biodireito vem sendo edificado, visto que ainda em constante construção. Com efeito, a dignidade da pessoa humana, elevada a valor nuclear da ordem jurídica, juntamente com os demais princípios fundamentais, passa a formar o substrato axiológico desse novo subsistema jurídico.
Nessa esteira, vastos são os desafios impostos pelos temas de biodireito à hermenêutica jurídica, demandando da doutrina ainda a real dimensão e extensão dos preceitos constitucionais à matéria. Enquanto sede maior dos princípios protetivos da pessoa humana, sempre coube a Constituição o papel de orientação aos problemas provocados pelos progressos da biotecnologia, atuando como bússola valorativa à produção legislativa.
Por outro lado, a inexistência, até os dias atuais, de regulamentação específica sobre o tema traz à tona, em assimetria com o desenvolvimento, em terreno constitucional, da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, a possibilidade de incidência direta das normas presentes no Texto Maior nas relações decorrentes da reprodução assistida[29]. Assim, embora vultosa a influência da Constituição sobre o biodireito, permanecem ainda obscuros a intensidade e forma de incidência.
Pietro Perlingieri sustenta que para uma eventual disciplina normativa “é preferível a técnica legislativa por princípios àquela do tipo regulamentar”. No entanto, entende ser “duvidoso que também uma lei formulada por princípios seja útil, na medida em que princípios relativos aos problemas da pessoa já encontram completa expressão no Texto Maior” (PERLINGIERI, 2002, p. 175).
Sem embargos, a Constituição se aloca como a sede normativa mais apropriada a encaminhar as soluções jurídicas a todos os conflitos decorrentes da reprodução assistida, sendo comum na doutrina o reconhecimento da importância do Texto Maior nesse domínio. No entanto, não é usual a defesa da aplicabilidade imediata dos preceitos constitucionais, relegando-se a Constituição o papel de vetor interpretativo, sob o qual as leis que vierem a ser editadas deverão estar em perfeita consonância e harmonia com seus ditames, sobretudo em conformidade com os direitos fundamentais.
Tal entendimento é facilmente depreendido dos ensinamentos de José de Oliveira Ascensão que ao invocar a Constituição portuguesa como norte para o tratamento de temas bioéticos, demonstra que não se deve “[...] procurar na Constituição soluções concretas, mas grandes orientações. E essas há que buscar, não apenas à luz da noção substancial de pessoa, mas pela análise do conteúdo de direitos consagrados, como direito à vida, à integridade pessoal e outros [...]” (ASCENÇÃO, 1995, p. 11).
Em sentido contrário, sobre a possibilidade de aplicação direta da Constituição nas relações privadas, Daniel Sarmento expõe que “a Constituição não necessita da mediação do legislador civil para incidir sobre tais relações, podendo, por si só, alcançá-las com seus comandos”, e completa, em relação à inexistência de legislação, que “o fato de o legislador privado quedar-se inerte não frustra a possibilidade de incidência das normas constitucionais” (SARMENTO, 2004, p. 101).
Avanços biotecnológicos e biomédicos, em particular as técnicas de reprodução assistida, ungem os homens a se depararem com dilemas éticos impensáveis e, até mesmo, inconcebíveis à consciência social dominante vigente, sendo tamanhos seus desdobramentos que somente a própria Constituição é suficientemente hábil a dirimir os possíveis conflitos jurídicos que venham a surgir. Neste sentido, cabe indagar quais são os possíveis comandos constitucionais em confronto e como estes se aplicam, ainda que diretamente, às questões de elegibilidade à reprodução assistida.
No plano constitucional brasileiro, o direito ao planejamento familiar está assegurado no art. 226, § 7º, em que se considera como “livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. O próprio dispositivo diz que o direito ao planejamento familiar se funda nos princípios da dignidade da pessoa humana e da parentalidade responsável, o que demonstra, de forma expressa, os seus fundamentos e os parâmetros aceitáveis para seus limites.
É preciso um esforço maior da doutrina no sentido de definir o princípio da parentalidade responsável, no entanto, este não deve servir como um reforço do modelo histórico de família e filiação calcados em uma moral heterossexual e matrimonial. A orientação sexual e o estado civil não devem excluir, a princípio, o direito de planejamento familiar, ainda que individualmente exercido, nem afastá-lo diante de uma suposta presunção de ofensa da parentalidade responsável pela ausência do vínculo paterno ou materno.
A intenção inequívoca de constituir uma família não pode ser encarada como um mero desejo de ter filhos, mas como um direito legítimo de concretização do projeto parental. Embora muitos encarem como um ato de egoísmo por parte de quem individualmente recorre à reprodução assistida, em virtude da privação do convívio familiar da futura criança com um duplo vínculo parental, esta visão não merece prosperar, pois a inicial ausência pode ser suprida durante a vida, através de outras figuras como avós, tios e padrinhos, bem como é discriminatório restringir o acesso à reprodução assistida nos casos em que somente através dessa via é possível a concretização do desejo parental na medida em que, pelas circunstâncias e infortúnios da vida, é impossível o direito assegurar o direito à biparentalidade.
Desse modo, não se entende ser possível extrair nem do princípio do melhor interesse da (futura) criança, nem ser um pressuposto do princípio da parentalidade responsável o direito à biparentalidade do filho a porvir, na medida em que se utiliza de um discurso de proteção integral ao futuro desenvolvimento da personalidade da criança, tão caro ao direito contemporâneo, com fins de manutenção do modelo familiar heterossexual e matrimonial e restrição do direito ao planejamento familiar de grupos socialmente minoritários, tais como os homossexuais e os transexuais.
Por fim, entende-se pela compatibilidade da resolução CFM n. 1.957/2010, II, 1 com os comandos constitucionais pertinentes. Independentemente da discussão acerca da legitimidade destas resoluções, que, embora sejam normas éticas, à ausência de lei regulamentadora possam ter algum grau de normatividade, reconhece-se que os princípios constitucionais tem aplicação imediata às relações de biodireito, razão pela qual desde a ordem civil-constitucional inaugurada com a Constituição de 1988 é possível o recurso individual à reprodução assistida.
Considerações finais
As possibilidades e alternativas geradas pelas técnicas de reprodução assistida criaram as mais profundas inquietações éticas e jurídicas, a partir do momento que se artificializou o ato de procriar, mas, sobretudo, quando grupos sociais, historicamente minoritários e excluídos - a exemplo de casais homoafetivos, transexuais e pessoas solteiras, enxergaram a possibilidade de realização parental e, consequentemente, de constituição familiar por intermédio das técnicas reprodutivas artificiais.
Assim como às questões ligadas à sexualidade, o campo da reprodução deve ser encarado como um dos espaços mais íntimos da pessoa humana, domínio pertencente à reserva de intimidade dos sujeitos ou de casais, ainda que se reporte a eleição da via conceptiva artificial para a concretização do projeto parental. Nessa esteira, a tutela jurídica a incidir deve ser capaz de assegurar a dignidade e integridade psicofísica dos envolvidos – os que desejam gerar e os que serão gerados, o que não se confunde com obrigatoriedade de biparentabilidade heterossexual.
O recente reconhecimento dos direitos reprodutivos como direitos humanos fundamentais na esfera internacional e do direito ao planejamento familiar, estabelecido no art. 227, § 6º da Constituição da República de 1988, fortalece o reconhecimento do princípio da autonomia reprodutiva, que, por sua vez, reforça a existência de um direito fundamental à reprodução, e, ambos, respeitados os princípios da liberdade e da igualdade, não permitem a restrição, com base em gênero ou formas de conjugalidade, à utilização das técnicas de reprodução assistida, descabendo, portanto, a limitação, em razão única e exclusivamente do estado civil, sobretudo quando houver induvidosa intenção de constituir uma família, ainda que seja monoparental, posto que reconhecida em sede constitucional.
Além disso, a nova concepção da família contemporânea contempla uma visão instrumental das estruturas familiares, concebendo uma diversidade de entidades familiares, todas voltadas às exigências humanas existenciais. Desse modo, o ato de reprodução não deve se restringir aos desejos individuais, no entanto, o direito à reprodução por meio de técnicas de reprodução assistida também não deve ser restringido em função de uma visão ultrapassada da necessidade de biparentalidade heterossexual para o desenvolvimento da personalidade da futura criança, ainda a ser concebida.
Neste sentido, entende-se pela compatibilidade da resolução CFM n. 1.957/2010, II, 1 com os princípios constitucionais, em que pese se reconheça que os princípios constitucionais tem aplicação imediata às relações de biodireito, mais apropriadamente, à questão da elegibilidade à reprodução assistida, razão pela qual desde a ordem civil-constitucional inaugurada com a Constituição de 1988 é possível o recurso individual à reprodução assistida.
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[1] Sobre a construção de um novo modelo familiar democrático e suas características jurídicas no cenário nacional remete-se a Maria Celina Bodin de MORAES. A família democrática. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 207-234.
[2] Para uma análise da pluralidade de entidades familiares no ordenamento brasileiro sugere-se a leitura de Ana Carla Hermatiuk MATOS. “Novas” entidades familiares. In: ________ (Org.). A construção dos novos direitos. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2008, p. 16-32.
[3] Segundo Marilena C. D. V. Corrêa “a literatura não médica refere-se a esse conjunto de técnicas como novas tecnologias reprodutivas e conceptivas (NTRc)” (Bioética e reprodução assistida. Infertilidade, produção e uso de embriões humanos. In: LOYOLA, Maria Andréa (Organizadora). Bioética, reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP); Brasília: LetrasLivres, 2005, p. 56).
[4] Esse método é utilizado com sucesso desde 1978 quando nasceu o primeiro “bebê de proveta” do mundo, Louise Joy Brown, que concretizou a possibilidade da concepção de um ser humano in vitro. BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 248.
[5] Neste sentido, Debora Diniz e Rosely Gomes Costa concluem que “o potencial de mudança trazido pelas tecnologias reprodutivas quanto à reprodução e à sexualidade tem redundado muitas vezes na afirmação de noções convencionais de gênero“(Infertilidade e Infecundidade: Acesso às Novas Tecnologias Conceptivas.In: SérieAnis, n. 37, Brasília: LetrasLivres, 2005, p. 7).
[6] Discorre Debora Diniz que “[...] o curioso é que o silêncio não é uma imposição da autoridade médica, mas um acordo tácito entre quem sonha com o filho e o mercado de bebês. A medicina reprodutiva negocia um valor central à vida social - a reprodução biológica” (Entre o sonho, o tratamento e o vácuo da lei. O Estado de São Paulo, São Paulo, 24 jan. 2009, p. 5).
[7] Em sede de presunção de paternidade, o tema foi parcialmente regulado pelo Código Civil de 2002 no art. 1.597, incisos II, IV e V, enquanto o art. 5º, incisos e parágrafos, da Lei 11.105 – Lei de Biossegurança, de 24 de março de 2005, dispõe sobre a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos via fertilização in vitro e não aproveitadas no procedimento médico, tendo, inclusive, sido objeto de ação declaratória de inconstitucionalidade (ADIn n. 3.510), na qual os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram ser compatível com a Constituição o dispositivo mencionado.
[8] Conforme a resolução dispõe, somente “[...] podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.”
[9] Esclarece, ainda, Flavia Piovesan e Wilson R. Buquetti Pirotta que os direitos reprodutivos correspondem a uma gama diversificada de casos, como o aborto, o adultério, a esterilização cirúrgica, estupro, dentre outros, ressaltando, por isso, que a “abrangência do tema dos direitos reprodutivos dificulta a pesquisa sistemática” (Direitos Reprodutivos e o Poder Judiciário no Brasil. In: OLIVEIRA, Maria Coleta; ROCHA, Maria Isabel Baltar da (orgs.). Saúde reprodutiva na esfera pública e política na América Latina. Campinas, SP; Unicamp/Nepo, 2001, 157).
[10] Ressalta Cristina Zurutuza que “a primeira menção a que o tamanho da família deva ser ‘de livre opção do casal‘ aparece na Declaração Geral da ONU de 1966“, acompanhada pela Declaração de Teerã de 1968, que incorporou o planejamento familiar como direito (Para uma convenção interamericana pelos direitos sexuais e reprodutivos. In: OLIVEIRA, Maria Coleta; ROCHA, Maria Isabel Baltar da (orgs.). Saúde reprodutiva na esfera pública e política na América Latina. Campinas, SP; Unicamp/Nepo, 2001, 192).
[11] Programme of action of the UNICPD. Reproductive rights and reproductive health: basis for action, item 7.2, apud, PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 243.
[12] Sobre o domínio da teoria principialista nas duas primeiras décadas após a consolidação acadêmica da bioética nos anos setenta do século passado, vide DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo; Brasiliense, 2006, p. 25-33.
[13] Vicente de Paulo Barreto expõe que: “O primeiro desses princípios, o princípio da autonomia, considera como base das decisões a serem tomadas relativas ao uso de terapias e o desenvolvimento das pesquisas, o respeito à autonomia do ser humano, que serve para determinar os limites a aplicação terapêutica e na utilização do corpo humano, como objeto de pesquisas científicas (Declaração universal do Genoma Humano da UNESCO, 1997); o segundo princípio, o da beneficência, enfatiza a busca do bem-estar do paciente, incluindo a proibição de prejudicar o doente, sendo o mais antigo e tradicional, constituindo-se no núcleo do juramento hipocrático; o terceiro princípio, estabelece o tratamento justo e equânime de todas as pessoas, expressando, mais do que os outros, os valores morais implicados na dimensão social do estado democrático de direito” (As Relações da Bioética com o Biodireito. In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 50).
[14] Sobre o caráter relativo dos princípios mediadores - autonomia ou beneficência - da bioética, vide DINIZ, Debora. Bioética: fascinación y repulsión. Acta bioethica, Santiago, v. 8, n. 1, 2002, p. 42-43. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726-569X2002000100005&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 10 Abr. 2009.
[15] A interpretação do art. 1º cominado com os artigos 3º, parágrafo único, I e 9º da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, de uma vez por todas, superou a restrição conceitual calcada no seu aspecto contraceptivo. Observa, no entanto, Heloisa Helena Barboza que “[...] à semelhança do verificado em outros países, predominam as ações voltadas para a anticoncepção: as políticas e plenos governamentais têm sido notoriamente direcionados para o aspecto negativo do planejamento familiar” (Reprodução humana como direito fundamental. In: Carlos Alberto Menezes Direito; Antônio Augusto Cançado Trindade; Antônio Celso Alves Pereira. (Org.). Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo. 1. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 785).
[16] Art. 42. Podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente de estado civil. Em 03 de agosto de 2009, com a promulgação da Lei n. 12.010, foi alterado este dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente, que com a nova redação está em consonância com a redução da maioridade civil estabelecida no art. 5º do Código Civil de 2002, nos seguintes termos: “Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil”.
[17] Nos termos da Resolução CFM n. 1.358/1992, II, 1 e 2: II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA. 1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado. 2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.
[18] Neste sentido, se posicionam: FACHIN, Luis Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2. ed., Rio de janeiro: Renovar, 2003 p. 256; BARBOZA, Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização "in vitro". Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 67 a 72 e 113.
[19] Denominados, ainda, de excedentários ou supranumerários.
[20] Em sede de presunção de paternidade, o tema foi parcialmente regulado pelo Código Civil de 2002 no art. 1.597, incisos II, IV e V, enquanto o art. 5º, incisos e parágrafos, da Lei 11.105, de 24 de março de 2005 – Lei de Biossegurança, dispõe sobre a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos via fertilização in vitro e não aproveitadas no procedimento médico, tendo, inclusive, sido objeto de ação declaratória de inconstitucionalidade (ADIn n. 3.510), na qual os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram ser compatível com a Constituição o dispositivo mencionado.
[21] Heloisa Helena Barboza, em obra pioneira sobre o assunto, já alertava que a questão do direito a se ter filhos “não tem natureza meramente teórica, visto que tal definição imporá os rumos que se devam dar à matéria”, argumentando que “se entendido como direito fundamental, não há que se criar qualquer impedimento às técnicas que resultem na ausência de um dos genitores, como ocorre na inseminação artificial de mulheres solteira” (A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização “in vitro”, cit., p. 37-38).
[22] Sustenta Eduardo de Oliveira Leite que “Este ‘direito’ invocado é apenas uma faculdade, ou melhor, uma liberdade. Catherine Labrusse-Rieu e J. L. Baudoin jé se referiram sobre a matéria em termos bastante claros. Existe uma liberdade de engendrar filhos. Quando a natureza se opõe, o direito médico e social criaram um verdadeiro direito à cura da esterilidade tentando vencer este handicap e permitindo o exercício da liberdade de procriar. Entretanto, procriar não é um direito. [...]” (Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 356).
[23] Segundo Debora Diniz e Rosely Gomes Costa “[...] A questão do acesso foi um debate esquecido na América Latina, em especial na última década quando houve um enorme crescimento das clínicas de reprodução assistida”, e complementam que “[...] foi somente com o início do debate legislativo em diferentes países latino-americanos que o tema da elegibilidade foi seriamente enfrentado como uma das questões centrais à regulamentação do uso e acesso às tecnologias” (Infertilidade e Infecundidade: Acesso às Novas Tecnologias Conceptivas, cit., p. 1).
[24] Heloísa Helena Barboza já sinalizava, em obra publicada no mesmo ano do início do debate legislativo brasileiro sobre a reprodução assistida, que, diante dos preceitos esculpidos na Constituição de 1988, parece “mais condizente com nossa ordem constitucional o entendimento do Parlamento europeu”( A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização “in vitro”, cit., p. 39).
[25] Defende Heloisa Helena Barboza que “o reconhecimento do direito à reprodução, em seus aspectos positivo e negativo, não pode conferir-lhe caráter absoluto” (Reprodução humana como direito fundamental, cit., p. 786). Guilherme Calmon Nogueira da Gama também sustenta que o “[...] direito à reprodução não é absoluto - como nenhum direito fundamental também não o é - e, desse modo, somente deve ser exercido dentro dos limites que lhe são impostos pelo próprio ordenamento” (A nova filiação, cit., p. 723).
[26] Como se convencionou chamar as decisões de mulheres solteiras em concretizar o desejo maternal, seja via reprodução sexuada, em que ou o pai biológico desconhece a posterior fase gestacional da mulher ou concorda em deixar a cargo exclusivamente da mulher o exercício de guarda e cuidado da criança a porvir, sem nem mesmo que haja a atribuição da paternidade na certidão de nascimento. É possível ainda o recurso às técnicas de reprodução assistida mediante a doação de gameta masculino.
[27] Sobre o debate legislativo acerca da reprodução assistida já se teve oportunidade de examinar, razão pela qual seja consentida a transcrição: “Muito já se especulou sobre a proximidade de edição de uma legislação federal sobre reprodução assistida desde a propositura do primeiro projeto de lei n°. 3.638/1993, do então deputado Luiz Moreira, sem, contudo, ultrapassar-se da iminência de aprovação. A iniciar-se do atraso de quase dez anos para o debate legislativo, se adotarmos o nascimento do primeiro bebê de proveta brasileiro como marco temporal, em 1984, até o período atual, lá se vão mais de vinte anos à espera de atuação do legislativo.
Embora de início já tardio, o debate legislativo para a regulamentação das técnicas de procriação artificial somente adquiriram robustez em finais dos anos 90, com a discussão no Senado Federal, juntamente com o anúncio da clonagem da ovelha dolly e com o crescimento da pesquisa genômica.
É considerável o número de projetos de lei sobre reprodução assistida em tramitação no Congresso Nacional. Atualmente, o que se encontra em estágio mais avançado é o 1184/2003, proveniente do Senado Federal. Sua versão inicial é de autoria do senador Lúcio Alcântara sob o n°. 90, de 1999, sendo relator o senador Roberto Requião, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Em modificação ao projeto de lei original, foram apresentados substitutivos de autoria do senador Roberto Requião e o do senador Tião Viana.
Esse projeto de lei já foi apresentado e discutido em todas as comissões do Senado Federal, tendo sido enviado para apreciação pela Câmara Federal em junho de 2003. No encaminhamento entre as casas legislativas, foram apensados ao 1.184/2003, e, por isso, possuem tramitação legislativa conjunta, os projetos 2.855/1997, de autoria do deputado Confúcio Moura, o 120/2003, do deputado Roberto Pessoa, e o 2.061/2003, da deputada Maninha” (ALMEIDA JÚNIOR, Vitor de Azevedo de; CASTRO, Raul Murad Ribeiro de; SOUZA, Allan Rocha de. A Constituição e a regulamentação da reprodução assistida. In: Anais do XVII Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 303. Disponível em: <www.conpedi.org.br>. Acesso em: 18 set. 2011). Atualmente, o projeto de Lei nº. 1.184/2003 aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, sendo extensa sua árvore de apensados: 120/2003; 4686/2004; 2855/1997; 4665/2001; 1135/2003; 2061/2003; 4889/2005; 4664/2001; 6296/2002; 5624/2005; 3067/2008 e 7701/2010 (Atualizado até 18 set. 2011).
[28] Judith Martins-Costa define Biodireito como o “termo que indica a disciplina, ainda que nascente, que visa determinar os limites de licitude do progresso científico, notadamente da biomedicina, não do ponto de vista das ‘exigências máximas’ da fundação e da aplicação dos valores morais na práxis biomédica - isto é, a busca do que se ‘deve’ fazer para atuar o ‘bem’ - mas do ponto de vista da exigência ética ‘mínima’ de estabelecer normas para a convivência social”(Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção de um biodireito. In: Revista Trimestral de Direito Civil. n. 3., Rio de Janeiro: Padma, 2000, p. 64).
[29] Para uma análise mais profunda, permita-se remeter a ALMEIDA JÚNIOR, Vitor de Azevedo; CASTRO, Raul Murad Ribeiro de; SOUZA, Allan Rocha de. A Constituição e a regulamentação da reprodução assistida. In: Anais do XVII Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 296-317. Disponível em: <www.conpedi.org.br>. Acesso em: 19 set. 2011.
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