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Quem tem medo do casamento gay?
O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo ainda é polêmico e divide opiniões, pois a ele está vinculada a ideia religiosa de matrimônio. Mas quando a Suprema Corte do Brasil, em julgamento do dia 05/05/2011, reconheceu que as uniões homoafetivas, assim como as heteroafetivas, também constituem uma entidade familiar, deu mais um passo importante em direção ao Estado laico, iniciado com a separação oficial Igreja/Estado com a primeira Constituição da República (1891). E assim abriu a possibilidade de se converter a união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento (art.226, §3° da CR 1988), bem como a sua regulamentação, um caminho sem volta. Além de histórico e emblemático, julgamentos como estes explicam porque a Constituição de um país recebe também o nome de "Carta Política". Afinal, a Constituição de uma República, que se pretende democrática, deve traduzir juridicamente valores e concepções de dignidade, tolerância e não discriminação, igualdade de direitos, respeito às diferenças etc. Aliás, cidadania e inclusão é a plataforma política e ideológica atual, já que não precisamos mais sair às ruas para protestar contra a ditadura e reivindicar eleições diretas.
Os argumentos contrários àquele julgamento, apesar de virem travestidos de jurídicos, são todos de ordem moral-religiosa. Dizem que são inconstitucionais as uniões estáveis homoafetivas por não estarem previstas expressamente como forma de constituição de família, como está o casamento, a união estável e as famílias monoparentais. Argumentam também que o texto constitucional diz que união estável é apenas homem e mulher (art. 226). Muitas outras formas de família também não estão ali previstas, e nem por isto deixam de ser família. Por exemplo, ninguém duvida de que irmãos vivendo juntos, netos e avós, apesar de não estarem elencadas constitucionalmente, são núcleos familiares legítimos e verdadeiros. Sob o aspecto jurídico, significa dizer que a enumeração constitucional das famílias não é taxativa. É exemplificativa. Mas, quando se refere às famílias homoafetivas muda-se a lógica jurídica para se adequá-la à moral religiosa. Todas as formas de constituição de família são legítimas e devem ser legitimadas pelo Estado, como agora definitivamente reconheceu o STF, independentemente do nome que se dê às relações estáveis homoafetivas.
Por que se pode reconhecer outras formas de família não previstas no artigo 226 e não se pode "legitimar" as famílias homoafetivas? Portanto, a razão não é jurídica. A moral religiosa que tenta sustentar esta ilegitimação é contraditória, projetiva e hipócrita, como todo moralismo. O legislativo continua repetindo a injustiça histórica de ilegitimação, como fez com os filhos e famílias havidos fora do casamento até a Constituição de 1988. A omissão de muitos parlamentares certamente advém do medo de perder votos na próxima eleição ou ser identificado e confundido como homossexual.
A antropologia e a psicanálise já demonstraram ao mundo que família não é um fato da natureza, mas da cultura. A verdadeira razão da homofobia, e o desejo de que tais relações continuem marginalizadas estão diretamente relacionadas aos fantasmas da sexualidade que assombram a todos nós. Alguns têm tanto horror que ao invés de enfrentá-los, ou atravessá-los, preferem impor um discurso civilizatório de exclusão da diferença. E, em nome de Deus e dos bons costumes, semeiam o desrespeito e a intolerância. Quanto pecado! Os dados do IBGE já revelaram que há no Brasil 60 mil casais homossexuais declarados e outros tantos não declarados. O Direito não pode estar a serviço da exclusão desse contingente populacional
Desde que Freud revelou ao mundo que a sexualidade é muito mais da ordem do desejo que da genitalidade, pôde-se compreender o porquê de tantos fantasmas que nos assombram. Quando se fala de sexualidade entre iguais, ele aterroriza muito mais. A dificuldade e resistência de se aceitar as preferências sexuais diferentes da maioria, apesar de se travestirem de um discurso moral e religioso, residem na dificuldade de lidar com as próprias questões da sexualidade. Mais fácil e cômodo enveredar-se pelo discurso moralista. Sabe-se, entretanto, que quanto mais moralista, mais pervertido é o sujeito.
Os julgadores são imparciais, mas não são neutros. Ao sentenciar, o magistrado traz consigo toda sua carga de valores, convicções ideológicas e subjetividade advinda de sua história pessoal. Assim, os ministros do STF, ao reconhecerem e incluírem oficialmente as uniões homoafetivas como família, demonstraram também, como sujeitos de desejo, que não tiveram medo dos fantasmas da própria sexualidade e por isto fizeram prevalecer a interpretação constitucional acima de valores morais estigmatizantes e excludentes.
Para além da concretude e consequências práticas da atribuição e distribuição de direitos, a decisão do STF traz consigo uma dimensão simbólica e política da maior importância e significa, sobretudo, a vitória da ética sobre a moral.
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Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), advogado, doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise.
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