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A família e a nova constituição do egito
A Constituição do Egito, promulgada recentemente, é a mais nova constituição do mundo. Por essa condição, deveria conter, em si, a síntese dos avanços sociais e a garantia dos direitos humanos já consolidados nos países mais abertos à renovação. Nesses aspectos, houve um retrocesso em relação à Constituição de 1971.
Extraio do novo texto constitucional o artigo dez, único a tratar da instituição da família, e me decepciono com os retrocessos que ali se consolidaram.
Inicia o referido artigo dizendo que a família é fundada na religião, na moralidade e no patriotismo. São três nós, anunciados de maneira vaga, que podem coarctar a expansão democrática da família egípcia, em rumo oposto à família contemporânea que convive com a liberdade de afirmação de cada membro, a dignidade e a busca da felicidade. Que religião, que moralidade e que patriotismo o Estado egípcio pode impor às famílias sem ferir a autonomia de vontade dos seus membros?
Em seguida, ainda no mesmo artigo, alude ao caráter “genuíno da família egípcia”, a coesão, a estabilidade e a proteção dos valores morais. São conceitos indeterminados que podem levar a uma intervenção exagerada (hoje não mais admissível) do Estado na vida familiar e a um monopólio que se afigura insustentável, pois os valores morais não podem ser ditados como se fossem regras pétreas. A evolução da sociedade e das relações familiares não ficam estagnadas diante da mutação globalizada que se verifica hoje com tamanha rapidez.
Fica evidente que a base do direito de família, no Egito, será a Sharia, a lei islâmica, com todas as suas implicações. A própria Constituição, em seu artigo 219 (Os princípios da Sharia Islâmica incluem prova geral, regras fundacionais, regras jurisprudenciais e fontes confiáveis aceitas pelas doutrinas Sunni e pela comunidade em geral), destaca os princípios da Sharia como fontes básicas da hermenêutica e da doutrina islâmica.
Omitiu a citada constituição tratar sobre a proteção das crianças e a proibição de casamentos forçados com meninas impúberes, uma prática antiga que ainda se verifica em algumas regiões daquele país.
A Primavera Árabe, libertadora no seu propósito político, não teve força suficiente para libertar a família daqueles países da ditadura religiosa, da ingerência do Estado na vida privada. A mulher continua sendo um objeto doméstico, subordinada ao marido ou dependente do irmão e do pai.
Sabe-se que o Egito foi o primeiro país árabe a eleger uma mulher para o parlamento, em 1957. Depois dessa conquista, o poder conservador da religião coibiu novos avanços, e a mulher continua subordinada e vitimizada dentro de casa.
Não há dúvida de que houve um retrocesso em relação à Constituição de 1971, que continha normas sobre a proteção da maternidade e da infância, o direito da criança ao nome da família, a proibição do trabalho infantil, dentre outras garantias.
A constitucionalização da família e seus direitos, hoje, é uma realidade que se estende por toda a parte, principalmente nas novas constituições, a exemplo de todos os países de língua portuguesa e muitos países da América Latina e Espanha. Essa tendência marcou a principal evolução do direito de família no século XX, tendo o Estado proporcionado o alcance das políticas de proteção à família, de modo geral, abrangendo, inclusive, as crianças, os jovens e os idosos, tudo com base no princípio da dignidade da pessoa humana e na autonomia do núcleo familiar.
Do alto daquelas Pirâmides, depois de tantos séculos, contempla-se a lamentável situação da família egípcia, amordaçada pelo fundamentalismo religioso e contra as conquistas dos direitos elementares da pessoa humana.
A Primavera Árabe e os gritos de liberdade da praça Tahrir não trouxeram às famílias daquele país as flores da renovação nem os ecos positivos da consideração pela dignidade de seus integrantes.
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