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A separação de fato e seus efeitos jurídicos
Lauane Braz Andrekowisk Volpe Camargo
Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Católica Dom Bosco - UCDB. Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família no Mato Grosso do Sul – IBDFAM/MS (2009/2011). Advogada em Campo Grande – MS.
Resumo – O presente artigo demonstrará os principais efeitos da separação de fato, que são regulados de forma esparsa e não sistemática pelo legislador Não há norma expressa determinando que a sociedade conjugal extingue-se com a separação de fato, contudo, cada vez mais a lei atribui importantes efeitos para a mera separação de fato. Assim, em que pese não acarretar na extinção da sociedade conjugal, a separação de fato dá fim ao regime de bens, ao dever de fidelidade, bem como pode afastar o direito de herdar.
Palavras Chave – Separação de fato – Casamento – Dissolução – Regime de bens - Fidelidade
Abstract - This article will present the main effects of the actual separation between the spouses which is regulated in a sparse and not systematic form by the legislator. There is no explicit rules determining that the marital society perishes with the separation, however, the law increasingly confers important effects to the separation. Thus, despite the fact that the actual separation between the spouses does not lead to the end of the marital society, it does end the matrimonial property scheme, the duty of fidelity and it excludes the legitimacy to inherit.
Key words – Separation - Marriage – Dissolution – Matrimonial Property Scheme - Fidelity
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Requisitos da separação de fato – 3. Efeitos da Separação de fato – 4. Conclusão – 5. Referências.
I - Introdução
Quando o casamento não dá mais certo, a primeira fase que, geralmente, passa o casal antes da separação ou do divórcio é a separação de fato.
A separação de fato ou a separação informal se dá quando o casal deixa de compartilhar a vida em comum. Podem até continuar residindo na mesma casa, mas não mais dormem no mesmo quarto, não comungam dos mesmos objetivos de vida, não sonham mais o mesmo sonho, pois decidiram caminhar cada um por conta própria, sem a interferência do outro cônjuge, como destaca Pereira (2010, p. 31)
A separação de fato pode ser uma fase que antecede a separação judicial ou extrajudicial ou o divórcio. Para muitos casais é a fase em que há o amadurecimento para a extinção definitiva do casamento, que se dá pelo divórcio ou para outros, é uma fase de conflito que pode até culminar em eventual reconciliação.
Mas ainda são muitos os casais que não se reconciliam e permanecem indefinidamente como separados de fato. No passado as pessoas faziam tal opção em razão da indissolubilidade do casamento, porque simplesmente não era permitido o divórcio e, portanto, as pessoas eram obrigadas a ficar à margem da lei, isto é, apenas separadas de fato. Hoje o divórcio tornou-se muito simples, sem qualquer tipo de impedimento legal, mas mesmo assim, muitos ainda permanecem apenas separados de fato. E justamente por isso entendemos como relevante apresentar uma breve reflexão sobre os efeitos jurídicos na vida destas pessoas.
II – Separação de fato “jurídica”
A separação de fato pode existir sem que ninguém imagine sua existência, além do casal. É muito comum que casais vivam aparentemente como casados, mas que em sua intimidade estejam na verdade separados. E como precisar se existe a separação de fato ou não nestas situações?
Para caracterização da separação de fato que pode produzir efeitos, ou em outras palavras, para a separação de fato “jurídica” é necessário o preenchimento de alguns requisitos, apontados por Gama (2008, p. 288):
“Dentro da distinção entre características e requisitos, importante enunciar inicialmente as características da separação de fato: (a) objetivo de dissolução da família matrimonial anteriormente formada (ainda que de um somente); (b) instabilidade; (c) continuidade; (d) notoriedade; (e) ausência de formalismo. E, como requisitos, mais uma vez, é relevante a distinção entre os requisitos objetivos e subjetivos. Assim, podem ser enumerados os requisitos indispensáveis à configuração da separação de fato: A – requisitos objetivos: (a) a existência de casamento válido; (b) ausência de óbice a dissolução da sociedade conjugal; (c) superveniente falta de comunhão de vida; (d) lapso temporal de separação fática; (e) falta de justo motivo para a separação; B – requisitos subjetivos: (a) intenção de não mais conviver (impossibilidade de reconstituição da vida em comum); (b) ausência de affectio maritalis.”
Verifica-se portanto a necessidade do preenchimento dos requisitos do animus, continuidade e notoriedade, pois somente assim será possível que outras pessoas tenham conhecimento, além do casal, acerca da existência da separação de fato. E somente a partir disso, isto é, do preenchimento das referidas exigências, que a separação de fato produzirá efeitos no mundo jurídico.
III – Efeitos da Separação de fato
O primeiro efeito decorrente da separação de fato é a incongruência em relação ao seu estado civil. Isto porque, atualmente, pode-se dizer que considerando a legislação vigente temos os seguintes estados civis: solteiro, casado, separado judicialmente, separado extrajudicialmente, divorciado ou viúvo.
Não existe o estado civil de separado de fato, de modo que o estado civil do separado de fato é “casado”, até porque o separado de fato não passou por nenhuma formalidade, e mesmo que ajuíze a separação de corpos, ainda assim continuará com o estado civil de casado.
Inobstante isso, caso a pessoa separada de fato passe a viver em união estável com outra, o que é admitido desde o Código Civil de 2002, tal pessoa ainda permanece com estado civil de “casada”, o que é reprovável, pois na verdade, terá duas situações de fato concomitantes, a de separado de fato e a de companheira, sendo certo que ambas não são consideradas um estado civil. Daí verifica-se a necessidade do casal não manter como temporária tal situação de fato, sendo mais seguro juridicamente a regularização formal do desfazimento do casamento.
Assim, juridicamente o separado de fato ainda mantém o nome de casado, podendo, contudo, a qualquer momento iniciar o procedimento judicial para a retirada do nome e término do casamento.
Outro relevante efeito da separação de fato implica na possibilidade ou não de se partilhar os bens adquiridos nesta fase. A matéria está longe de ser pacífica, mas vem se firmando o posicionamento no sentido de que o regime de bens se extingue com a separação de fato.
O Código Civil determina expressamente que é a separação judicial que põe fim ao regime de bens, como se infere do art. 1.576: “A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens.”
A lei do divórcio, n.º 6.515/77, por sua vez, em seu art. 8º dispõe que: “A sentença que julgar a separação judicial produz seus efeitos à data de seu trânsito em julgado, o à da decisão que tiver concedido separação cautelar.”
Percebe-se que para a lei, o regime de bens se extingue pela separação judicial ou divórcio, cujos efeitos podem retroagir à data da separação de corpos. Ocorre que o texto da lei passou a ser insuficiente para dar resposta aos inúmeros casos que passaram a chegar ao judiciário onde o casal já estava separado de fato há bastante tempo e apenas um dos cônjuges, nesta condição de separado de fato adquiriu um bem exclusivamente. Será que o mais acertado era partilhar tal bem?
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 555.771/SP, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, em 18/05/2009, assentou que: “A preservação do condomínio patrimonial entre cônjuges após a separação de fato é incompatível com orientação do novo Código Civil, que reconhece a união estável estabelecida nesse período, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725) 5. Assim, em regime de comunhão universal, a comunicação de bens e dívidas deve cessar com a ruptura da vida comum, respeitado o direito de meação do patrimônio adquirido na constância da vida conjugal.”
Esta é a solução mais justa, desde que se prove quando se deu a separação de fato, ou em outras palavras, há que restar provado em juízo a data exata em que o casal se separou, para que haja o marco para o fim do regime de bens, de modo que todo e qualquer bem que tenha sido adquirido após tal data não mais se comunique pelo regime de bens.
A existência do dever de fidelidade também é objeto de questionamento na fase da separação de fato. Como é cediço, o legislador impõe a fidelidade como um dos deveres dos cônjuges, como se infere do disposto no art. 1566, inciso I do Código Civil: “São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca.”
Por outro lado, o legislador trata do fim do dever de fidelidade na mesma norma que trata do final do regime de bens: 1.576: “A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que o dever de fidelidade se extingue com a separação de fato, pois neste caso, o relacionamento do separado de fato não é mais considerado concubinato e sim união estável. Veja-se:
“DIREITO CIVIL. DOAÇÃO. AQUISIÇÃO DE IMÓVEL EM NOME DA COMPANHEIRA POR HOMEM CASADO, JÁ SEPARADO DE FATO. DISTINÇÃO ENTRE CONCUBINA E COMPANHEIRA. As doações feitas por homem casado à sua companheira, após a separação de fato de sua esposa, são válidas, porque, nesse momento, o concubinato anterior dá lugar à união estável; a contrario sensu, as doações feitas antes disso são nulas. Recurso Especial de M.S.O conhecido em parte e, nessa parte, provido; recurso especial de F.P.P.T não conhecido.” (REsp 408.296/RJ, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/06/2009, DJe 24/06/2009)
Diante deste novo cenário, pode-se dizer que a separação de fato, desde que devidamente comprovada implica também no fim do dever de fidelidade, já que o eventual novo relacionamento do separado de fato pode ser reconhecido como união estável.
Por fim, questiona-se se o separado de fato pode herdar de seu ex-cônjuge, caso o falecimento se dê após a separação.
O Código Civil de 2002, ao tratar do direito sucessório do cônjuge sobrevivente em relação aos bens de seu consorte falecido condicionou tal direito à herança àqueles que não estejam, ao tempo da morte, separados de fato há mais de dois anos: “Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.”
Cahali (2012, p. 206) já defendia antes mesmo do Código Civil de 2002 que o separado de fato não tem direito sucessório e cita que as Ordenações Filipinas já previam no Livro IV, Título 94, principium: a exclusão pura e simples do cônjuge separado de fato do autor da herança.
Dias (2012, p.59), ao tratar do Direito Sucessório também destaca a incongruência da lei em condicionar o fim do direito sucessório ao prazo de dois anos, pois a perda do direito decorreria da separação de fato em si, independentemente de qualquer prazo:
“No âmbito do direito sucessório, o Código Civil questiona culpa e perpetua o direito à herança mesmo depois de o casal estar separado de fato quando do falecimento de um dos cônjuges. Assim, mesmo o cônjuge “culpado”, durante o longo período de dois anos:preserva a condição de herdeiro necessário, concorre com os descendentes e os ascendentes; e pode ser contemplado com a herança (CC 1.830). A previsão legal não podia ser mais absurda. Absolutamente desarrazoado preservar o ex-cônjuge a condição de herdeiro, independentemente do tempo da separação.”
Há intensa crítica a possibilidade de discussão acerca da culpa pelo desfazimento da convivência, o que não é tema deste artigo, pois neste momento vale destacar que o separado de fato pode deixar de herdar apenas em razão do fim da convivência.
IV - Conclusão
Das breves palavras acima expostas percebe-se que cada vez mais são conferidos efeitos jurídicos à separação de fato. Este fenômeno se deu em razão do grande número de casais que optou em não regularizar o desfazimento de seu casamento. As dificuldades para o divórcio eram inúmeras e conhecidas, mas diante da Emenda Constitucional n.° 66/2010 foram abolidas de nosso sistema, de modo que espera-se que a partir de agora os casais formalizem o fim de seu casamento e deixem de viver apenas como separados de fato.
É que embora o sistema venha dando cada dia mais efeitos à separação de fato há que se lembrar que toda situação fática exige uma carga maior de prova, ou em outras palavras, na hipótese de existir um litígio entre as partes envolvidas a solução dependerá da prova que for realizada.
Permita-se exemplificar: imaginem que Maria e João foram casados pelo regime da comunhão parcial de bens e que se separaram de fato em maio de 2011. Em junho de 2012 João adquire um imóvel e Maria pretende que tal imóvel seja partilhado entre os dois, pois sustenta que ainda estavam casados quando da aquisição de tal bem. João, se provar que na data da compra estavam separados de fato, terá êxito em sua pretensão de não partilhar tal bem, contudo, caso não consiga realizar uma prova robusta neste sentido, o imóvel certamente será partilhado.
É justamente aí que reside a insegurança nas situações meramente fáticas e, em razão disso, pode-se afirmar que é muito melhor para João e Maria regularizarem o desfazimento do casamento, pois terão um documento caracterizado ora por uma ata notarial, ora por uma sentença, que não deixará dúvidas acerca do termo do final do casamento e o marco do início de seus efeitos.
9. Referências
CAHALI, Yussef Said, Separações conjugais e divórcio, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
CAHALI, Francisco José, HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Direito das Sucessões, São Paulo:Revista dos Tribunais, 2012.
DIAS, Maria Berenice, Manual de direito das famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
DIAS, Maria Berenice, Manual das Sucessões, São Paulo:Revista dos Tribunais, 2012.
DINIZ, Maria Helena, Curso de direito civil brasileiro, volume 5:direito de família, São Paulo:Saraiva, 2012.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira, Direito Civil - Família, São Paulo:Atlas, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, volume 6: Direito de família, São Paulo:Saraiva, 2012.
LOBO, Paulo, Direito Civil – Familias, São Paulo:Saraiva, 2009.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Divórcio: Teoria e prática, Rio de Janeiro, GZ Editora, 2010.
TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz, Curso de direito civil 2:direito de família/ Washington de Barros Monteiro, São Paulo:Saraiva, 2012.
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