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Sucessões entre irmãos unilaterais e bilaterias: uma isonomia constitucional ferida?
Daniel Santana Cruz[1]
Resumo: O presente artigo foi elaborado com a finalidade de cumprir o requisito obrigatório e necessário para a obtenção do título de bacharel no curso de bacharelado em Direito promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador. Este trabalho de conclusão de curso consiste no estudo da sucessão especificamente entre irmãos sob uma óptica socioafetiva e análise quanto à adequação do tratamento dado pela Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o Código Civil Brasileiro de 2002 e dos princípios constantes na Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 que possam incidir sobre tal instituto da cadeira de Direito Civil.
Palavras-chave: sucessão, irmãos, Direito Civil, socioafetividade, Constituição.
Abstract: This article was prepared in order to meet the mandatory requirement and necessary to obtain the bachelor`s degree course in Bachelor of Law organized by the Law School from the Catholic University of Salvador. This conclusion of course work is to study the succession specifically between brothers under an optical socioaffective and analysis on the adequacy of treatment given by Law 10.406 of January 10, 2002, which established the Brazilian Civil Code of 2002 and the principles set the Constitution of the Federative Republic of Brazil enacted in 1988 which might relate to this institute from chair of Civil Law.
Keywords: sucession, brothers, Civil Law, socioaffective, Constitution.
Sumário: Introdução; 1- A sucessão entre irmãos à luz do Código Civil de 2002; 2- Confronto constitucional do tratamento objetivo da sucessão entre irmãos; 3- Aspectos subjetivos necessários à adequação legislativa; 4- Conclusão; 5- Referências bibliográficas.
Introdução
Analisando a ordem de vocação hereditária, o respectivo modo de partilha e conflitando os dispositivos constitucionais com os infraconstitucionais acerca da sucessão entre irmãos unilaterais, chega-se ao seguinte título: sucessão entre irmãos unilaterais e bilaterais: uma isonomia constitucional ferida?
As constantes evoluções das relações pessoais e das concepções de família demonstram a necessidade de modificar o conceito de instituição familiar. Este conceito é muito mais amplo que a previsão constante na Constituição Federal. Família monoparental e relações homoafetivas são algumas das tendências que certamente serão objeto de texto legal.
Era comum adjetivar os filhos concebidos fora do casamento como adulterinos.[2] Havia recusa por parte da sociedade de legitimar a convivência entre a prole concebida em relações extraconjugais e os demais filhos havidos na constância do casamento.[3]
Com o passar do tempo, a Constituição Federal de 1988 e a lei no 8.069 de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, ampararam esses filhos tidos como adulterinos. A sociedade passou a olhá-los como sujeitos de direito, figuras humanas dotadas de isonomia em relação aos filhos da relação conjugal oficial.[4]
Por isso, faz-se necessário retratar a importância da valoração da convivência para fins de sucessão. Dirimir as garantias constitucionais, sua aplicação e fundamentação frente às regulamentações infraconstitucionais e acrescentar critérios subjetivos à sucessão entre irmãos bilaterais e unilaterais. O texto frio da lei não leva em consideração o calor do afeto para dirimir questões patrimoniais.
1- A sucessão entre irmãos à luz do Código Civil de 2002
O Código Civil de 2002, lei no 10.406/2002, destinou ao direito sucessório o Livro V - Direito das Sucessões - para tratar especificamente sobre a sua disciplina. Ao tratar da sucessão legítima no Título II, Da sucessão legítima, o legislador buscou iniciar o tema estabelecendo desde já a ordem de vocação hereditária no Capítulo I - Da ordem da vocação hereditária.
Neste capítulo encontram-se as previsões legais acerca da sucessão dos irmãos, dentre elas, “concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar” (artigo 1.841 do Código Civil).
Não obstante outros, o dispositivo acima exposto é copia fiel da previsão legal anteriormente estabelecida pelo artigo 1.614 do Código Civil de 1916.[5] O Código Beviláqua não trouxe o conceito de irmão unilateral, tampouco a conceituação de irmão bilateral, algumas vezes empregando o adjetivo “germano”. [6] Seguindo a mesma linha, o legislador que elaborou a lei no 10.406/2002 além de não mais fazer referências ao irmão germano, quedou-se ao não apresentar os conceitos de irmão bilateral e unilateral.
Irmãos bilaterais são os filhos do mesmo pai e mãe, ao passo que são considerados unilaterais os irmãos que tenham apenas o mesmo pai ou apenas a mãe.
Cabe registrar que devem ser desconsiderados os adjetivos “consanguíneos” quando os irmãos forem apenas paternos e “uterinos” quando os irmãos forem apenas maternos. Para esta conceituação, não se deve levar em consideração qualquer critério biológico, haja vista que a Constituição Federal de 1988 expressamente veda qualquer tipo de discriminação relativa à filiação em seu artigo 227 parágrafo 2o.
Portanto, estão inclusos neste conceito todos os filhos bastando que a filiação tenha sido efetivada sob o manto da legalidade. Nesse diapasão, LEITE (1994, p.100), “as expressões ilegítimo, adulterino, espúrio, incestuosos ficam definitivamente banidas da categoria filhos. Logo, todos os dispositivos legais estruturados em função daquelas diferenças são inconstitucionais restando, portanto, sem sentido e esvaziados”.
Na hipótese da sucessão de irmãos, prevista no artigo 1.839 do atual Código Civil e sendo todos bilaterais, os que apresentam identidade de filiação quanto a ambos os ascendentes de 1o grau, a partilha dos bens será realizada in capita. Significa dizer que o patrimônio do de cujus será dividido tantas vezes quantos forem os irmãos, sendo todos bilaterais.
O mesmo ocorre nas hipóteses em que o extinto deixar apenas irmãos unilaterais, os que apresentam identidade de filiação quanto a apenas um dos ascendentes de 1o grau. Caso em que “não concorrendo à herança irmão bilateral, herdarão, em partes iguais, os unilaterais” (artigo 1.842 CC). Em algumas passagens, o Código Civil pátrio vigente refere-se a esta forma de partilha adotando a expressão “por cabeça”.[7]
Entretanto, havendo coexistência de irmãos bilaterais e unilaterais, o codex atribui tratamento específico e detalhado quanto ao modo de partilha. Esta hipótese é desdobrada no artigo 1.841 do Código Civil vigente. Por este dispositivo, interpreta-se que o patrimônio do de cujus será repartido em duas etapas. Primeiro deverá estabelecer a cota destinada aos bilaterais e depois fixar a fração destinada aos unilaterais. Os unilaterais perceberão apenas a metade da parte referente ao que foi destinado a cada irmão bilateral.
Carlos Roberto Gonçalves exemplifica de maneira clara a situação. Segundo GONÇALVES (2010, p.200),“(...) se o falecido deixou quatro irmãos, sendo dois unilaterais e dois bilaterais, e um patrimônio estimado em R$ 300.000,00, os dois últimos receberão, cada qual, R$ 100.000,00, cabendo R$ 50.000,00 a cada um dos unilaterais”.
Como no ordenamento jurídico pátrio é concedido direito de representação aos filhos dos irmãos, o legislador foi mais adiante e também majorou a sucessão entre unilaterais e germanos caso haja direito de representação dos sobrinhos do extinto, quando estes são filhos dos irmãos unilaterais ou filhos dos irmãos bilaterais. Os parágrafos 2o e 3o do artigo 1.843 praticamente copiam o quanto já estabelecido nos artigos 1.841 e 1.842 respectivamente, a saber:
Art. 1.843 Na falta de irmãos, herdarão os filhos destes e, não os havendo, os tios.
§ 1o Se concorrerem à herança somente filhos de irmãos falecidos, herdarão por cabeça.
§ 2o Se concorrem filhos de irmãos bilaterais com filhos de irmãos unilaterais, cada um destes herdará a metade do que herdar cada um daqueles.
§ 3o Se todos forem filhos de irmãos bilaterais, ou todos de irmãos unilaterais, herdarão por igual. (Código Civil)
2- Confronto constitucional do tratamento objetivo da sucessão entre irmãos
A instituição familiar vem sofrendo diversas modificações no que tange a sua composição. Hodiernamente, os moldes de entidade familiar anteriormente defendidos pela própria sociedade civil são cada vez mais raros de serem encontrados em sua integralidade. A mulher cada vez menos dependente do cônjuge varão, a proliferação de divórcios e a maior aceitação das relações homoafetivas foram aspectos que fizeram com que o conceito de família ampliasse assumindo caráter numerus apertus.
Paulo Luiz Netto Lôbo, em artigo publicado, corrobora com a referida constatação ressaltando a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana, vejamos:
Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios, tutelando-se os efeitos jurídicos pelo direito de família e jamais pelo direito das obrigações, cuja incidência degrada sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão.
Violam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana as interpretações que (a) excluem as demais entidades familiares da tutela constitucional ou (b) asseguram tutela dos efeitos jurídicos no âmbito do direito das obrigações, como se os integrantes dessas entidades fossem sócios de sociedade de fato mercantil ou civil. (LÔBO, 2002)
Logicamente, desta constatação decorre o fato de que as novas formas de entidade familiar vêm sofrendo com a lacuna legislativa a respeito das questões inerentes à tutela dos seus direitos, neste particular os sucessórios. O atual Código Civil e os demais diplomas não acompanharam as recentes mutações sofridas pela sociedade brasileira, ao menos na mesma velocidade que a Constituição Federal de 1988.
Buscando esclarecer e abrandar a situação em que se encontra a lacunosa legislação vigente, Paulo Luiz Netto Lôbo afirma que mesmo sem previsão constitucional, as novas formatações acerca do instituto familiar não devem estar à margem da proteção legal:
Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades. Não pode haver, portanto, regras únicas, segundo modelos únicos ou preferenciais. O que as unifica é a função de locus de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que as integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formação social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa. (LÔBO, 2002)
Pouco tempo atrás, o Supremo Tribunal Federal decidiu acerca da união homoafetiva reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo e os seus respectivos efeitos. As ações foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela Procuradoria Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. A Ação buscou justamente a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu-se também que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.[8]
Do caráter numerus apertus do conceito de família e do tratamento em sede constitucional das relações entre filhos decorre a problemática tema do presente artigo. No tocante as questões sucessórias inerentes aos irmãos unilaterais, estas são tuteladas por legislação que não se coaduna com o atual patamar destas relações. O Brasil adotou no artigo 1.841 e seguintes do atual Código Civil o sistema do tratamento discriminatório entre irmãos unilaterais e bilaterais, repetindo o que estabelecia o diploma Civil anteriormente revogado.
Eduardo de Oliveira Leite, propagando os ensinamentos de Clóvis Beviláqua, trata a matéria da sucessão entre irmãos constatando que além do sistema atualmente adotado pelo Brasil, há mais três espécies de sistemas de partilha dos bens deixados pelo de cujus, in verbis:
(...) há quatro sistemas: a) o sistema do tratamento discriminatório entre bilaterais(germanos) e unilaterais, do direito francês (art. 752); italiano (art. 741, 2ª alínea); português (art. 2.146); espanhol (art. 949); mexicano (art. 1631) e o atual argentino (art. 3.586) ao qual se filiou o sistema brasileiro (no antigo art. 1.614), atual art. 1.841; b) o sistema que distingue a origem dos bens, devolvendo aos irmãos uterinos os bens de procedência materna e aos consagüíneos os de procedência paterna: o boliviano (art. 628); c) o que afasta os irmãos unilaterais, quando existem bilaterais. É o sistema do direito romano que vigorava entre nós antes do Código Civil e nas antigas legislações da Itália e da Alemanha; d) o sistema da completa igualdade entre irmãos de vínculo simples ou duplo, seguido pelo Código Civil chileno (art. 992, 3º regra); venezuelano (art. 8.818, 3ª regra) e uruguaio (art. 1.028, 4ª regra). (LEITE, 2003, p. 251)
As regras sucessórias previstas nos artigos 1.841 e 1.843 em seus parágrafos 2o do Código Civil vigente desafiam a igualdade de direitos ora tutelada pelo texto constitucional. Nesse sentido, o Promotor do Estado de Goiás, Cláudio Grande Júnior, afirma que:
Ora, os irmãos unilaterais são tão irmãos como os bilaterais e os adotivos. Um exemplo demonstra claramente a inconstitucionalidade da regra. Suponhamos que uma pessoa faleça sem deixar descendentes. Não tendo mais ascendentes e sendo solteiro e descompromissado, são chamados à sucessão seus colaterais (CC, art. 1839). Os mais próximos são seus irmãos: um bilateral, outro unilateral e um terceiro adotivo. Ao pé da letra, o unilateral receberia metade do que coubesse ao germano. Mas e o adotivo? Receberia igual ao bilateral em franca discriminação em desfavor do unilateral? Ou o mesmo tanto que este, sendo discriminado em face do bilateral? (GRANDE JÚNIOR, 2004)
Respondendo aos questionamentos do ilustre membro do Ministério Público goiano, a celeuma se instaura quando a figura do irmão unilateral aparece na sucessão ao lado do irmão bilateral. Nessa esteira, segue o pensamento esposado por CARVALHO NETO (2004), “se alguém morre deixando como herdeiros três irmãos, um bilateral, um unilateral e um adotivo, no exemplo figurado pelo autor, a sucessão dependerá de ser o adotivo bilateral ou unilateral, ou seja, se foi ele adotado por ambos os pais do de cujus ou por apenas um deles”.
É desnecessária a análise da situação do filho adotivo, haja vista que se este for adotado por ambos os genitores do de cujus, será irmão bilateral e então herdará como dispõe o artigo 1.841 do atual Código Civil. Caso este tenha sido adotado unilateralmente por um dos genitores do extinto, será irmão unilateral e herdará conforme o referido dispositivo.
Diante disto, pergunta-se: a afetividade é capaz de superar a filiação unilateral? A letra fria do dispositivo do Código Reale não levou em consideração que o fator afetivo poderia mostrar-se forte o bastante para fazer os parentes colaterais renegarem as diferenças quanto à filiação e aproximar de forma natural e louvável os irmãos mesmo não apresentando identidade quanto aos ascendentes de 1o grau. Não raras são as famílias que apresentam em sua composição irmãos unilaterais.
Para demonstrar a discrepância do dispositivo legal e a flagrante desvalorização desta aproximação saudável, trago o seguinte exemplo: imaginemos que Jorge e Rodolfo são irmãos bilaterais, mas foram separados quando recém nascidos. Jorge foi criado por sua tia em um país no continente europeu, cortando por completo a comunicação com seus pais e seu irmão Rodolfo que permaneceram na cidade de Nazaré no interior baiano. Passados 25 anos, Rodolfo falece de doença terminal deixando apenas Jorge, irmão bilateral que desde o nascimento não tem convivência alguma com o de cujus, e Mário, irmão unilateral que nasceu após Rodolfo completar 5 anos e conviveu com o extinto até o seu falecimento.
É razoável a sucessão nos ditames do Código Civil vigente no exemplo fático acima exposto? É justo que Jorge herde maior parte em comparação a Mário? Há entendimento no sentido de que a norma infraconstitucional ora em debate é perfeitamente dotada de constitucionalidade, rebatendo as ideias contrárias a constitucionalidade dos dispositivos da seguinte forma:
A regra constitucional supostamente ferida estabelece igualdade entre os filhos, nas relações de paternidade-filiação, não aos irmãos entre si. Não se impede, assim, que se distinga a sucessão dos colaterais. Inconstitucional seria, v.g., a regra que determinasse que filhos legítimos herdassem o dobro dos ilegítimos. Não é este o caso.
Em segundo lugar, a distinção em questão não é arbitrária. Trata desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Se há duplo laço sangüíneo (pai e mãe) a ligar os irmãos, nada mais justo que recebam o dobro do que cabe ao irmão ligado por laço simples (pai ou mãe). (CARVALHO NETO, 2004)
Com data maxima venia, não é este o entendimento abraçado por este trabalho. Advoga-se no sentido de que a engessada norma infraconstitucional deve ser flexibilizada no mesmo ritmo da consolidação dos novos paradigmas acerca da instituição familiar. Nesse diapasão, LEITE (2003, p. 250) “(...) não há que vingar qualquer discriminação em relação aos irmãos, sejam germanos, ou unilaterais. Todos, independente da origem devem herdar em igualdade de proporções”.
O mesmo fator afeto que levou o Supremo Tribunal Federal a posicionar-se em defesa da união estável nas relações homoafetivas é o mesmo afeto que muitas vezes caracteriza as relações entre irmãos unilaterais, entretanto, com outra faceta e roupagem. Thiago Felipe Vargas Simões já havia tratado especificamente acerca da afetividade na composição atual da entidade familiar:
Assim como as famílias mudaram, os núcleos familiares também sofreram alterações em sua estrutura e composição. A família composta por diversos membros começou a perder força ao longo dos anos, bem como aquela formada apenas por filhos legítimos, seja por imposição legal, seja porque os núcleos familiares passaram a valorizar um fator imprescindível para sua formação: o amor, o afeto!
Não há como negar que a nova tendência da família moderna é a sua composição baseada na afetividade. Sabemos que legislador não tem como criar ou impor a afetividade como regra erga omnes, pois esta surge pela convivência entre pessoas e reciprocidade de sentimentos. (SIMÕES, 2007)
Não se quer aqui fazer uma forçosa analogia e ajustar a incidência do ditame constitucional do artigo 227, parágrafo 6o aplicando assim a igualdade aos irmãos unilaterais. Enaltece-se no presente artigo o afeto visando promover a justiça nesta sociedade onde até mesmo os herdeiros legítimos tramam crimes absurdos com o intuito de obter vantagem econômica.
A dupla ligação sanguínea não é fundamento suficiente para que seja dotada de presunção absoluta no que diz respeito à idoneidade dos herdeiros, ao menos nos casos dos irmãos unilaterais. Pasme-se que quando o assunto é vantagem econômica, a ganância supera todo e qualquer liame biológico e quiçá afetivo. A sociedade chegou ao patamar em que não raros são os casos de familiares realizando manobras ardilosas no intuito de acelerar o curso natural da vida, assim promovendo o evento morte dos seus entes.
Dois casos públicos e notórios veiculados pela mídia nacional mostram a avareza superando os limites legais. Primeiro, o caso dos irmãos Cravinho e a estudante universitária de classe média alta Suzane Louise Von Richthofen em que a ambiciosa filha agiu em conluio com o namorado e o cunhado tendo por finalidade obter o patrimônio familiar matando os pais, Manfred Albert Freiherr Von Richthofen e Marísia Von Richthofen. Vale dizer que a herança dos Von Richthofen está avaliada em aproximadamente R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Por fim, outro caso emblemático foi o de Gil Rugai que de maneira tão revoltante quanto a de Suzane Louise Von Richtofen, articulou a morte de seu pai e de sua madrasta, Luiz Carlos Rugai e Alessandra de Fátima Trotino. Gil Rugai era herdeiro de uma fortuna de aproximadamente R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais).
A favor da valorização do afeto, o já citado jurista Thiago Felipe Vargas Simões conclui seu artigo aduzindo que:
Se são reconhecidas as famílias pelo afeto; se são reconhecidas filiações pelo afeto e essa hoje em dia já é motivo bastante para constituição de prestação alimentícia, por que não reconhecer direitos sucessórios para uma situação que se encontra plenamente formada, reconhecida e consolidada com o passar dos anos?
Não reconhecer essa realidade implicaria até mesmo em afronta a princípios constitucionais, às garantias trazidas ao Homem pela Carta de Direitos, aos Direitos Humanos e à Dignidade da Pessoa Humana. (SIMÕES, 2007)
3-Aspectos subjetivos necessários a adequação legislativa
Muito pouco se fala acerca do tema em destaque. Corroboro com GRANDE JÚNIOR (2004) no sentido de que a “(...) respeito do assunto a jurisprudência é escassa e a doutrina assustadoramente silenciosa”. Em sua grande maioria, a doutrina em regra não se posiciona expressamente perante a controvérsia ora levantada, assim aceitando tacitamente a constitucionalidade da norma infraconstitucional.
A corrente doutrinária que se mostra resignada diante do artigo 1.841 e seguintes do atual Código Civil é minoritária e na maioria das obras os autores resumem-se a alegar a flagrante inconstitucionalidade dos dispositivos conflitantes. Nessa esteira, há doutrina que critica a norma infraconstitucional taxando-a de desarrazoada, considerando-a letra morta por conta da sua absoluta inconstitucionalidade.
Em meio às críticas, pinça-se a plausível solução apontada por Eduardo de Oliveira Leite. O jurista é esperançoso quanto a uma possível reforma do Código Civil. Nesse sentido, numa oportuna reforma legislativa, o jurista idealizou a redação do dispositivo cabível:
Independente do inadmissível descuido, em flagrante inconstitucionalidade, certamente o trabalho renovador e corajoso da jurisprudência nacional vai resgatar o princípio da igualdade de filiação projetando-o devida e justamente no terreno sucessório, promovendo a releitura do artigo sob análise nos seguintes termos:
Concorrendo à sucessão irmãos germanos e irmãos consangüíneos ou uterinos, tocará a todos, quinhão igual, bem como àqueles que os representam. (LEITE, 2003, p.251)
Tarefa árdua seria apontar texto de lei que se adeque perfeitamente à realidade da família brasileira sem a realização de estudos interdisciplinares com o intuito de estabelecer e listar as necessidades da sociedade. A hipótese acima explicitada, em linhas de princípio, supre a atual lacuna legislativa, entretanto, como toda e qualquer reforma legislativa, deve ser criteriosamente analisada para que atinja o seu fim útil.
4- Conclusão
O renomado jurista Miguel Reale nos brindou com a Teoria Tridimensional do Direito. Por esta teoria entende-se que o Direito deve equilibrar-se no famoso tripé composto pelos seguintes elementos: fato, valor e norma. A norma jurídica positivada deve ser precedida de valoração de fato cuja incidência interfira positiva ou negativamente no mundo jurídico. Esta é a lógica do processo legislativo na edição de leis em sentido amplo.
Atribuindo-se novos valores a um determinado fato social, não resta dúvida de que faz mister modificar a norma que a rege. Identificada a questão e levantadas as hipóteses de prejuízo que a norma em destaque traz consigo, mostra-se necessária a adequação do texto infraconstitucional.
As regras da lei no 10.406/2002 ora em debate foram emprestadas pelas legislações da Argentina[9], França[10], Itália[11], Espanha[12], México[13] e Portugal[14]. O legislador pátrio apenas repetiu os mesmos comandos de códigos estrangeiros sem realizar o juízo de valor necessário para que o Código Civil caminhasse ao lado da Constituição Federal e da realidade nacional.
Mesmo sendo partidário da corrente minoritária, não me furto e nem me acanho de reafirmar que indubitavelmente há flagrante desrespeito a isonomia constitucional do artigo 227, parágrafo 6oda Constituição da República Federativa do Brasil. Fomenta-se então a discussão quanto a sua abrangência e seus desdobramentos, pois o debate é fundamental para consolidar o conhecimento construtivo.
Por fim, com os dizeres de Eduardo de Oliveira Leite deixa-se a certeza de que a injusta previsão legal da lei no 10.406/2002 não é compatível com o atual estágio evolutivo das relações familiares, tampouco com o caráter numerus apertus que o conceito de entidade familiar atingiu da década de 80 até os dias atuais:
O dispositivo peca por inconstitucionalidade se atentarmos ao disposto no artigo 227,§ 6o, da Constituição Federal de 1988. Se a Lei Maior proíbe tratamento discriminatório entre filhos, de qualquer origem, não é possível que se invoque o discrimen para tratar desigualmente irmãos “bilaterais” e “unilaterais”. Em posterior revisão do novo Código Civil, certamente desaparecerá a criticada fórmula. (LEITE, 2003, p.256)
5- Referências bibliográficas
CARVALHO NETO, Inácio de. A Constitucional Discriminação entre Irmãos Germanos e Unilaterais na Sucessão dos Colaterais. In: Consulex, 08 mar. 2004.
DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: RT, 2008.
GONÇALVES, Carlos Alberto. Direito civil brasileiro, volume 7: direito das sucessões - 4 ed.- São Paulo: Saraiva, 2010.
GRANDE JÚNIOR, Cláudio. A inconstitucional discriminação entre irmãos germanos e unilaterais na sucessão dos colaterais. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4757>. Acesso em: 7 jun. 2011.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil: do direito das sucessões. 3. ed. Coord. Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 21.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Temas de Direito de Família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 100.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus.Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/2552>. Acesso em: 7 jun. 2011.
SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. A família afetiva - o afeto como formador da família. Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Disponível em: 24 out. 2007. <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=336>. Acesso em: 10 jun. 2011.
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 2. ed. rev. ampl. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007, p. 37-60.
GERMANO. In: Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Melhoramentos Ltda. UOL - O melhor conteúdo. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=germano>. Acesso em: 10 jun. 2011.
[1] Advogado, bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador.
daniel.cruz@hotmail.com.br
[2] Art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos. (Revogado pela Lei nº 7.841, de 1989).
[3] Art. 332. O parentesco é legitimo, ou ilegítimo, segundo procede, ou não de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consangüinidade, ou adoção.
[4] Art. 20. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
[5] Art. 1.614. Concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar.
[6] ger.ma.no - adj.+sm (lat germanu) 1 Que, ou o que procede do mesmo pai e da mesma mãe.
[7] Art. 1.835. Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça ou por estirpe, conforme se achem ou não no mesmo grau.
[8] Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.
[9] Art. 3.586. El medio hermano en concurrencia con hermanos de padre y madre, hereda la mitad de lo que corresponde a éstos.
[10] Article 752: Le partage de la moitié ou des trois quarts dévolus aux frères ou soeurs, aux termes de l'article précédent, s'opère entre eux par égales portions, s'ils sont tous du même lit; s'ils sont de lits différents, la division se fait par moitié entre les deux lignes paternelle et maternelle du défunt; les germains prennent part dans les deux lignes, et les utérins ou consanguins chacun dans leur ligne seulement: s'il n'y a de frères ou soeurs que d'un côté, ils succèdent à la totalité, à l'exclusion de tous autres parents de l'autre ligne.
[11] Art. 570. Sucessione dei fratelli e delle sorelle. ...I fratelli e le sorelle unilaterali conseguono però la metà della quota che conseguono i germani.
[12] Art. 949. Si concurrieren hermanos de padre y madre com medio hermanos, aquéllos tomarán doble porción que éstos en la herencia.
[13] Art. 1.631. Si concurren hermanos con medios hermanos, aquellos heredaran doble porcion que estos.
[14] Art. 2.146. Concorrendo à sucessão irmãos germanos e irmãos consanguíneos ou uterinos, o quinhão de cada um dos irmãos germanos, ou dos descendentes que os representem, é igual ao dobro do quinhão de cada um dos outros.
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