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Regras da Vida: uma reflexão fílmica sobre o relativismo moral relacionado à prática do aborto
Resumo: O presente artigo trata do conflito existente entre direito e moral que permeia a prática do aborto ilegal, assim considerado devido à existência da influência de uma moral dominante, mas não universal, sobre o direito. Partindo do pressuposto de que os sistemas morais e jurídicos constituem ordens normativas distintas e, muitas vezes, conflitantes, observamos que as regras do Estado podem estar em conflito com as regras informais da convivência em relação à proibição da prática do aborto. O ponto central de nossa reflexão está na análise do filme Regras da Vida, relacionado a teorias jurídicas críticas que estudam a questão.
Palavras-chave: cinema, aborto, direito, moral, relativismo
Introdução
O cinema constitui umas das formas artísticas de expressão humana que, além de meramente expor visualmente narrativas, tem a capacidade de ensejar a reflexão, o pensamento, os questionamentos sobre o mundo e as relações sociais. Reflete as preocupações presentes em determinada sociedade, sendo capaz de sensibilizar e adentrar nos mais recônditos espaços da vida, ultrapassando, desta forma, o âmbito da racionalidade que comumente se basta nos textos escritos.
Ao considerar elementos emocionais e afetivos, o cinema potencializa a compreensão do sujeito e do próprio mundo que o circunda, sendo capaz de ampliar, de modo considerável, as formas sedimentadas do saber, sensibilizando o sujeito que não é só expectador, mas deixa-se afetar pelo conteúdo ao qual assiste, e que assim pode repensar suas concepções, ou mesmo apreender o que lhe escaparia nas leituras sobre um determinado assunto.
Não poderia ser diferente quanto ao tema do aborto, o qual constitui um dos mais intrincados problemas ético-jurídicos, que enseja disputas e celeumas perenes. A inconciliável controvérsia existente sobre a moralidade e legitimidade das práticas abortivas transcende o tempo e o espaço, sendo possível encontrar reflexões várias, que se pautam por diferentes aspectos do problema, que se mantém atual.
Diante disso, o objetivo deste ensaio não é apresentar, de modo conclusivo, uma solução às controvérsias sobre o tema, mas sim esboçar uma análise que parta da linguagem visual do cinema, que não é indiferente ao assunto. Elegemos, para tanto, o filme Regras da Vida (The Cider House Rules, Lasse Hallström, 1999) que representa uma das várias abordagens possíveis e que é capaz de problematizar as relações existentes entre as regras morais e jurídicas. E a relação entre o Direito e a Moral, sabe-se, é das disputas filosóficas mais árduas existentes na Filosofia do Direito.
Antes da análise do filme selecionado, importa discorrer, brevemente, sobre a possibilidade de utilização da linguagem visual como ponto de partida para a reflexão, bem como sobre algumas das relações possíveis entre o Direito e a Moral.
- 1. O cinema como linguagem reflexiva
A proposta de análise das questões ético-jurídicas, por meio de filmes, parte da premissa de que o cinema constitui uma linguagem visual, que se desenvolveu com o projeto de contar estórias (Cf. Jean-Claude Bernadet, 2006:32-33) e é capaz de problematizar e expor, de modo contundente, inúmeros questionamentos e reflexões, incluindo um componente afetivo que as obras escritas teriam dificuldade de sequer esboçar. É dizer, noutras palavras, que a linguagem visual instaura uma nova perspectiva no que diz respeito ao objeto do conhecimento, expandindo as possibilidades cognitivas com a utilização do componente emocional, inerente aos dramas humanos.
Neste sentido, de acordo com a proposta de Julio Cabrera, pode-se dizer que o cinema pensa, ensejando a problematização por meio de imagens. Deveras, "o que é essencial na filosofia é o questionamento radical e o caráter hiperabrangente de suas considerações. Isto não é incompatível, ab initio, com uma apresentação imagética (por meio de imagens) de questões, e seria um preconceito pensar que existe uma incompatibilidade. Se houver, será preciso apresentar argumentos, porque não é uma questão óbvia" (2006:17).
Esta linguagem visual compõe uma nova racionalidade, denominada logopática, que articula os componentes racional (logos) e emocional (pathos), e se vale dos conceitos-imagem, que constituem um conceito visual que funciona no sentido de uma experiência que o espectador precisa ter, ou seja, "saber algo, do ponto de vista logopático, não consiste somente em ter 'informações', mas também em estar aberto a certo tipo de experiência e em deixar-se afetar por uma coisa de dentro dela mesma, em uma experiência vivida. De forma que é preciso aceitar que parte deste saber não é dizível, não pode ser transmitido àquele que, por um ou outro motivo, não está em condições de ter as experiências correspondentes" (Cf. Cabrera, 2006:21).
Com isso, a depender da sensibilização do sujeito que assiste ao filme, a mensagem e as questões propostas poderão ser captadas com maior intensidade. Inegável a participação daquele que assiste, podendo considerar-se um co-constituinte daquilo que se pretende transmitir, e que não é definitivo, estando aberto a várias interpretações possíveis, que transcendem mesmo a obra inicialmente pensada pelo diretor.
Vale dizer própria experiência da situação-cinema (Cf. Hugo Mauerhofer, 1983:375), no isolamento completo do mundo exterior, sem interferências e distúrbios ao redor daquilo que se projeta na tela é um diferencial para a compreensão da linguagem cinematográfica, e a forma de sentir o que nos é transmitido.
- 2. Direito e Moral: as relações existentes entre as duas ordens normativas sociais
Há muito tempo, juristas e filósofos buscam estabelecer as relações entre Direito e Moral, buscando definições ou ordenação de características capazes de delimitar ambas as instâncias, o que pode ser compreendido, de certo modo, como a busca das relações entre o Direito e a Justiça, ou, num sentido ainda mais crítico, na verificação de uma infinidade de ordens morais, fragmentando a possibilidade de um sentido absoluto do justo: exsurge, assim, as disputas entre relativistas e universalistas, que se digladiam acerca da existência, ou não, de uma Moral Absoluta.
Na Grécia, podemos citar as distinções entre o que se denominava de justo por natureza e justo por convenção, como uma possível alusão à Moral (natureza) e ao Direito (convenção), como escreve Miguel Reale, em sua Filosofia do Direito (1982:618-619). Mas não se pode dizer que nisso se situe uma solução definitiva para este questionamento - que ainda hoje se mantém aberto.
Em Roma, parece ter havido uma noção da diferença entre Direito e Moral, o que se verifica pela criação de alguns brocardos, como o célebre non omne quod licet, honestum est, ou seja, nem tudo o que é honesto (moral), é legal, lícito. Contudo, destaca Reale, outros adágios constariam esta suposta diferenciação à qual teriam tido ciência os romanos, o que se depreende dos princípios gerais do direito, impregnados de um conteúdo moral, tais como honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere (1982:627).
Também na Idade Média não se encontra uma separação nítida entre Direito e Moral. Aliás, destaca Tércio Sampaio Ferraz Jr., "o Direito não perde seu caráter sagrado. Adquire, porém, uma dimensão de sacralidade transcendente, pois de origem externa à vida humana na Terra, deferente da dos romanos, que era imanente (caráter sagrado - mítico - da fundação). Surge, assim, um novo saber prudencial, destinado a conhecer e a interpretar a lei e a ordem de uma forma peculiar, pois enquanto para os romanos o direito era um saber das coisas divinas e humanas, para a Idade Média os saberes são distintos, ainda que guardassem uma relação de subordinação" (1994:63).
É com o advento da Era Moderna que se esboça, com mais precisão, as possíveis distinções entre Direito e Moral, como se verifica nas obras dos contratualistas Hobbes e Rousseau (Cf. Reale: 643-644). Porém, enquanto para o primeiro a tônica é no indivíduo, para o segundo é a comunidade (Cf. Comparato, 229).
O contratualismo representa, assim, uma espécie de propulsor do Direito na Era Moderna. Deveras, "da idéia de indivíduo em estado de natureza, sem leis, sem normas, surge a idéia da possibilidade de contratar. Da possibilidade de contratar deriva o fato do contrato; e do contrato, a norma. Note-se que se opera uma inversão completa na concepção do Direito. Tudo converge para a pessoa do homem enquanto homem em estado de natureza, concebido por abstração como anterior à sociedade. A sociedade é fruto do contrato, dizem uns; enquanto que outros, mais moderados, limitarão o âmbito da gênese contratual: - a sociedade é um fato natural, mas o Direito é um fato contratual" (Cf. Reale, 642).
A moral, nestes termos, seria anterior ao contrato, mas sua condição primordial, mas há diferenças inegáveis entre cada autor, o fato é que "o contratualismo, focalizando de maneira direta o problema da legitimidade racional da ordem jurídica, não podia deixar de levar os seus cultores a uma delimitação entre a Moral, o Direito e as demais formas de conduta humana. Foi o que se deu por obra de Espinosa, Pufendorf, Thomasius e Kant" (Cf. Reale, 643-647).Mas se engana quem imagina existir delimitação clara entre Direito e Moral. Deveras, é preciso ponderar, de início, que apesar de possível, não é uma relação necessária. Não há equivalência ou repetição de uma pela outra sempre. É o que ficará claro ao analisarmos o filme Regras da Vida. Muitas das disputas e dramas humanos surgem exatamente pelo conflito existente entre as normas de uma e outra ordem, que não se equivalem.
Entre os inúmeros pensadores que se propõe a estabelecer as relações existentes entre o Direito e a Moral, destacamos Kelsen. Podemos dizer, numa análise inicial, que uma e outra ordem compõe um gênero normativo, as normas sociais. Ou seja, tanto o Direito como a Moral constitui-se de comandos prescritivos, que dirigem a conduta das pessoas.
Tomando esta premissa, com base na idéia de coação e de sanção, conclui Kelsen que "uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral (...) se concebe como uma ordem de coação, isto é, uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não constitui quaisquer sanções desses tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme as normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física" (2009:68-71).
De fato, o que constitui regra jurídica, encampada por comando positivado, vai depender de fatores históricos e culturais, o que é algo contingente. Facilmente se percebe a emergência de inúmeras ordens normativas paralelas que compõe os vários parâmetros morais presentes numa sociedade, o que torna impossível falar em uma Moral absoluta e única. Coexistem uma pluralidade de padrões normativos morais, sendo possível referir-se, no máximo, a padrões dominantes, mas nunca universais.
Passemos à análise do filme, que representa uma das abordagens que se pode realizar, entre tantas outras. De fato, pondera Cabrera que "não existem filmes totalmente lógicos, concludentes, fechados, sem experiencial idade aberta, sem problematização imagética, com uma proposta de solução definitiva (...) o cinema nunca confirma nada. Volta a abrir o que parecia aceito e estabilizado" (2006:34).
- 3. As regras da vida em conflito com as regras do Estado proibitivas do aborto
O filme Regras da Vida cuida, no seu enredo, de algumas questões que permeiam os debates referentes à interrupção da gravidez. Importa destacar, antes de tudo, que esta película compõe uma das análises realizadas na dissertação de mestrado do co-autor Luciano Correa Ortega (O Conceito de Pessoa Moral como Critério para Análise do Aborto Provocado: Considerações Interdisciplinares), por sugestão da Professora orientadora, a co-autora deste artigo Mara Regina de Oliveira.
Trata-se de um filme de época, com uma fotografia delicadamente primorosa, que espelha o seu conceito-imagem de sensibilidade humana, ao tratar de temas muitos polêmicos, que envolvem, basicamente, a posição do médico diante do problema do aborto ilegal e da adoção de crianças abandonadas. Vários dos assuntos que se passam na vida das personagens poderiam ser transportados para o presente, o que revela a atualidade perene das causas e conseqüências humanas de um aborto. Meio à história, destacaremos somente aquilo que é pertinente ao aborto, deixando de lado considerações que se imbricam a assuntos outros abordados no filme. Não haverá, no entanto, prejuízo para o entendimento das discussões.
Especificamente, podemos citar a questão da adoção de crianças como uma das opções possíveis em detrimento da realização de um aborto, como o faz Celia Wolf-Devine (2009:98), o que ensejaria a proteção da vida, um modo de salvaguardar aqueles que ainda não nasceram, e nem nascerão com a interrupção da gravidez. Como contraponto, destaca-se que a ocorrência de gravidezes indesejadas, por razões várias, pode ser um fator de desestabilização emocional, uma forma de violência silenciosa. E, na confluência destes acontecimentos, tem-se o orfanato.
Em St. Cloud's, o orfanato é o cenário de realidades bem distintas, e até certo ponto complementares. Como se destaca no início da película, é o local aonde as pessoas vão por dois motivos: ou acrescentarão alguém em suas vidas (por meio da adoção), ou deixarão alguém para trás (para a adoção, ou pela interrupção da gravidez).
Neste cenário, nos é apresentado Homer Wells, criança que foi rejeitada mesmo após duas adoções, sendo devolvida ao orfanato onde crescerá sob os cuidados do Sr.Wilbur Larch - médico que, além de cuidar das crianças do orfanato, realiza partos e abortos ilegais, com a ajuda das enfermeiras que lá trabalham. O Sr. Larch pode ser considerado um verdadeiro tutor de Homer, e, de certo modo, explicitará algumas das angústias e controvérsias éticas subjacentes à decisão de uma mulher em interromper a gravidez, para além das regras positivadas, o que propicia o debate entre o médico e o seu "aprendiz", a quem é muito difícil a aceitação desta espécie de "assassinato", veladamente nomeado de aborto.
De fato, ao crescer, Homer passa a acompanhar o médico nos atendimentos, e aprende a profissão com o mestre, ainda que de modo informal. É habilitado, pois, aos procedimentos de rotina, mas logo exsurge um dilema ético ao qual nos referimos, representado pela recusa de Homer em realizar abortos. Não vê com bons olhos a prática de interrupção da gravidez, que considera algo abjeto. Mas o Dr. Larch, sempre tentando cultivar o interesse do jovem inclusive na realização de abortos, argumenta que os abortos são, na verdade, um modo de ajudar as mulheres que não encontram ajuda em nenhum outro lugar.
Homer tem consciência da ilegalidade, e a cita como um dos motivos para não praticar o aborto. Porém, ficam nítidas suas convicções contrárias, que não se resumem à ilegalidade da prática. O jovem tem incorporada uma Moral cristã rígida, que não se coaduna com as práticas médicas abortivas. Neste círculo, a ilegalidade é apenas um reforço da imoralidade que a seus olhos é a morte de um feto causada propositalmente, um ataque à vida humana em formação, que interrompe a possibilidade da própria existência.
Numa das "visitas ao orfanato", nos são apresentados Candy e Wally, personagens que estão envoltos nas decisões envolvendo a interrupção da gravidez, especialmente Candy, que estará ao centro de um triângulo amoroso, a envolver também Homer. As crianças, que brincavam eufóricas na neve, ao presenciarem a aproximação do veículo, logo cercam o casal. Tornam-se sérias, e há um misto de esperança de uma possível adoção, contando as qualidades que as tornam dignas da escolha, em detrimento das outras. Algumas, já desiludidas, vêem a visita com desalento: conheço os tipos, vão levar um dos bebês. Assim, fica assentada uma característica da adoção, que tem como referência as crianças menores e os bebês - nota-se, aliás, que alguns poucos adolescentes, não têm mais chances de conseguir um local. A imagem, que destaca por meio do close-up as expressões nas faces das crianças, os sentimentos que elas transmitem e que sentimos. E, como destaca Bela Balacs, "os bons close-ups são líricos; é o coração, e não os olhos, que os percebe"(1983:91).
Neste ponto, é de se destacar que há, infelizmente, a preferência por padrões de crianças adotadas. Nem todas conseguem, havendo óbices de várias ordens - como a faixa etária. Não é objeto deste trabalho, mas por certo, a temática é rica, e possibilitaria um estudo próprio. O isolamento do local faz com que os pequenos se deslumbrem com o carro que chega, ávidas de curiosidade e de esperança. E a diversão do cinema é o movimento que induz à fantasia: a fantasia de uma mãe. No único filme projetado num aparelho antigo, King Kong nutre pela personagem feminina um amor que, para as crianças, é maternal: pensa que é a mãe dele, repetem. Mas sempre o filme é interrompido por problemas no projetor.
Há uma projeção-identificação nítida, e as crianças projetam a necessidade de afeto do primata. Leciona Edgar Morin, neste sentido, que "um primeiro e elementar processo de projeção-identificação vem, pois, conferir às imagens cinematográficas realidade suficiente para que as projeções-identificações ordinárias possam entrar em jogo. Por outras palavras, há um mecanismo de projeção-identificação na origem da percepção cinematográfica. Por outras palavras ainda, a participação subjetiva aproveita no cinematógrafo o caminho da reconstituição objetiva. Não possuímos, contudo, bagagem suficiente para atacar de frente este problema essencial. Contornemo-lo, provisoriamente, limitando-nos a verificar que a impressão de vida e de realidade própria das imagens cinematográficas é inseparável de um primeiro impulso de participação" (1983:151).
E em outras ocasiões, a figura materna vem à tona, como as indagações das crianças sobre a mãe do médico, e um sentimento misturado, que esboça um ódio pelo abandono, uma mágoa que só seria apagada de uma forma: pela morte da mãe e do pai: às vezes eu gostaria de encontrá-los só para matá-los, diz um dos meninos do lugar. Candy e Wally, no entanto, não estão lá para adotar. Logo se percebe que buscam o orfanato para induzir um aborto, que é realizado sem intercorrências.
Neste entremeio, uma nova moça chega ao lugar, mas sua situação é grave, pois procurara uma pessoa despreparada e incapacitada para a realização do aborto. O feto já havia sido expelido: entretanto, o útero estava perfurado, com um objeto estranho que, pela suposição do Dr. Larch, seria uma agulha de crochê. Em tela, os métodos clandestinos, sem mínimas condições de higiene e salubridade, que permeiam a história do aborto proibido. Na ocasião, aproveita o médico responsável pelo orfanato para perguntar a Homer: se ela tivesse vindo até você há quatro meses e tivesse pedido por um simples aborto, o que você faria? Nada. É isso que significa não fazer nada. E aponta para a moça, sofrendo dores atrozes com a inflamação. Como desfecho deste caso, presenciamos o enterro da moça. Não havia o que ser feito.
Mais uma vez, podemos notar o debate entre o Dr. Larch (L) e Homer (H) acerca das condutas presentes no contexto da interrupção da gravidez. L: Homer, se você espera que as pessoas sejam responsáveis pelos seus filhos, tem que dar a elas o direito de decidir se querem ou não este filhos. H: Que tal esperar que eles sejam responsáveis por elas mesmas para começar? L: O que me diz dessa criança? Esperava que ela fosse responsável? H: Eu falo dos adultos. Há, portanto, dois ângulos de análise axiológico do problema, quais sejam a dificuldade de os "órfãos" serem adotados, mas ainda assim estarem vivos, e a chance de terem terminado num incinerador, abortados. A que arremata o médico: você é feliz por estar vivo sob qualquer circunstância. É isso que você pensa?
Há, nas ponderações de Homer, inegavelmente, um viés que se assenta no dogma da sacralidade da vida humana (sanctity-of-life doctrine), bem intangível, a ser preservado a qualquer custo. Este debate pode ser dimensionado, em termos, na oposição posta por Celia Wolf-Devine e Philip E. Devine entre o comunitarismo e o individualismo. Para os autores, haveria uma verdadeira obrigação dos pais de cuidar dos fetos. Tem-se, no fundo, a idéia de responsabilidade parental pelo produto da concepção, como ensina Célia Wolf-Devine (2009:94).
Por ocasião do retorno do casal para o local de origem, Homer aproveita e pega uma carona, desejoso de conhecer o mundo - até então restrito ao orfanato. Isto é visto com certa tristeza por Dr. Larch, que esperava tê-lo como médico do lugar, de certo modo, substituindo-o.
Então, parte Homer com Candy e Wally, sendo-lhe oferecida a oportunidade de trabalhar na fazenda dirigida pela mãe de Wally. Assim, Homer junta-se aos serviçais na colheita de maçãs, que ocorre por temporadas. Nas épocas de entressafra, os trabalhadores partem para outros lugares, retornando quando do recomeço da colheita. Entre os colhedores, merecerão destaque, para o intuito desta análise, os familiares "Rose", pai (Sr. Rose) e filha (Rose Rose).
Com o retorno de Wally para lutar na guerra, ficam na fazenda a sua mãe, os trabalhadores da colheita e Homer, que recebe a visita freqüente de Candy - por quem se apaixonará. E, neste período fora do orfanato, Homer conhece uma infinidade de novidades, nunca antes sonhadas na restrição do orfanato. E relata, nas cartas que escreve, acompanhadas das maças que envia, as nuances de suas novas experiências.
Durante a estadia de Homer na fazenda, algumas mudanças pairam no ar: querem substituir o Dr. Larch por alguém que não realize abortos. Na esperança de ver Homer ocupando seu posto, o médico falsifica um diploma e, para convencer os responsáveis pela escolha do novo médico do lugar, satiriza, ironicamente, Homer, como missionário idiota. E a tática dá certo, pois acham que Homer é o médico ideal para o lugar. Entusiasmado, Dr. Larch envia uma maleta com instrumentos para Homer, e, mais uma vez, a troca de correspondências deixa claras as posições divergentes dos dois médicos. H: Eu sei o que o Senhor faz. Brinca de Deus. Matar ratos é o mais próximo do papel de Deus que quero chegar. L: Homer, aqui em St. Cloud's me foi dada a oportunidade de brincar de Deus ou deixar tudo entregue a sua própria sorte. Mulheres e homens deveriam agarrar este momento quando é possível brincar de Deus porque não terão muitos.
Após o recomeço da safra, os trabalhadores retornam como de costume, mas um episódio marca esta volta. A Sra. Rose Rose está diferente, o que denuncia seu vômito, seu enjôo e seu humor alterado. Não tarda para que Homer e Candy descubram que ela está grávida. O bebê, nas palavras expressas de Rose Rose não é desejado, e é fruto de incesto. Seu próprio pai a engravidara. Apesar da ajuda que Homer oferece à moça, ela parece relutante, e teme a reação de seu pai. Mas, após o enfrentamento da triste situação, Homer se vê compelido à prática do aborto e, na situação delicada, tem de realizar aquilo que condena, dado o imenso sofrimento de Rose, relativizando todos os seus valores até então tido como rigidamente contrários a práticas abortivas. Assim, toma a maleta com os instrumentos que recebeu do Dr. Larch e, utilizando dilatadores, curetas, fórceps, tampões e soluções - como lembra Alison M. Jaggar, alguns dos métodos comuns para abortar no primeiro trimestre (2009:134) -, interrompe a gravidez. Candy, que já praticara um aborto, relata a Rose das reações normais do procedimento, como o sangramento.
Um ponto de destaque no filme, e que remetem ao próprio título da película, são as regras do alojamento em que moram os colhedores de maçã durante a safra, que, simbolicamente, origina o nome do filme. São regras inócuas para quem não sabe ler, ou para alguém cuja vida se pauta por outras regras, por outras necessidades. Daí a conclusão dos trabalhadores: essas regras são um absurdo / alguém que não mora aqui criou essas regras/ elas não servem para nós/ temos de criar nossas próprias regras... e criamos todo santo dia.
De certo modo, poderíamos fazer uma reflexão que mostra um conceito-imagem relacionado a um paralelo, acerca da legitimidade das proibições existentes a respeito das práticas abortivas. As regras jurídicas proibitivas, muitas vezes, não são criadas por quem vivencia o problema e significam a imposição objetiva de um valor, através de um ato decisório, que deve tornar-se obrigatório para todos, independentemente do relativismo axiológico que está na base social concreta. São imposições externas, por excelência, de valores que não são universais, mas apenas reflexos de uma certa moral dominante. E, podem ser injustas, em muitos casos, estas proibições que não se pautam na realidade fática, nas peculiaridades de caso a caso. Regras desprovidas de sentido prático e humano, portanto. Corrobora, por conseguinte, aquilo que dissemos acerca da relação não-necessária entre o Direito e a Moral, e a pluralidade de perspectivas no contexto de uma discussão.
Com o retorno de Wally da guerra, paralítico por conta de acidentes e doenças, Homer deixa sua amante livre para cuidar dele, parte de volta para o orfanato, e assume o posto de médico informal, no lugar do Dr. Larch, que acabou for falecer, e, de certo, modo reinicia ou retoma seu caminho. Há uma insinuação de que ele finalmente entendeu, depois da experiência prática de vida, mais madura e dolorosa, a importância de se entender as chamadas "regras da vida", reconhecendo que, muitas vezes, elas não estão em confluência com as "regras do Estado", ou com as regras morais dominantes. Parece finalmente ter compreendido a ética informal do seu querido mestre, vista como humana e generosa, ainda que ilegal aos olhos oficiais do Estado e talvez imoral para uma certa maioria.
Mas não há, no filme, um fechamento conclusivo das situações existenciais de forma radical ou maniqueísta, tudo é visto na película com um toque de poesia e leveza. Deveras, escreve Cabrera que "os conceitos-imagem propiciam soluções lógicas, epistêmicas e moralmente abertas e problemáticas (às vezes acentuadamente amoralistas e negativas, mas, de qualquer forma, nunca estritamente afirmativas ou conciliadoras) para as questões filosóficas que aborda" (2006:33).
Conclusão
Como pudemos observar, a obra cinematográfica possibilita uma profícua ampliação dos horizontes cognitivos, sublinhando os componentes afetivos que passariam desapercebidos, ou sequer poderiam ser retratados de modo efetivo através dos textos, que tem um cunho mais generalizante e racionalista.
O aborto, neste sentido, destaca-se como sendo uma temática recorrente, que, por meio das imagens, ganha novos contornos, tendo em vista o drama humano que perpassa as decisões dos sujeitos envolvidos na interrupção da gravidez, ou daquele que tem a habilidade médica de praticá-lo, de forma competente. Evidencia, assim, uma multiplicidade de valores e de normas internalizadas que muitas vezes são exatamente opostas àquelas que se inserem no ordenamento como sendo juridicamente válidas.
Com isso, através da análise do filme Regras da Vida, verifica-se que o Direito, ao ditar as regras que orientam determinada sociedade num local e época histórica, não corresponde, necessariamente, àquilo que se considera a conduta correta, ou justa, no plano social informal. Ao contrário, põe-se em discussão a existência de inúmeros padrões possíveis, um conteúdo axiológico conflitante com normas extraídas das regras leis positivadas, emoldurando um complexo quadro em que Direito e Moral podem ser vistos como ordens normativas que não apresentam relações necessárias, mas possíveis e variadas.
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Filme
Regras da Vida (The Cider House Rules, Lasse Hallström). 1999, DVD.
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Mara Regina de Oliveira
Professora do curso de Pós-Graduação
em Direito da Universidade de São Paulo
Professora de Graduação da PUC-SP
Mestre e Doutora em Filosofia do Direito
Luciano Correa Ortega
Mestrando em Filosofia do Direito na Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo
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