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Uniões homoafetivas: uma realidade que o Brasil insiste em não ver
As questões que dizem com a sexualidade sempre foram e ainda são cercadas de mitos e tabus, e os chamados “desvios sexuais” – tidos como uma afronta à moral e aos bons costumes – permanecem alvo da mais profunda rejeição social. Tudo que se situa fora do modelo estabelecido acaba por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, o que não se encaixa nos padrões, visão essa polarizada e extremamente limitante.
No Brasil, como em praticamente todos os países do mundo, há uma nítida tentativa de negar a existência dos vínculos afetivos homossexuais, o que gera um sistema de exclusão permeado de preconceito. Tal conservadorismo acaba por inibir o legislador de normar situações que fogem dos estereótipos de moralidade aceitos no meio social.
Essa postura reflete-se também na esfera jurídica. Além da omissão do legislador, extremamente acanhado o Poder Judiciário, que se nega a emprestar visibilidade aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, impedindo a concessão de direitos quando as demandas têm por base a existência de tais vínculos.
Mas fechar os olhos não faz desaparecer a realidade, e a omissão legal e o temor judicial acabam tão-só fomentando a discriminação.
1. No Âmbito Constitucional
A Constituição Federal, que data de 1988, consagra a existência de um estado democrático de direito. O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, baseado nos princípios da liberdade e da igualdade.
De forma enfática, assegura como objetivo fundamental promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inc. IV do art. 3º). A proibição da discriminação sexual alcança a vedação à discriminação da homossexualidade. Mas as diretrizes traçadas e os princípios insculpidos na Lei Maior não são suficientes para assegurar o respeito à livre orientação sexual. Em face disso, antiga é a luta dos movimentos ligados aos direitos humanos buscando inserir no elenco da Carta Política a expressão “orientação sexual”. No entanto, o Projeto de Emenda Constitucional que data de 1995 até agora não logrou obter aprovação.
2. No Âmbito Legal
O único Projeto de Lei – entre os vários já apresentados – que se encontra em tramitação é o de nº 1.151/95, sendo que teve seu nome trocado de união civil para parceria civil registrada, segundo o substitutivo aprovado, para não ser confundida com casamento.
Visa tão-só a autorizar a elaboração de um contrato escrito, a ser registrado em livro próprio no Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais. Conforme diz a própria justificativa do Projeto, não se propõe dar às parcerias homossexuais status igual ao casamento. Busca conceder amparo às pessoas que o firmam, priorizando a garantia dos direitos de cidadania.
Essa tentativa de regulamentação assegura às pessoas do mesmo sexo terem sua parceria civil reconhecida. Ainda que não pressuponha a existência de uma relação afetiva entre os parceiros, o projeto nitidamente visa a proteger as relações homossexuais, criando um vínculo jurídico gerador de efeitos pessoais além dos patrimoniais, não podendo ser enquadrado exclusivamente no âmbito dos direitos obrigacionais.
Somente pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas têm a possibilidade de firmarem o contrato, mediante público instrumento a ser submetido a registro cartorário. É livre a possibilidade de estipulações de ordem patrimonial, inclusive com efeito retroativo. Cabível é a imposição de deveres, impedimentos e obrigações mútuas, mas é expressamente vedada qualquer disposição sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros.
Aos contratantes são garantidos direitos previdenciários e sucessórios com algumas restrições. O direito ao usufruto, de nítido caráter protetivo, tem finalidade alimentar e evidencia o caráter familiar do instituto. Assim, não se justifica a falta de previsão de alimentos, pois é assegurado amparo por morte, mas não para o caso de rompimento da relação. Porém, não há qualquer impedimento de se prever obrigação alimentar entre as cláusulas do pacto.
É assegurado o direito à meação se os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja a colaboração do parceiro, disposição pouco clara, pois exige a prova do esforço comum, mas determina a divisão paritária do patrimônio. Ao depois, o direito do parceiro prevalece ao direito dos descendentes e ascendentes, pois subtrai destes o direito ao uso dos bens. Enquanto não firme novo pacto, é assegurado o direito ao usufruto de um quarto dos bens, se houver filhos do de cujus, e da metade, embora não sobrevivam ascendentes. Tal dispositivo igualmente se ressente de clareza, pois é garantido ao sobrevivente o direito à totalidade da herança na inexistência de descendentes ou ascendentes.
Tem o parceiro preferência aos familiares para o exercício da curatela. São assegurados a impenhorabilidade da residência comum e o direito de nacionalidade em caso de estrangeiros. Também há a possibilidade de indicação do par na declaração do imposto de renda, e os rendimentos de ambos podem participar na composição para compra ou aluguel de imóvel.
Não é autorizada a mudança de sobrenome em decorrência da assinação do pacto. Há o impedimento de alteração do estado civil dos parceiros durante sua vigência, e é reconhecida a nulidade de pleno direito do contrato firmado com mais de uma pessoa. Em ambas as hipóteses a infração configura o delito de falsidade ideológica, sujeito a pena de um a cinco anos de reclusão.
A extinção da parceria ocorre por morte ou por decreto judicial face à ocorrência de infração contratual ou mediante simples alegação de desinteresse de um dos contratantes. Mesmo havendo consenso entre os parceiros, necessária é a homologação do distrato em juízo.
O Projeto, por uma dezena de vezes, foi pautado para votação, mas nunca chegou a ser apreciado. De qualquer forma, tem poucas chances de merecer imediata aprovação. Apesar de os movimentos chamados GLS – gays, lésbicas e simpatizantes – serem muito articulados e ativos, as forças conservadoras do Congresso Nacional, as quais congregam todos os segmentos religiosas, formam uma barreira quase inviolável. Afigura-se, assim, remota a possibilidade de o Brasil dispor de alguma legislação que regule tais relacionamentos tidos como “marginais”.
O que tem proliferado são leis em nível municipal, buscando a repressão de atos discriminatórios, bem como algumas Constituições dos Estados vêm inserindo em seus textos a livre orientação sexual no rol dos direitos fundamentais.
3. No Âmbito Judicial
Ainda quando o direito se encontra envolto em uma auréola de preconceito, o juiz não pode ter medo de fazer justiça. A função judicial é assegurar direitos, e não bani-los pelo simples fato de determinadas posturas se afastarem do que se convencionou chamar de “normal”. Vivenciar uma situação não prevista em lei não significa viver à margem da lei, ser desprovido de direito, nada vedando o acesso à Justiça e a busca da tutela jurídica.
A circunstância de inexistir legislação que contemple os direitos emergentes das relações homossexuais não tem impedido que algumas questões aportem no Judiciário.
A dificuldade de se reconhecer a existência de um vínculo afetivo como fundamento das pretensões deduzidas em juízo tem levado à concessão de restritos direitos e ao deferimento de bem poucos benefícios, e isso em um espectro muito limitado.
Cabe trazer a posição da jurisprudência brasileira sobre algumas questões ligadas ao tema.
3.1. Competência
Independentemente de quais sejam os direitos reclamados em juízo, as ações fundadas na existência de um vínculo afetivo homossexual apontam tal circunstância como causa de pedir. Porém, a quase unanimidade dos julgados reconhece no máximo a presença de uma sociedade de fato, confinando-a no Direito Obrigacional, sem visualizar a presença de uma entidade familiar, à semelhança da união estável heterossexual, o que impede extrair efeitos jurídicos do âmbito do Direito de Família.
A resistência em identificar os vínculos entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar levava as demandas afetas a ditos relacionamentos às Varas Cíveis, e não às Varas de Família. Decisão pioneira da Justiça do Rio Grande do Sul, datada de junho de 1999, fixou a competência das Varas de Família para julgar ação decorrente de relacionamento homossexual (AI nº 599.075.496), dando o primeiro passo para se conceder à união homossexual status de família.
A partir de tal posicionamento jurisprudencial, ao menos nesse Estado da Federação, todas as ações envolvendo os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo foram transferidas das Varas Cíveis para as Varas de Família. Igualmente restou atribuída às Câmaras de Família do Tribunal de Justiça a competência para o julgamento dos respectivos recursos. Merece registro que esse é o único Estado cujas Câmaras julgadoras são especializadas, com competência definida por matéria. Esse motivo certamente é que tem levado a Justiça gaúcha a ser considerada a que mais avanços vem introduzindo no Direito de Família de um modo geral e particularmente nas questões que envolvem os pares do mesmo sexo.
3.2. Alimentos
As uniões homossexuais continuam sendo consideradas fora do âmbito do Direito de Família, ainda que tramitando as ações nos Juizados de Família. A resistência quase maciça da jurisprudência, inibe a busca de alimentos, na via judicial.
Relegar tais questões ao âmbito obrigacional gera, no mínimo, um paradoxo, pois os juízes de família acabavam se socorrendo de distinto ramo do Direito para cujo julgamento não detinham competência.
A única ação de que se tem notícia é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, data de 13 de abril de 2000. Nos autos de uma ação de alimentos, tendo por fundamento uma relação que perdurou por 8 anos, foi rejeitado o pedido liminar de fixação de alimentos provisórios.
A maioria dos julgadores entendeu que o relacionamento homossexual não está amparado pelas leis que regulam as relações extramatrimoniais, e que modo expresso, prevêem a obrigação alimentária. Ditas leis, repetem a expressão da Constituição Federal, que reconhece como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, a união estável entre um homem e uma mulher (§ 3º do art. 226).
A decisão encontra-se assim ementada:
O relacionamento homossexual não está amparado pela Lei 8.971, de 21 de dezembro de 1994 e Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, o que impede a concessão de alimentos para uma das partes, pois o envolvimento amoroso de duas mulheres não se constitui em união estável, e semelhante convivência traduz uma sociedade de fato. Voto vencido. (AI nº 70000535542).
3.3. Partilha de Bens
Finda a relação pelo rompimento do vínculo afetivo, o pedido que com mais freqüência vem a juízo é o de partilha do patrimônio amealhado durante o período de vida em comum.
Nos julgamentos que envolvem as relações de pessoas do mesmo sexo, no dilema entre praticar uma injustiça e afrontar tabus e preconceitos, de forma tímida, a tendência é de, no máximo, reconhecer o direito à divisão proporcional do patrimônio.
Não emprestando qualquer relevo ou significado à natureza do relacionamento das partes, invoca-se o art. 1.363 do Código Civil, que regula a sociedade de fato: Celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns. Portanto, o fundamento para o deferimento da partilha de bens não é o reconhecimento de um estado condominial decorrente da vida em comum, mas a mera repulsa à possibilidade de enriquecimento injustificável.
Exige-se, por conseqüência, a prova da efetiva participação de cada um na formação do acervo patrimonial. Tenta-se identificar o aporte econômico de cada parceiro para a aquisição dos bens, a fim de se estabelecer sua proporcional partição. Tal solução, ainda que vise a impedir a ilicitude do proveito exclusivo do titular do domínio, na grande maioria das vezes resta por perpetrar resultados que em muito se distanciam de uma solução justa. Quer porque são relacionamentos que guardam uma certa discrição - o que dificulta uma probação testemunhal -, quer porque se empresta valia somente à contribuição de cunho financeiro. Não se reconhece conteúdo econômico no próprio cuidado e desvelo mútuo ou às atividades domésticas, quando desempenhadas por um do par, tratando a questão como uma sociedade de fato, e não como uma sociedade de afeto.
3.4. Direito Sucessório
Quando da morte de um dos parceiros, é buscada em juízo, em regra, a partilha dos bens adquiridos durante o período de convívio, e não a integralidade do acervo hereditário. Pretende-se a meação, sob o fundamento da existência de uma sociedade de fato, e não o direito à herança, tendo como pressuposto a existência de um núcleo familiar. Não é invocado o direito sucessório nem alegada a qualidade de herdeiro ou sucessor, ainda que inexistam herdeiros necessários.
Díspares são as decisões, mas é majoritária a tendência de rejeitar a demanda, pois enorme a dificuldade até para o reconhecimento de uma sociedade de fato. Recusa-se sistematicamente atribuir a condição de herdeiro ao parceiro, o que leva a excluí-lo da ordem de vocação hereditária e a alijá-lo dos direitos sucessórios.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar em grau de recurso especial, assim decidiu: O parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato. (REsp. nº 148897/MG).
Tais soluções restam por gerar um descabido beneficiamento dos familiares distantes que, normalmente, rejeitavam, rechaçavam e ridicularizavam a orientação sexual do de cujus. De outro lado, na ausência de parentes, acaba havendo o recolhimento da herança ao Estado pela declaração de vacância, em prejuízo de quem deveria ser reconhecido como o titular dos direitos hereditários.
Mais do que isso, não evoluía a jurisprudência.
A pioneira decisão que logrou visualizar em tais vínculos uma verdadeira entidade familiar foi proferida também pela Justiça do Rio Grande do Sul em data de 14 de março de 2001. Ainda que por maioria, a 7ª Câmara Cível – a qual tenho a honra de presidir –, no julgamento da Apelação Cível nº 70001388982, tendo como Relator o Desembargador José Carlos Teixeira Georgis, assim se manifestou:
UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. CONTRIBUIÇÃO DOS PARCEIROS. MEAÇÃO. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados destas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. Voto vencido.
Em face da omissão legal, analogicamente foi aplicada a legislação que regula as uniões extramatrimoniais. Buscando subsídios na legislação que rege a união estável, que presume a mútua colaboração, a gerar um estado condominial, foi determinada a divisão igualitária do acervo patrimonial amealhado durante o período de convivência.
A Justiça, reconhecendo o direito do parceiro à meação, retirou a venda dos olhos e viu essas relações como vínculos afetivos, o que, ao certo, em muito contribuirá para amenizar a aversão da sociedade.
De forma corajosa, cumpre o Poder Judiciário sua função renovadora, estabelecendo pautas de conduta de caráter geral. Mesmo apreciando o caso concreto, acaba funcionando como agente transformador da própria sociedade.
Se duas pessoas têm uma vida em comum, cumprindo deveres de mútua assistência, em um verdadeiro convívio caracterizado por amor e respeito mútuo, não é a identidade meramente biológica de sexos do par que impedirá de se extraírem direitos e imporem obrigações.
3.5. Condição de Dependência
Esparsas e muito raras as decisões que reconheciam a condição de dependência aos parceiros do mesmo sexo, assegurando-lhes a inclusão em planos previdenciários e assistenciais.
Assim, de enorme significado a demanda intentada pelo Ministério Público Federal, de eficácia erga omnes. Sob o fundamento de que viola o dogma constitucional de respeito à dignidade humana e afronta o princípio da igualdade, que proíbe discriminação sexual, foi liminarmente reconhecida a qualidade de dependente aos companheiros de homossexuais junto ao órgão previdenciário federal, garantindo auxílio-reclusão e a percepção da pensão por morte do beneficiário.
A liminar, confirmada em todas as instâncias recursais, levou o Instituto Nacional do Seguro Social a editar a Instrução Normativa n.º 25/2000, que estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.
Apesar do caráter administrativo de tal regra, é a primeira normatização que contempla as relações homossexuais, primeiro passo para enlaçar na esfera da juridicidade tais relacionamentos.
Assim, ao menos até o julgamento de mérito da ação, estão assegurados no Brasil – até para os vínculos que se romperam antes da edição da medida normativa – os direitos previdenciários.
4. Adoção
A mais tormentosa questão que se coloca e que mais tem dividido as opiniões é a que diz com o direito à adoção por parceiros do mesmo sexo. A enorme resistência decorre da crença de haver um dano potencial por ausência de referências comportamentais, o que viria a ensejar, no futuro, seqüelas de ordem psicológica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, editado em 1990 – com certeza uma das leis mais avançadas de proteção ao menor –, não traz qualquer restrição à possibilidade de adotar. Outorgado tal direito tanto ao homem como à mulher, conjunta ou isoladamente, não fazendo qualquer referência à orientação sexual do adotante.
No entanto, raras são as decisões judiciais que deferem pedido de adoção formulado por homossexuais, quando eles não ocultam sua condição. Praticamente solitária a postura do magistrado carioca Siro Darlan de Oliveira, tanto deferindo a adoção, como habilitando um homossexual para adotar, tendo sido ambas confirmadas em sede recursal pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (AC nº14.332/98 e AC nº14.979/98).
A determinação legal de que, no registro de nascimento, sejam os adotantes inscritos como pais, ocorrendo simples substituição da filiação biológica, serve de justificativa para se sustentar a impossibilidade de adoção por dois homens ou duas mulheres: não poderiam constar como pais no registro de nascimento. No entanto, ainda que se presuma que a lei não tenha cogitado a hipótese de ocorrer a adoção por um casal do mesmo sexo, há como sustentar a possibilidade de sua ocorrência.
Apesar de nada justificar a limitação, não se tem notícia de já ter sido requerida e muito menos deferida a adoção a um casal homossexual, restrição que acaba por gerar situações injustas, vindo exclusivamente em prejuízo do próprio menor.
A vivência de crianças e adolescentes em lares homossexuais é uma realidade. E deferir-se a adoção a um só dos parceiros assegura ao menor direito a alimentos e benefícios de cunho previdenciário ou sucessório somente com relação ao adotante. Quer pela separação do par, quer pela morte do que não tem legalmente um liame registral, dita limitação lhe acarreta injustificável prejuízo, por não poder desfrutar de qualquer direito com relação àquele que também tem como verdadeiramente seu pai ou sua mãe.
Imperioso concluir que, de forma paradoxal, o intuito de resguardar e preservar a criança resta por subtrair-lhe a possibilidade de usufruir direitos que de fato possui, limitação que afronta a própria finalidade protetiva decantada na Carta Constitucional e perseguida pela lei.
Empecilhos de toda ordem – que existem ou são criados – fazem com que soluções outras sejam buscadas por quem quer consolidar uma família por meio da prole. É usual lésbicas extraírem o óvulo de uma, fecundá-lo in vitro por espermatozóide de um doador, sendo o embrião implantado no útero da outra, que leva a termo a gestação. Como a criança será registrada somente em nome de quem deu à luz a criança, não tem a outra – que na verdade é a mãe biológica – qualquer vínculo, sequer obrigacional, com o filho que, afinal, é seu. Os prejuízos decorrentes dessa limitação são previsíveis. Registrada somente em nome de uma das mães, só dela pode buscar direitos e cobrar deveres.
Os casais masculinos, por seu turno, socorrem-se das chamadas “barrigas de aluguel”. Por meio de inseminação artificial, inclusive com utilização simultânea do sêmen de ambos, para não identificar qual deles é o genitor, a criança é tida como filho dos dois. Por igual, nesses casos, a impossibilidade de adoção conjunta subtrai o direito de o menor usufruir qualquer benefício com referência a quem igualmente considera como seu pai.
A grande dúvida sempre suscitada como fundamento para não se aceitar a adoção, quer individualmente, quer por um par homossexual, está centrada em preocupações quanto ao sadio desenvolvimento da criança. Questiona-se se a ausência de referenciais de uma dupla postura sexual poderia eventualmente tornar confusa a própria identidade de gênero, com o risco de tornar-se homossexual. Também causa apreensão a possibilidade de ela ser alvo de repúdio no meio que freqüenta ou vítima do escárnio por parte de colegas e vizinhos, o que, em tese, poderia-lhe acarretar perturbações de ordem psíquica.
Essas preocupações são afastadas com segurança por quem se debruça no estudo das famílias com essa conformação. Essencialmente não foram detectadas diferenças na identidade de gênero, no comportamento sexual ou na orientação sexual de tais infantes. Diante desses resultados, não há como prevalecer o mito de que conviver com pais do mesmo sexo pode comprometer a estabilidade emocional do filho. Portanto, equivocada a assertiva de que o menor que vive em um lar homossexual será socialmente estigmatizado e terá prejudicado seu desenvolvimento, ou que a falta de um modelo heterossexual acarretará a perda de referenciais ou tornará confusa a identidade de gênero.
Assim, imperioso concluir serem preconceituosos os escrúpulos existentes. É necessário revolver princípios, rever valores, abrir espaços para novas discussões e afastar as objeções, para que sejam admitidas adoções por indivíduos ou casais homossexuais. Dita resistência resta por excluir a possibilidade de um expressivo número de crianças serem subtraídas da marginalidade, quando poderiam ter uma vida cercada de afeto e atenção.
Posturas pessoais ou convicções de ordem moral de caráter subjetivo não podem impedir que se reconheça que uma criança sem pais e sem lar terá uma formação mais condizente com as exigências da vida, se integrada a uma família, seja esta formada por pessoas de sexos distintos ou não.
5. Inserção como Direitos Humanos
Indispensável que se reconheça que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se se não tiver assegurado o respeito à liberdade, conceito que alberga a liberdade da livre orientação sexual.
Ao visualizarem-se os direitos de forma desdobrada em gerações, mister reconhecer que a sexualidade é um direito do primeiro grupo, pois cuida-se de direito à liberdade sexual, bem como direito ao tratamento igualitário, independente da tendência sexual. Trata-se, assim, de uma liberdade individual, um direito do indivíduo, sendo, como todos os direitos de primeira geração, inalienável e imprescritível. É um direito natural que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza.
Também não se pode deixar de ter a livre orientação sexual como um direito de segunda geração, fazendo parte de uma categoria social que deve ser protegida. A hipossuficiência não pode ser identificada somente sob um viés econômico. A hipossuficiência é social, é jurídica, trata-se de deficiência de normação jurídica. Portanto, são hipossuficientes a mulher, o idoso, o deficiente, o negro, o judeu, incluindo-se neste elenco, à evidência, também os homossexuais, que, como os demais, sempre foram alvo da exclusão social.
Igualmente o direito à sexualidade avança para ser inserido como um direito de terceira geração. São os direitos componentes da dignidade humana, difusos quanto à titularidade subjetiva e direitos de solidariedade quanto ao objeto. Esses direitos da humanidade são os direitos humanos por natureza, em que se insere o respeito ao livre exercício da sexualidade. Não se pode afrontar a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano no que diz com sua orientação sexual, que integra a esfera de privacidade e não admite restrições.
6. Uniões Homoafetivas
De forma cômoda, o Judiciário busca subterfúgios no campo do Direito das Obrigações, identificando como uma sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto. A exclusão de tais relacionamentos da órbita do Direito de Família acaba impedindo a concessão dos direitos que defluem das relações familiares, tais como direitos à meação, à herança, ao usufruto, à habitação, a alimentos, a benefícios previdenciários, entre tantos outros.
Descabe continuar pensando com preconceitos, isto é, com conceitos preestabelecidos e que ainda se encontram encharcados de conservadorismo. É necessário pensar com conceitos jurídicos, e para isso é necessário pensar novos conceitos.
Daí a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. Tal como ocorreu com a união estável heterossexual: a alteração do conceito social das chamadas relações concubinárias foi provocada pelos operadores do Direito, que, ao extraírem conseqüências jurídicas de ditos relacionamentos, fizeram-nos chegar à sede constitucional, sendo reconhecidos como entidade familiar.
Ao menos até que o legislador siga a trilha da Justiça e flagre o descaso do Estado em regulamentar tais relações, que merecem, no Brasil, como já dispõem na maioria dos países do mundo, uma regulamentação própria, a responsabilidade é do Poder Judiciário.
Ainda que tenha vindo a Constituição, com ares de modernidade, outorgar a proteção do Estado à família, independentemente da celebração do casamento, continuou a ignorar a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Ora, não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. A existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento, sendo que a proteção constitucional é outorgada também às famílias monoparentais. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabe deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas.
Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas, é de se concederem os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características. Na lacuna da lei, na falta de normatização, deve o julgador se socorrer do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina a aplicação da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Ora, analogia só pode ser feita com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis.
Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os operadores do Direito, podem, em nome de uma postura preconceituosa ou discriminatória, fechar os olhos a essa nova realidade e se tornar fonte de grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões morais ou religiosas.
A mesma responsabilidade já assumiu a Justiça com referência às uniões extraconjugais. Deve agora mostrar igual independência e coragem quanto às uniões homossexuais. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso, e imperioso é reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie, ou seja, relações hetero e homoafetivas. Ambas fazem jus à mesma proteção, e, enquanto não surgir legislação que a regule especificamente, é de aplicar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares.
Indispensável que se reconheça que os vínculos homoafetivos – muito mais do que relações homossexuais – configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Está na hora de o Estado, que se quer democrático e que consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, passar a reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - BR, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFam. Autora do livro União Homossexual: O Preconceito e a Justiça.
No Brasil, como em praticamente todos os países do mundo, há uma nítida tentativa de negar a existência dos vínculos afetivos homossexuais, o que gera um sistema de exclusão permeado de preconceito. Tal conservadorismo acaba por inibir o legislador de normar situações que fogem dos estereótipos de moralidade aceitos no meio social.
Essa postura reflete-se também na esfera jurídica. Além da omissão do legislador, extremamente acanhado o Poder Judiciário, que se nega a emprestar visibilidade aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, impedindo a concessão de direitos quando as demandas têm por base a existência de tais vínculos.
Mas fechar os olhos não faz desaparecer a realidade, e a omissão legal e o temor judicial acabam tão-só fomentando a discriminação.
1. No Âmbito Constitucional
A Constituição Federal, que data de 1988, consagra a existência de um estado democrático de direito. O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, baseado nos princípios da liberdade e da igualdade.
De forma enfática, assegura como objetivo fundamental promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inc. IV do art. 3º). A proibição da discriminação sexual alcança a vedação à discriminação da homossexualidade. Mas as diretrizes traçadas e os princípios insculpidos na Lei Maior não são suficientes para assegurar o respeito à livre orientação sexual. Em face disso, antiga é a luta dos movimentos ligados aos direitos humanos buscando inserir no elenco da Carta Política a expressão “orientação sexual”. No entanto, o Projeto de Emenda Constitucional que data de 1995 até agora não logrou obter aprovação.
2. No Âmbito Legal
O único Projeto de Lei – entre os vários já apresentados – que se encontra em tramitação é o de nº 1.151/95, sendo que teve seu nome trocado de união civil para parceria civil registrada, segundo o substitutivo aprovado, para não ser confundida com casamento.
Visa tão-só a autorizar a elaboração de um contrato escrito, a ser registrado em livro próprio no Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais. Conforme diz a própria justificativa do Projeto, não se propõe dar às parcerias homossexuais status igual ao casamento. Busca conceder amparo às pessoas que o firmam, priorizando a garantia dos direitos de cidadania.
Essa tentativa de regulamentação assegura às pessoas do mesmo sexo terem sua parceria civil reconhecida. Ainda que não pressuponha a existência de uma relação afetiva entre os parceiros, o projeto nitidamente visa a proteger as relações homossexuais, criando um vínculo jurídico gerador de efeitos pessoais além dos patrimoniais, não podendo ser enquadrado exclusivamente no âmbito dos direitos obrigacionais.
Somente pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas têm a possibilidade de firmarem o contrato, mediante público instrumento a ser submetido a registro cartorário. É livre a possibilidade de estipulações de ordem patrimonial, inclusive com efeito retroativo. Cabível é a imposição de deveres, impedimentos e obrigações mútuas, mas é expressamente vedada qualquer disposição sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros.
Aos contratantes são garantidos direitos previdenciários e sucessórios com algumas restrições. O direito ao usufruto, de nítido caráter protetivo, tem finalidade alimentar e evidencia o caráter familiar do instituto. Assim, não se justifica a falta de previsão de alimentos, pois é assegurado amparo por morte, mas não para o caso de rompimento da relação. Porém, não há qualquer impedimento de se prever obrigação alimentar entre as cláusulas do pacto.
É assegurado o direito à meação se os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja a colaboração do parceiro, disposição pouco clara, pois exige a prova do esforço comum, mas determina a divisão paritária do patrimônio. Ao depois, o direito do parceiro prevalece ao direito dos descendentes e ascendentes, pois subtrai destes o direito ao uso dos bens. Enquanto não firme novo pacto, é assegurado o direito ao usufruto de um quarto dos bens, se houver filhos do de cujus, e da metade, embora não sobrevivam ascendentes. Tal dispositivo igualmente se ressente de clareza, pois é garantido ao sobrevivente o direito à totalidade da herança na inexistência de descendentes ou ascendentes.
Tem o parceiro preferência aos familiares para o exercício da curatela. São assegurados a impenhorabilidade da residência comum e o direito de nacionalidade em caso de estrangeiros. Também há a possibilidade de indicação do par na declaração do imposto de renda, e os rendimentos de ambos podem participar na composição para compra ou aluguel de imóvel.
Não é autorizada a mudança de sobrenome em decorrência da assinação do pacto. Há o impedimento de alteração do estado civil dos parceiros durante sua vigência, e é reconhecida a nulidade de pleno direito do contrato firmado com mais de uma pessoa. Em ambas as hipóteses a infração configura o delito de falsidade ideológica, sujeito a pena de um a cinco anos de reclusão.
A extinção da parceria ocorre por morte ou por decreto judicial face à ocorrência de infração contratual ou mediante simples alegação de desinteresse de um dos contratantes. Mesmo havendo consenso entre os parceiros, necessária é a homologação do distrato em juízo.
O Projeto, por uma dezena de vezes, foi pautado para votação, mas nunca chegou a ser apreciado. De qualquer forma, tem poucas chances de merecer imediata aprovação. Apesar de os movimentos chamados GLS – gays, lésbicas e simpatizantes – serem muito articulados e ativos, as forças conservadoras do Congresso Nacional, as quais congregam todos os segmentos religiosas, formam uma barreira quase inviolável. Afigura-se, assim, remota a possibilidade de o Brasil dispor de alguma legislação que regule tais relacionamentos tidos como “marginais”.
O que tem proliferado são leis em nível municipal, buscando a repressão de atos discriminatórios, bem como algumas Constituições dos Estados vêm inserindo em seus textos a livre orientação sexual no rol dos direitos fundamentais.
3. No Âmbito Judicial
Ainda quando o direito se encontra envolto em uma auréola de preconceito, o juiz não pode ter medo de fazer justiça. A função judicial é assegurar direitos, e não bani-los pelo simples fato de determinadas posturas se afastarem do que se convencionou chamar de “normal”. Vivenciar uma situação não prevista em lei não significa viver à margem da lei, ser desprovido de direito, nada vedando o acesso à Justiça e a busca da tutela jurídica.
A circunstância de inexistir legislação que contemple os direitos emergentes das relações homossexuais não tem impedido que algumas questões aportem no Judiciário.
A dificuldade de se reconhecer a existência de um vínculo afetivo como fundamento das pretensões deduzidas em juízo tem levado à concessão de restritos direitos e ao deferimento de bem poucos benefícios, e isso em um espectro muito limitado.
Cabe trazer a posição da jurisprudência brasileira sobre algumas questões ligadas ao tema.
3.1. Competência
Independentemente de quais sejam os direitos reclamados em juízo, as ações fundadas na existência de um vínculo afetivo homossexual apontam tal circunstância como causa de pedir. Porém, a quase unanimidade dos julgados reconhece no máximo a presença de uma sociedade de fato, confinando-a no Direito Obrigacional, sem visualizar a presença de uma entidade familiar, à semelhança da união estável heterossexual, o que impede extrair efeitos jurídicos do âmbito do Direito de Família.
A resistência em identificar os vínculos entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar levava as demandas afetas a ditos relacionamentos às Varas Cíveis, e não às Varas de Família. Decisão pioneira da Justiça do Rio Grande do Sul, datada de junho de 1999, fixou a competência das Varas de Família para julgar ação decorrente de relacionamento homossexual (AI nº 599.075.496), dando o primeiro passo para se conceder à união homossexual status de família.
A partir de tal posicionamento jurisprudencial, ao menos nesse Estado da Federação, todas as ações envolvendo os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo foram transferidas das Varas Cíveis para as Varas de Família. Igualmente restou atribuída às Câmaras de Família do Tribunal de Justiça a competência para o julgamento dos respectivos recursos. Merece registro que esse é o único Estado cujas Câmaras julgadoras são especializadas, com competência definida por matéria. Esse motivo certamente é que tem levado a Justiça gaúcha a ser considerada a que mais avanços vem introduzindo no Direito de Família de um modo geral e particularmente nas questões que envolvem os pares do mesmo sexo.
3.2. Alimentos
As uniões homossexuais continuam sendo consideradas fora do âmbito do Direito de Família, ainda que tramitando as ações nos Juizados de Família. A resistência quase maciça da jurisprudência, inibe a busca de alimentos, na via judicial.
Relegar tais questões ao âmbito obrigacional gera, no mínimo, um paradoxo, pois os juízes de família acabavam se socorrendo de distinto ramo do Direito para cujo julgamento não detinham competência.
A única ação de que se tem notícia é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, data de 13 de abril de 2000. Nos autos de uma ação de alimentos, tendo por fundamento uma relação que perdurou por 8 anos, foi rejeitado o pedido liminar de fixação de alimentos provisórios.
A maioria dos julgadores entendeu que o relacionamento homossexual não está amparado pelas leis que regulam as relações extramatrimoniais, e que modo expresso, prevêem a obrigação alimentária. Ditas leis, repetem a expressão da Constituição Federal, que reconhece como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, a união estável entre um homem e uma mulher (§ 3º do art. 226).
A decisão encontra-se assim ementada:
O relacionamento homossexual não está amparado pela Lei 8.971, de 21 de dezembro de 1994 e Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, o que impede a concessão de alimentos para uma das partes, pois o envolvimento amoroso de duas mulheres não se constitui em união estável, e semelhante convivência traduz uma sociedade de fato. Voto vencido. (AI nº 70000535542).
3.3. Partilha de Bens
Finda a relação pelo rompimento do vínculo afetivo, o pedido que com mais freqüência vem a juízo é o de partilha do patrimônio amealhado durante o período de vida em comum.
Nos julgamentos que envolvem as relações de pessoas do mesmo sexo, no dilema entre praticar uma injustiça e afrontar tabus e preconceitos, de forma tímida, a tendência é de, no máximo, reconhecer o direito à divisão proporcional do patrimônio.
Não emprestando qualquer relevo ou significado à natureza do relacionamento das partes, invoca-se o art. 1.363 do Código Civil, que regula a sociedade de fato: Celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns. Portanto, o fundamento para o deferimento da partilha de bens não é o reconhecimento de um estado condominial decorrente da vida em comum, mas a mera repulsa à possibilidade de enriquecimento injustificável.
Exige-se, por conseqüência, a prova da efetiva participação de cada um na formação do acervo patrimonial. Tenta-se identificar o aporte econômico de cada parceiro para a aquisição dos bens, a fim de se estabelecer sua proporcional partição. Tal solução, ainda que vise a impedir a ilicitude do proveito exclusivo do titular do domínio, na grande maioria das vezes resta por perpetrar resultados que em muito se distanciam de uma solução justa. Quer porque são relacionamentos que guardam uma certa discrição - o que dificulta uma probação testemunhal -, quer porque se empresta valia somente à contribuição de cunho financeiro. Não se reconhece conteúdo econômico no próprio cuidado e desvelo mútuo ou às atividades domésticas, quando desempenhadas por um do par, tratando a questão como uma sociedade de fato, e não como uma sociedade de afeto.
3.4. Direito Sucessório
Quando da morte de um dos parceiros, é buscada em juízo, em regra, a partilha dos bens adquiridos durante o período de convívio, e não a integralidade do acervo hereditário. Pretende-se a meação, sob o fundamento da existência de uma sociedade de fato, e não o direito à herança, tendo como pressuposto a existência de um núcleo familiar. Não é invocado o direito sucessório nem alegada a qualidade de herdeiro ou sucessor, ainda que inexistam herdeiros necessários.
Díspares são as decisões, mas é majoritária a tendência de rejeitar a demanda, pois enorme a dificuldade até para o reconhecimento de uma sociedade de fato. Recusa-se sistematicamente atribuir a condição de herdeiro ao parceiro, o que leva a excluí-lo da ordem de vocação hereditária e a alijá-lo dos direitos sucessórios.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar em grau de recurso especial, assim decidiu: O parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato. (REsp. nº 148897/MG).
Tais soluções restam por gerar um descabido beneficiamento dos familiares distantes que, normalmente, rejeitavam, rechaçavam e ridicularizavam a orientação sexual do de cujus. De outro lado, na ausência de parentes, acaba havendo o recolhimento da herança ao Estado pela declaração de vacância, em prejuízo de quem deveria ser reconhecido como o titular dos direitos hereditários.
Mais do que isso, não evoluía a jurisprudência.
A pioneira decisão que logrou visualizar em tais vínculos uma verdadeira entidade familiar foi proferida também pela Justiça do Rio Grande do Sul em data de 14 de março de 2001. Ainda que por maioria, a 7ª Câmara Cível – a qual tenho a honra de presidir –, no julgamento da Apelação Cível nº 70001388982, tendo como Relator o Desembargador José Carlos Teixeira Georgis, assim se manifestou:
UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. CONTRIBUIÇÃO DOS PARCEIROS. MEAÇÃO. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados destas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. Voto vencido.
Em face da omissão legal, analogicamente foi aplicada a legislação que regula as uniões extramatrimoniais. Buscando subsídios na legislação que rege a união estável, que presume a mútua colaboração, a gerar um estado condominial, foi determinada a divisão igualitária do acervo patrimonial amealhado durante o período de convivência.
A Justiça, reconhecendo o direito do parceiro à meação, retirou a venda dos olhos e viu essas relações como vínculos afetivos, o que, ao certo, em muito contribuirá para amenizar a aversão da sociedade.
De forma corajosa, cumpre o Poder Judiciário sua função renovadora, estabelecendo pautas de conduta de caráter geral. Mesmo apreciando o caso concreto, acaba funcionando como agente transformador da própria sociedade.
Se duas pessoas têm uma vida em comum, cumprindo deveres de mútua assistência, em um verdadeiro convívio caracterizado por amor e respeito mútuo, não é a identidade meramente biológica de sexos do par que impedirá de se extraírem direitos e imporem obrigações.
3.5. Condição de Dependência
Esparsas e muito raras as decisões que reconheciam a condição de dependência aos parceiros do mesmo sexo, assegurando-lhes a inclusão em planos previdenciários e assistenciais.
Assim, de enorme significado a demanda intentada pelo Ministério Público Federal, de eficácia erga omnes. Sob o fundamento de que viola o dogma constitucional de respeito à dignidade humana e afronta o princípio da igualdade, que proíbe discriminação sexual, foi liminarmente reconhecida a qualidade de dependente aos companheiros de homossexuais junto ao órgão previdenciário federal, garantindo auxílio-reclusão e a percepção da pensão por morte do beneficiário.
A liminar, confirmada em todas as instâncias recursais, levou o Instituto Nacional do Seguro Social a editar a Instrução Normativa n.º 25/2000, que estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.
Apesar do caráter administrativo de tal regra, é a primeira normatização que contempla as relações homossexuais, primeiro passo para enlaçar na esfera da juridicidade tais relacionamentos.
Assim, ao menos até o julgamento de mérito da ação, estão assegurados no Brasil – até para os vínculos que se romperam antes da edição da medida normativa – os direitos previdenciários.
4. Adoção
A mais tormentosa questão que se coloca e que mais tem dividido as opiniões é a que diz com o direito à adoção por parceiros do mesmo sexo. A enorme resistência decorre da crença de haver um dano potencial por ausência de referências comportamentais, o que viria a ensejar, no futuro, seqüelas de ordem psicológica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, editado em 1990 – com certeza uma das leis mais avançadas de proteção ao menor –, não traz qualquer restrição à possibilidade de adotar. Outorgado tal direito tanto ao homem como à mulher, conjunta ou isoladamente, não fazendo qualquer referência à orientação sexual do adotante.
No entanto, raras são as decisões judiciais que deferem pedido de adoção formulado por homossexuais, quando eles não ocultam sua condição. Praticamente solitária a postura do magistrado carioca Siro Darlan de Oliveira, tanto deferindo a adoção, como habilitando um homossexual para adotar, tendo sido ambas confirmadas em sede recursal pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (AC nº14.332/98 e AC nº14.979/98).
A determinação legal de que, no registro de nascimento, sejam os adotantes inscritos como pais, ocorrendo simples substituição da filiação biológica, serve de justificativa para se sustentar a impossibilidade de adoção por dois homens ou duas mulheres: não poderiam constar como pais no registro de nascimento. No entanto, ainda que se presuma que a lei não tenha cogitado a hipótese de ocorrer a adoção por um casal do mesmo sexo, há como sustentar a possibilidade de sua ocorrência.
Apesar de nada justificar a limitação, não se tem notícia de já ter sido requerida e muito menos deferida a adoção a um casal homossexual, restrição que acaba por gerar situações injustas, vindo exclusivamente em prejuízo do próprio menor.
A vivência de crianças e adolescentes em lares homossexuais é uma realidade. E deferir-se a adoção a um só dos parceiros assegura ao menor direito a alimentos e benefícios de cunho previdenciário ou sucessório somente com relação ao adotante. Quer pela separação do par, quer pela morte do que não tem legalmente um liame registral, dita limitação lhe acarreta injustificável prejuízo, por não poder desfrutar de qualquer direito com relação àquele que também tem como verdadeiramente seu pai ou sua mãe.
Imperioso concluir que, de forma paradoxal, o intuito de resguardar e preservar a criança resta por subtrair-lhe a possibilidade de usufruir direitos que de fato possui, limitação que afronta a própria finalidade protetiva decantada na Carta Constitucional e perseguida pela lei.
Empecilhos de toda ordem – que existem ou são criados – fazem com que soluções outras sejam buscadas por quem quer consolidar uma família por meio da prole. É usual lésbicas extraírem o óvulo de uma, fecundá-lo in vitro por espermatozóide de um doador, sendo o embrião implantado no útero da outra, que leva a termo a gestação. Como a criança será registrada somente em nome de quem deu à luz a criança, não tem a outra – que na verdade é a mãe biológica – qualquer vínculo, sequer obrigacional, com o filho que, afinal, é seu. Os prejuízos decorrentes dessa limitação são previsíveis. Registrada somente em nome de uma das mães, só dela pode buscar direitos e cobrar deveres.
Os casais masculinos, por seu turno, socorrem-se das chamadas “barrigas de aluguel”. Por meio de inseminação artificial, inclusive com utilização simultânea do sêmen de ambos, para não identificar qual deles é o genitor, a criança é tida como filho dos dois. Por igual, nesses casos, a impossibilidade de adoção conjunta subtrai o direito de o menor usufruir qualquer benefício com referência a quem igualmente considera como seu pai.
A grande dúvida sempre suscitada como fundamento para não se aceitar a adoção, quer individualmente, quer por um par homossexual, está centrada em preocupações quanto ao sadio desenvolvimento da criança. Questiona-se se a ausência de referenciais de uma dupla postura sexual poderia eventualmente tornar confusa a própria identidade de gênero, com o risco de tornar-se homossexual. Também causa apreensão a possibilidade de ela ser alvo de repúdio no meio que freqüenta ou vítima do escárnio por parte de colegas e vizinhos, o que, em tese, poderia-lhe acarretar perturbações de ordem psíquica.
Essas preocupações são afastadas com segurança por quem se debruça no estudo das famílias com essa conformação. Essencialmente não foram detectadas diferenças na identidade de gênero, no comportamento sexual ou na orientação sexual de tais infantes. Diante desses resultados, não há como prevalecer o mito de que conviver com pais do mesmo sexo pode comprometer a estabilidade emocional do filho. Portanto, equivocada a assertiva de que o menor que vive em um lar homossexual será socialmente estigmatizado e terá prejudicado seu desenvolvimento, ou que a falta de um modelo heterossexual acarretará a perda de referenciais ou tornará confusa a identidade de gênero.
Assim, imperioso concluir serem preconceituosos os escrúpulos existentes. É necessário revolver princípios, rever valores, abrir espaços para novas discussões e afastar as objeções, para que sejam admitidas adoções por indivíduos ou casais homossexuais. Dita resistência resta por excluir a possibilidade de um expressivo número de crianças serem subtraídas da marginalidade, quando poderiam ter uma vida cercada de afeto e atenção.
Posturas pessoais ou convicções de ordem moral de caráter subjetivo não podem impedir que se reconheça que uma criança sem pais e sem lar terá uma formação mais condizente com as exigências da vida, se integrada a uma família, seja esta formada por pessoas de sexos distintos ou não.
5. Inserção como Direitos Humanos
Indispensável que se reconheça que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se se não tiver assegurado o respeito à liberdade, conceito que alberga a liberdade da livre orientação sexual.
Ao visualizarem-se os direitos de forma desdobrada em gerações, mister reconhecer que a sexualidade é um direito do primeiro grupo, pois cuida-se de direito à liberdade sexual, bem como direito ao tratamento igualitário, independente da tendência sexual. Trata-se, assim, de uma liberdade individual, um direito do indivíduo, sendo, como todos os direitos de primeira geração, inalienável e imprescritível. É um direito natural que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza.
Também não se pode deixar de ter a livre orientação sexual como um direito de segunda geração, fazendo parte de uma categoria social que deve ser protegida. A hipossuficiência não pode ser identificada somente sob um viés econômico. A hipossuficiência é social, é jurídica, trata-se de deficiência de normação jurídica. Portanto, são hipossuficientes a mulher, o idoso, o deficiente, o negro, o judeu, incluindo-se neste elenco, à evidência, também os homossexuais, que, como os demais, sempre foram alvo da exclusão social.
Igualmente o direito à sexualidade avança para ser inserido como um direito de terceira geração. São os direitos componentes da dignidade humana, difusos quanto à titularidade subjetiva e direitos de solidariedade quanto ao objeto. Esses direitos da humanidade são os direitos humanos por natureza, em que se insere o respeito ao livre exercício da sexualidade. Não se pode afrontar a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano no que diz com sua orientação sexual, que integra a esfera de privacidade e não admite restrições.
6. Uniões Homoafetivas
De forma cômoda, o Judiciário busca subterfúgios no campo do Direito das Obrigações, identificando como uma sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto. A exclusão de tais relacionamentos da órbita do Direito de Família acaba impedindo a concessão dos direitos que defluem das relações familiares, tais como direitos à meação, à herança, ao usufruto, à habitação, a alimentos, a benefícios previdenciários, entre tantos outros.
Descabe continuar pensando com preconceitos, isto é, com conceitos preestabelecidos e que ainda se encontram encharcados de conservadorismo. É necessário pensar com conceitos jurídicos, e para isso é necessário pensar novos conceitos.
Daí a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. Tal como ocorreu com a união estável heterossexual: a alteração do conceito social das chamadas relações concubinárias foi provocada pelos operadores do Direito, que, ao extraírem conseqüências jurídicas de ditos relacionamentos, fizeram-nos chegar à sede constitucional, sendo reconhecidos como entidade familiar.
Ao menos até que o legislador siga a trilha da Justiça e flagre o descaso do Estado em regulamentar tais relações, que merecem, no Brasil, como já dispõem na maioria dos países do mundo, uma regulamentação própria, a responsabilidade é do Poder Judiciário.
Ainda que tenha vindo a Constituição, com ares de modernidade, outorgar a proteção do Estado à família, independentemente da celebração do casamento, continuou a ignorar a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Ora, não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. A existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento, sendo que a proteção constitucional é outorgada também às famílias monoparentais. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabe deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas.
Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas, é de se concederem os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características. Na lacuna da lei, na falta de normatização, deve o julgador se socorrer do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina a aplicação da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Ora, analogia só pode ser feita com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis.
Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os operadores do Direito, podem, em nome de uma postura preconceituosa ou discriminatória, fechar os olhos a essa nova realidade e se tornar fonte de grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões morais ou religiosas.
A mesma responsabilidade já assumiu a Justiça com referência às uniões extraconjugais. Deve agora mostrar igual independência e coragem quanto às uniões homossexuais. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso, e imperioso é reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie, ou seja, relações hetero e homoafetivas. Ambas fazem jus à mesma proteção, e, enquanto não surgir legislação que a regule especificamente, é de aplicar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares.
Indispensável que se reconheça que os vínculos homoafetivos – muito mais do que relações homossexuais – configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Está na hora de o Estado, que se quer democrático e que consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, passar a reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - BR, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFam. Autora do livro União Homossexual: O Preconceito e a Justiça.
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