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A réplica intolerante
As acusações impostas a Maria Madalena e o amor impossível de Romeu e Julieta são exemplos clássicos de intolerância.
A pergunta ácida e entediada de Caim: “num custos fratis mei sum ego?” (“tenho eu a custódia de meu irmão?”), é a réplica intolerante e dramática que o Gênesis registra, como símbolo de uma cultura de incompreensão que todos os filhos de Caim herdariam para todas as gerações.
Caim, o primogênito, replica Deus, o Criador, grafando na resposta uma pretendida fixação de domínio de sua arrogância, em enunciado que contraria a própria razão e espirito do essencial, quando consabido, segundo a Torá, o termo “guarda” (“schamar”) referir ao dever fraterno de vígilia (e também dever jurídico) na proteção mútua, vínculo maior da família humana.
Em verdade, ele pretendia ocultar o que fizera, no delito contra Abel - inocente de toda culpa - em violação da guarda vigilante e mais que isso, ao dever de velar a vida do próximo.
Tem-se na intolerância da resposta do assassino, o símbolo que busca ocultar todas as violências do mundo.
Do crime-gênese insuportável de todos os crimes, extrai-se a intolerância do irmão mais velho, fraticida por intolerar as ações de Abel, que rendiam os bons frutos das graças divinas.
E a tolerância tem o seu ápice de ilicitude, quando Caim, ainda questiona: É tão grande o meu delito de não se poder suportar?”.
A história e o direito assumem, em seus sitios próprios de experimentação cientifica, a condução testemunhal repleta de ocorrências e de fatos juridicamente relevantes que colocam a intolerância como um fenômeno cultural, político e jurídico, capaz de exigir o desenvolvimento de novas reflexões e estudos mais verticalizados.
No ponto, o direito de ser tolerado impõe, na ordem jurídica, um direito fundamental, no sentido mais direto de uma proteção de tutela, despontando, daí, uma obrigação de meios por parte do Estado em eficacização de tal direito. Lado outro, uma insuficiência de resultados úteis significaria implicar uma responsabilidade estatal objetiva pela intolerância não reprimida satisfatoriamente.
A temática posta a exame deve ser trabalhada ao tratamento das multíplas questões que a intolerância envolve e, sobremodo, em análise do enfrentamento jurídico e jurisdicional que a ilicitude representa, de sorte a contribuir para soluções de políticas legislativas e judiciárias.
Segue-se também admitir, para fins de direito, o fato de a violação da obrigação de tolerância ser, em casos que tais, ilícita, como conseqüência, por óbvio, da existência de uma obrigação civil de tolerância.
Pois bem.
A intolerância é o triunfo do extremo, no ininteligível do agir humano, em patomima de ritos de encenações desagregadoras. No essencial, a intolerância é um abandono da razão, de realidade inversa, em desproveito da humanidade (ou do ciclo familiar), intermitente, guardando com ela uma flagrante desaproximação.
A responsabilidade por tolerância (ser tolerante) faz suscitar comportamento compatível com o standard jurídico de quem espera ser tolerado, figurando-se a intolerância como ilícito civil, por violação de uma conduta básica ao tráfico de compreensão que celebra harmonia e pacificação social (e familiar, no particular).
A intolerância ilegítima, portanto, é o desvalor fundamental que decorre da ruptura de tolerância adequada que se impõe no trato social ou familiar.
Logo, a intolerância é delitual, quando relacionada a uma incompreensão significante, admitindo-se sua existência jurídica (e não apenas ontológica), como decisiva à teoria do ato ilícito e à teoria dos danos, dela decorrentes. Dita incompreensão, para os devidos fins da intolerância delitiva, é aquela de quem não se dispõe a tender ao outro (em acepção semântica do “entender”) e ao recusar essa flexão comportamental, termina por atuar contra a verdade ou a vontade alheia, com o traço firme da superação do razoável, ou seja, desarrazoadamente.
A tolerância, ao contrário, é sempre objetivada pelo comportamento mínimo de valores de cooperação ou de respeito de autonomia, a minorar os conflitos, exorciza-los ou impedi-los. Tolerância é abertura desmedida de espirito, a intolerância é o fechamento também desmedido e dominante de nulificação convivencial.
Por certo, então, que determinantes do direito, como idéia do justo, boa-fé e os bons costumes, confiança, ordem social, solidariedade social, entre outros, colocam-se afeitos a categorizar juridicamente a intolerância como ilícito civil e, em outro passo, tendo-se a alocação da intolerância ilícita com adequação nas relações de família.
No tecido familiar, o ano 2013 começa com episódios marcantes e graves que tornam mais visíveis as intolerâncias odiosas, ao extremo de ações homicidas e de outros atos desconstrutivos que evidenciam as ilicitudes manifestas:
(I) A violência doméstica aumentou significativamente, quando 28,9% das mulheres brasileiras, nas grandes cidades, são vitimas de violência familiar e no restante do país, esse percentual aumenta para 36,9%. A propósito, agora está sendo criado o Fundo Nacional de Amparo às Mulheres Agredidas (Fnama). As mulheres que forem vitimas de violência doméstica, uma vez separadas de seus cônjuges ou parceiros, poderão ter ajuda financeira mensal de R$622,00 por um período anual, conforme o projeto de lei nº 1089/2012, recentemente aprovado pelo Senado (em 18.12.12);
(II) Oitenta por cento (80%) dos filhos de pais divorciados continuam sendo vítimas (também diretas) da Síndrome de Alienação Parental (SAP), consabido que motivados também por intolerâncias odiosas um dos pais separados adotam posturas de denegrimento da imagem do ex-parceiro, para a ruptura dos laços afetivos do filho com o outro genitor. Cuida-se de intolerância ilícita, constituindo ilícito civil, na forma da Lei nº 12.318/2910. Agora, no Estado de Minas Gerais, foi sancionada a Lei nº 20.584/2012, estabelecendo políticas públicas para a conscientização da prática nociva da alienação parental, com programas educativos, palestras e esclarecimentos.
Afinal, devem ser reservadas aos protagonistas da cena familiar, a exortação lapidar de William Shakespeare:
“Por mais que minhas palavras transbordem em desacatos, não permita, meu coração, que eu as transforme em atos"
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
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