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Gestação múltipla, licença múltipla?
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 18
Com os crescentes avanços da Medicina na assistência àqueles que desejam ter filhos, "reproduzindo" seus códigos genéticos, o fenômeno da gestação múltipla tem se tornado cada vez mais freqüente. Os avanços da paternidade/maternidade biológica devem ser acompanhados pela dimensão da parentalidade socioafetiva. No sentido de buscar assistência legal para estes casos, contemplando a importância dos vínculos emocionais, uma associada consultou o IBDFAM, preocupada em dar embasamento a pedido de ampliação de licença maternidade, com argumentos vindos da Psicologia e da Psicanálise. Esta foi a inspiração da presente coluna.
A presença da mãe, em quantidade de tempo e em qualidade, física e emocional, é essencial para o desenvolvimento somático e psico-social dos filhos. É com o concurso do exercício da função materna e paterna que os filhos podem atingir grau de maturidade psicológica para a vida em sociedade.
As funções são complementares. Assim o são: família - sociedade, esposo-esposa, companheiro-companheira; pai - mãe; pais - filhos etc. Para que uma função seja exercida, com certa tranqüilidade, confiança e eficácia, é necessário que a complementar esteja sendo exercida. Por exemplo, em termos amplos, a família para cumprir sua função deve contar com proteção do Estado, o mesmo se dá por parte do Estado que necessita que as famílias criem seres humanos saudáveis que possam exercer a cidadania.
Faço estas considerações para apontar a importância, real e simbólica, de um Estado que contemple as necessidades das famílias, levando em conta suas particularidades, como é o caso em tela.
Iniciemos pelo exame da importância da relação mãe-filho. Por parte da primeira, há a necessidade da passagem do vínculo biológico (gravidez) para o emocional, relacional. Tal passagem se dá por meio dos cuidados que são inicialmente centrados no atendimento das necessidades do bebê. Conforme estas necessidades vão sendo atendidas, a mãe e o filho vão desenvolvendo suas funções complementares, vão se "construindo" mutuamente.
A importância dos cuidados maternos não reside absolutamente só no aleitamento mas na "alimentação psicológica" para que o bebê possa, por meio dos vínculos emocionais, desenvolver saudavelmente seus recursos e ganhar cada vez mais em autonomia. Fundamental ressaltar que os seres humanos nascem indefesos e desamparados; com base nesta natureza que um bebê exige cuidados por um tempo longo relativamente ao tempo total de vida e em relação às outras espécies animais. É com base nesta natureza dependente, física e emocionalmente, que se desenvolve o psiquismo.
Os vínculos emocionais se dão apoiados no atendimento das necessidades físicas, como bem o teorizou Sigmund Freud e o têm, desde então, demonstrado amplamente os psicólogos e os psicanalistas. Para ressaltar a importância da qualidade do contato, digno de lembrança são os estudos de John Bowlby a respeito do apego e o experimento, já antigo, de H. Harlow realizado com macacos. Este autor demonstrou os efeitos da diferença no desenvolvimento quando da alimentação vinda de um ser vivo versus aquela vinda de bonecos de pano e de arame, mostrando claramente a progressão de efeitos deletérios no comportamento, resultantes da qualidade e falta do contato, mesmo nos animais. Obviamente, as questões dos cuidados vão além dos cuidados físicos, mormente nos seres humanos.
Por parte da mãe, o vínculo emocional evolui a partir do que ela imaginou durante a gestação, com base em suas experiências como filha e a partir do que recebeu de sua própria mãe e outras pessoas que lhe serviram de exemplo, e do projeto de filho, inclusive aquele construído conjuntamente com o pai. Quando do nascimento do bebê, a mãe vai adequando aquilo que desejou com a realidade, passando do estágio da gravidez, em que o cuidado se dava de certa forma independentemente de sua ação, para um cuidado ativo. A mãe vai se adaptando a esta outra função após o parto, vai conhecendo o bebê e a ela nesta situação, vai identificando as necessidades particulares deste. O mesmo vai se dando por parte dele em relação à mãe. Utilizo o tempo verbal do gerúndio para enfatizar que esta é uma situação que demanda tempo.
Uma mãe deve ser o que o psicanalista D.Winnicott denominou de "suficientemente boa", ou seja a mãe deve funcionar como um ego auxiliar, até que a criança desenvolva suas capacidades inatas; ela deve sustentar a criança física e emocionalmente. Para ser uma "mãe suficientemente boa" ela deve também ter a capacidade e a possibilidade de brincar com o bebê, como que "sonhá-lo", função de continência emocional formadora da personalidade descrita pelo psicanalista W. Bion. Para que tudo isto se dê é necessário que ela própria tenha certa tranqüilidade como também que conte com o apoio do ambiente, que exerce uma função complementar, para que a sua função materna se realize.
A mãe deve ter tempo para ter tranqüilidade e dedicar-se com qualidade aos bebês. Como dito, é juntamente com o atendimento das necessidades que vai se desenvolvendo o vínculo emocional, essencial para a formação da personalidade, bem como de outras qualidades psíquicas como a capacidade de pensamento.
Nesta dinâmica mãe-filho entram também outras funções complementares, como é o caso da paterna. Para que a mãe possa fazer a passagem em ter um "útero" que abriga um feto e funcionar como um "berço" e um "colo" que abriga um ser humano em desenvolvimento, é necessário que ela conte com um "ambiente" que lhe dê amparo e condições para exercer sua função. Por outro lado, ou, melhor dizendo, a seu lado, é necessário o pai, cujo exercício da função paterna deve funcionar como este ambiente acolhedor, o que abrange inclusive a compreensão e o reconhecimento da importância da presença física e emocional da mãe, que necessita tranqüilidade para que exerça sua função. Tranqüilidade que esta só pode ter com o auxílio que o pai e o ambiente devem prestar, exercendo uma função complementar, na ajuda do provimento de suas necessidades.
No caso de ausência paterna, a função paterna continua a existir mesmo que seja como uma aspiração da mãe. Também o Estado tem um papel, real e simbólico, de exercer uma função protetora, funcionando assim como um representante da função paterna.
Retomemos o par complementar que é na realidade o disparador da presente discussão: Estado (lei) e família. Em um outro plano, além do familiar - o social - cabe ao ambiente (o Estado e as leis) ajudar a família e a mãe em sua função essencial no cuidado do que será o futuro cidadão, adulto, dando-lhe condições para este exercício.
O fato de a família ser a base da sociedade tem, com a difusão do conhecimento interdisciplinar, nos tornado mais responsáveis pela proteção que o Estado lhe deve dar. Atualmente, se ganha cada vez mais a consciência da importância que têm os primeiros meses de vida e da família para a formação do ser humano, para que este venha tornar-se capaz do exercício responsável da cidadania.
Como dito anteriormente, o tempo em termos de quantidade e qualidade que é empregado com o filho é essencial para seu desenvolvimento psicológico. A qualidade do tempo empregado se dá em função da tranqüilidade para o exercício da função materna. No caso de gestação múltipla o tempo despendido com cada filho traz uma limitação adicional no sentido que ocorre uma defasagem entre quantidade e qualidade. Em outras palavras, nestes casos, a quantidade de tempo não se faz acompanhar na mesma proporção de qualidade.
É inegável que uma gestação múltipla, assim como o nascimento de um bebê prematuro, representa exigência adicional, sendo necessário mais tempo para que a função materna seja exercida com qualidade. O reconhecimento, real e simbólico, por parte do ambiente _a mãe sabe e sente na pele as demandas multiplicadas e o pai, quando presente, também _ da importância dos cuidados familiares e maternos e a consideração das particularidades trazidas por uma gestação múltipla, inclusive com a ampliação da licença maternidade, é fundamental para o exercício da maternagem.
A complementaridade das funções e a importância dos vínculos emocionais são aspectos da parentalidade socioafetiva, que em muito transcende o vínculo biológico. O caminho interdisciplinar aponta no sentido do reconhecimento da importância das relações em seus aspectos emocionais, justamente o alicerce daquilo que nos torna humanos. Por paradoxal que possa parecer, é um caminho em direção à uma crescente humanização do Direito.
Referências Bibliográficas:
Brazelton, Berry T. O que todo bebê sabe. Martins Fontes, São Paulo, 1992.
Dolto, François. Quando os pais se separam. Jorge Zahar Editor, Rio de Janiero, 1989.
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Mazet, P. & Stoleru, S.. Manual de psicopatologia do recém-nascido. Artes Médicas, Porto Alegre, 1990.
Spitz, René A.. O Primeiro ano de vida. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 1979.
Winnicott, D. W.. Tudo começa em casa. Martins Fontes, São Paulo, 1989.
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