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Transexuais e Travestis: Gênero, Censura e Resistência
Inseridas dentro das relações de poder/gênero construídas na cultura ocidental moderna, as travestis e transexuais formam um grupo colocado à margem diante destas relações assimétricas de poder estabelecidas. Por seu desafio aos padrões de gênero historicamente e culturalmente construídos, são vistas comumente como abjetas pelo restante da sociedade, sendo um dos alvos de violência preferidos, ou então colocados dentro do campo do incompreensível e do patológico (LOURO, 2004).
De acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia, foram cometidos 2.511 assassinatos de GLBT's no período de 1980 a 2005, estimando-se que dentre esse número, 25% correspondam a transgêneros, o que demonstra a maior vulnerabilidade e agressão sofridas por estes, já que no Brasil proporcionalmente correspondem a população muito menor que homossexuais - 20 mil transgêneros para 18 milhões homossexuais. (CMI, 2006).
Não obstante as agressões físicas mais cruas, as travestis/transexuais ainda podem estar sujeitas a diversos constrangimentos sociais. Pode-se pensar assim que estes sujeitos desenvolvam ONG's, associações e outros grupos como uma forma de se protegerem e buscarem seus direitos perante a sociedade. Para Barros (2007), as pessoas quando inseridas em um grupo formam a "força-grupo" que permite ultrapassar limites que o sujeito sozinho teria dificuldade.
Pensando nestes aspectos o presente trabalho visou pesquisar sobre o gênero, as relações de poder, a censura e o papel de uma Organização Não Governamental (ONG) na vida de travestis e transexuais. Através de seis observações sistemáticas (GIL, 1999) nos encontros da ONG e duas entrevistas (TRIVIÑOS, 1987), uma com a Presidente e coordenadora da instituição e outra com uma participante das reuniões, foi possível conhecer melhor o papel desta ONG na busca e defesa dos direitos destes grupos. Em sua maioria as pessoas chegam ao grupo através da ONG e suas intervenções nos pontos de trabalho de profissionais do sexo, mas as reuniões contam também com a presença de companheiros das participantes ou outras pessoas que se identifiquem com as questões ali discutidas.
De acordo com a coordenadora do grupo, apesar de trabalhar "especificadamente só com travestis e transexuais", ela diz ser importante a participação de outras pessoas, profissionais e representantes das diversas áreas e organizações, pois a proposta da instituição é unir a sociedade na busca de qualidade de vida a todos. Atualmente elas se encontram em um espaço público da cidade de Porto Alegre com reuniões quinzenais com duas horas de duração. A temática dos encontros varia de acordo com a demanda das participantes, mas no geral, se referem ao trabalho, relações interpessoais e busca de direitos e respeito nestes espaços.
Por construírem sua sexualidade na "fronteira" entre os gêneros estes grupos são freqüentes alvos de agressões e desrespeitos. A partir disto o objetivo deste trabalho foi conhecer e tentar dar voz à situações vividas pelas participantes nos seus cotidianos as quais foram relatadas dentro dos encontros em grupo da ONG. Para que haja escritas sobre a realidade destas travestis e transexuais é importante incluir nelas aspectos relacionados às relações de poder, as censuras, ao grupo como possibilidade política e, principalmente, esmiuçar conceitos teóricos ligados ao gênero. Por subverterem e resistirem às normas culturais de gênero estes grupos escancaram como estes padrões de comportamento são construídos e disseminados na sociedade (LOURO, 2004).
Construção de corpos, (des)construção de gêneros
A dificuldade em definir o que é ser travesti, transexual, dentre outras categorias identitárias emergentes do "universo trans" já é apontada por Benedetti (2005, p. 16) em seu estudo etnográfico com este grupo. Ele fala acerca da impossibilidade de criar classificações e categorias unificadoras, principalmente em decorrência do risco de elas mascararem toda uma diversidade de vivências destas pessoas neste universo (e acrescentaríamos em todo o contexto social), já que estas classificações e categorias poderiam igualar práticas e visões de mundo completamente antagônicas, caracterizando assim uma arbitrariedade.
No estudo em questão, Benedetti (2005) mostra que muitas tipologias são correntes e, portanto, utilizadas pelas pessoas dentro deste grupo, como, por exemplo, travestis, transexuais e transformistas. Basicamente, a diferenciação que ele constata entre as tipologias travesti e transexual construídas dentro do grupo é a necessidade que a última sente da realização da cirurgia de mudança de sexo, indispensável em seu processo de transformação, sem a qual sente grande sofrimento psíquico, enquanto que para a travesti o processo de transformação está ligado em viver e vestir-se de acordo com o "gênero feminino", sem necessariamente recorrer à cirurgia, mas nem por isso deixando de promover mudanças em seu corpo através de outros artifícios. Tal distinção é igualmente aparente no grupo observado na presente investigação, fato inferido a partir do discurso das participantes das reuniões.
Porém, a fim de que se afastem os riscos acima referidos de classificações unificadoras e arbitrárias, tomaremos a definição de travestis e transexuais acima apenas como aporte para compreender estas categorias quando utilizadas pelas próprias participantes. Em nossa compreensão do grupo observado, procuramos não pensar em categorias excludentes de sexualidade/gênero, em coerência com os paradigmas teóricos utilizados no presente estudo, a saber, as concepções acerca de gênero/sexo como construções históricas/culturais/discursivas e nas quais busca-se a negação de qualquer definição identitária (LOURO, 2004; BUTLER, 2003). As participantes foram vistas como expressão de um pensamento que "desafia as normas regulatórias da sociedade" e portanto assumem "o desconforto da ambigüidade, do 'entre lugares', do indecidível" (LOURO, 2004), mesmo que não intencionalmente.
Aquilo que é desafiado é, basicamente, a ordem compulsória sexo-gênero-desejo, compreendida dentro da perspectiva dos estudos de gênero desenvolvidos a partir do pensamento de Judith Butler (2003) e as contribuições de outros atores, considerada, portanto como construída através de um discurso situado cultural e historicamente. Dentro desta perspectiva, é preciso compreender não apenas o caráter de construção histórica-social do gênero, mas também do próprio sexo (corpo biológico), de forma que a distinção entre gênero e sexo torna-se nula. Nas palavras de Butler (2003):
O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. (...) ele também [o gênero] é o meio discursivo/cultural pelo qual 'a natureza sexuada' ou 'um sexo natural' é produzido e estabelecido como 'pré-discursivo', anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura (p. 25).
Ao contrário do que pode se pensar à primeira vista, não há uma negação da materialidade dos corpos, mas sim a afirmação de que eles carregam um discurso, ou seja, há uma ênfase nos "processos e as práticas discursivas que fazem com que aspectos dos corpos se convertam em definidores de gênero e sexualidade e, como conseqüência, acabem por se converter em definidores dos sujeitos" (LOURO, 2004, pg. 80).
Não é possível encontrar um corpo fora da cultura/discurso, um dito corpo pré-cultural. Nem mesmo em uma ecografia mostrando um feto em seus primeiros momentos de vida temos um corpo fora do discurso/cultura. No momento em que a frase "É menino" ou "É menina" é proferida, não ocorre apenas uma descrição, mas uma construção, já que essa assertiva desencadeia todo um processo de "fazer" desse corpo um corpo masculinizado ou feminilizado, determinando, a partir daí, o caminho que o indivíduo deverá seguir (Louro, 2004).
E o caminho em questão é exatamente a seqüência sexo-gênero-desejo anteriormente mencionada. É preciso entender que a nomeação do corpo ("É menino, é menina"), se dá dentro de uma lógica a-cultural, a-histórica, imutável e binária, ou seja, determinado sexo (macho/fêmea) desencadeará determinado gênero (masculino/feminino) e que, conseqüentemente, induzirá a uma única forma de desejo (sexo oposto). Esta seqüência, assim descrita, mostra-se como uma matriz heterossexual normatizadora dos comportamentos e corpos dos indivíduos; portanto, para que ele seja qualificado como um indivíduo legítimo, deverá se submeter às regras (LOURO, 2004).
A ordem compulsória sexo-gênero-sexualidade, porém, será subvertida pelos indivíduos (LOURO, 2004). As participantes do grupo observado na presente investigação são exemplares desta subversão. Em direta ligação com esta discussão, Benedetti (2005) aponta que as travestis demonstram como as concepções de masculino e feminino são construções, resultados de processos e signos, e não determinadas simplesmente pelos corpos biológicos masculino e feminino. Os corpos das travestis "que estão presentes em todos os momentos dos seus processos de transformação, também se reinventam, se fabricam, se redesenham e experimentam as sensações, as práticas e os valores do gênero" (BENEDETTI, 2005, p. 132). Desta forma, por construírem sua sexualidade na "fronteira" entre os gêneros, resistindo e subvertendo as normas, elas escancaram como estas normas são feitas/construídas e mantidas (LOURO, 2004).
Afinal, não é livre de constrangimentos que os sujeitos subvertem a ordem compulsória. (LOURO, 2004). "As descontinuidades, as transgressões e as subversões que essas três categorias (sexo-gênero-sexualidade) podem experimentar são empurradas para o terreno do incompreensível ou do patológico" (LOURO, 2004, p. 82). Temos assim os discursos psicopatologizantes como, por exemplo, no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2007) no qual são descritos os ditos "Transtornos de Identidade de Gênero", numa perspectiva puramente descritiva, a-critica e estigmatizadora, criando o que Louro (2004, p. 82) define como "corpo patológico", resultado do discurso que procura rechaçar os sujeitos que não se submetem à opressão da norma reguladora. Esta norma só pode ser estabelecida através da definição de certo e errado, bom e mal. Assim, a regra faz com que se estabeleçam censuras nos comportamentos dos sujeitos tornando seus corpos objetos dentro das relações de poder.
Estratégias de poder
A censura é algo que está presente constantemente nos discursos sobre sexualidade. Desta forma, é necessário prestar atenção a esta ferramenta social. De acordo com Foucault (1999), ela é totalmente arbitrária e a partir disso parece evidente que a prática da censura funciona como uma estratégia de poder, pois seleciona o modo, a forma e a quantidade de informações que devem ser expostas. O autor traz esta idéia ao referir que os discursos da sexualidade são menos recriminados se comparados à quantidade de imagens que são censuradas diariamente. Dentro desta perspectiva, a censura não é entendida como um fenômeno natural, mas algo criado com intenção e objetivos; assim, fica evidente a existência de alguém por trás desta censura. As formas como determinados conteúdos são expostos devem ser questionadas, pois entre uma exposição e outra algo não é dito e, desta forma, criam-se assuntos velados e ocultos que acabam tornando-se inexistentes. Nas aulas de anatomia em escolas, por exemplo, os professores ensinam como é o corpo de uma mulher e de um homem. Porém, nestas aulas os professores ensinam que existe a estrutura corporal dos travestis, que difere tanto do corpo masculino, quanto do feminino?
As censuras de determinados conteúdos poderiam ser pensadas, em algumas situações, como ferramentas de poder que estabelecem as regras e constroem realidades. Elas somente são possíveis por causa da capacidade de linguagem que os seres humanos utilizam para nomear as coisas, criando, por exemplo, palavras como sexo, normal, anormal, branco, preto, mulher e homem (GUERRA, 2005). Estes conceitos com o passar do tempo são conectados não apenas a outras palavras, mas também a comportamentos específicos e a juízos de valores. Assim a palavra mulher foi vinculada a outros conceitos como, por exemplo, feminino, mãe, cuidadora, amorosa, entre outros. Desta forma, a menina já é preparada desde criança, nas suas atividades lúdicas com bonecas e outros utensílios, a se tornar mãe, sem ter escolha.
Através destes ensinamentos são delimitados territórios e fronteiras onde alguns podem pertencer e outros não. Um homem poderia ser mãe se agisse de forma cuidadora e amorosa? (GOMES, 2007). Estas diversas nomeações ao longo dos anos foram permitindo que a sociedade definisse quais comportamentos deveriam ser considerados transgressores. A partir do momento em que estas fronteiras foram estabelecidas surgiram diversos métodos e procedimentos de punição para modificar os "criminosos" que as transgrediam. Esta prática de "justiça" é muito perversa, porque se dá através de exames de consciência nos quais se coloca o "réu" em exposição para ser julgado e se sentir culpado.
Esta culpa surge, principalmente, através da comparação que as pessoas fazem entre o que o réu deseja e o que é esperado pela sociedade. Desta forma, para punir, não basta apenas encontrar o autor do crime, mas sim fazê-lo vigiar-se permanentemente para que o mesmo, em momentos isolados, sinta a dor de desejar o que não é aceito. Para se proteger desta dor o sujeito viria a reprimir seus atos se punindo constantemente de diversas formas. (FOUCAULT, 1999) Quando a repressão surge do exterior do sujeito ainda é possível arranjar formas de escapar dela; mas quando a justiça é introduzida na consciência da pessoa, a culpa por sentir determinado desejo será permanente. Através disso o sujeito transgressor acaba tornando-se seu próprio juiz, vivendo através de ambivalências entre o seu desejo e a culpa de senti-lo.
O sofrimento destas pessoas se fortalece, pois infelizmente o desejo não deixa de existir mesmo que não seja satisfeito. Cria-se um sujeito que se pune constantemente por desejar o que é proibido. Segundo Foucault (1999) a liberdade do desejo foi um dos temas centrais nos movimentos de libertação sexual. Apesar disso, ele acredita que este discurso pode ser um pouco perigoso porque o desejo que exigia ser libertado era, na verdade, apenas um elemento constitutivo da sexualidade. Assim, a própria concepção de sexualidade da cultura ocidental é algo que foi ensinado, limitado e nomeado.
A limitação tem como foco o corpo dos sujeitos, pois é a partir destes corpos que o desejo é posto em prática. Isto faz com que, por exemplo, nas práticas cristãs de confissão, o corpo se torne alvo central de vigilância, ou seja, ele é examinado e controlado para que não se produza e se efetive "coisas indecentes". A masturbação torna-se uma das maneiras de evidenciar o desejo ao mesmo tempo em que é vista como um comportamento a ser confessado e extinguido. O principal de todos estes discursos é que, além da Igreja Católica, outras instituições e grupos também participaram da construção dos saberes sobre a sexualidade. A crítica que Foucault (1999) faz a estas instituições se justifica pelo fato de que atualmente há um "hiperdesenvolvimento do discurso da sexualidade, da teoria da sexualidade, da ciência sobre a sexualidade, do saber sobre a sexualidade" (p.58).
Assim, não é permitido que as pessoas descubram seus próprios corpos, desejos e modos de sentir prazer, pois são introduzidos e direcionados os saberes sobre sexualidade delimitando o horizonte de possibilidades que elas poderiam ter. Esta limitação direciona o modo de subjetivação do sujeito em relação ao seu corpo, tornando-o moldado pela própria sociedade. Diante desta pressão para atingir as expectativas sociais o sujeito pode vir a sentir-se oprimido e, nestes casos, vir a buscar formas de libertação. ONGs e outras instituições de acolhimento e proteção podem se tornar espaços importantes de encontro e união dos grupos rigidamente controlados, como é o caso das travestis e transexuais. Para elas, o grupo pode se oferecer, concomitantemente, "como dispositivo de intervenção (produção de transformação e produção de conhecimento) e como designação do próprio plano que se quer acessar (nas intervenções)". (BARROS, 2007, p.12).
A diversidade encontrada no contexto grupal pode ser vista como uma ferramenta de intervenção através dos pontos em comuns que os indivíduos utilizam para fortalecer a sua união e lutar por seus direitos. De acordo com Barros (2007), uma das especificidades de grupos é que unidos os indivíduos formam o que se denomina "massa". A massa, em muitos casos, pode ser vista como ameaçadora, pois quando se sentem apoiados pelos seus colegas, as pessoas podem sentir-se empoderadas e através disso reivindicar seus direitos de cidadãos com protestos e manifestações. Esta possibilidade de poder do grupo acaba tornando-o alvo de políticas de controle para que ele não interfira no modo de pensar que já está institucionalizado.
Sendo determinados grupos colocados como perigosos, a criação de instituições de proteção aos sujeitos ameaçados começam se expandir como uma forma de protegê-los. O surgimento de Organizações Não Governamentais aparece como possibilidade de se escapar do modo de viver instituído e regrado e, principalmente, estas se apresentam como locais de referência na busca dos direitos humanos. A realidade das travestis e transexuais contatadas neste trabalho evidenciava esta busca. O grupo se encontrava no local através de um ponto em comum: a exclusão. Situação que trazia conseqüências às suas vidas particulares, ao acesso à saúde, qualidade de vida e de relacionamentos. De acordo com a coordenadora do grupo, o trabalho nas reuniões é para "travestis e transexuais", especificamente. Discurso que evidencia uma separação, um distanciamento de algo que consequentemente une as participantes por uma semelhança que não é fácil (e será que precisamos?) definir. Estas definições apareceram ao longo das observações e a descrição de alguns fragmentos dos encontros pode ser um caminho para que se entenda um pouco melhor a realidade destas pessoas.
Resultados e discussões
Na fala da participante do grupo que concedeu entrevista, ela se auto-identifica como travesti. Ainda, no decorrer das observações, em variados momentos evidenciou-se a utilização das tipologias mencionadas por Benedetti (2005) em seu estudo, principalmente as denominações travesti e transexual. É o que ocorre marcadamente, por exemplo, em uma das observações, em que se fala sobre a gratuidade da cirurgia de mudança de sexo na condição das transexuais estarem enquadradas no Código Internacional de Doenças Psiquiátricas (CID-10) (e em conseqüência, as travestis também). Neste momento do trabalho emerge, inclusive, uma questão de rixa entre as travestis e transexuais, já que as ultimas seriam aliadas das travestis até o momento em que "se operam, pegam o documento e somem" . Aparece, portanto, nos discursos do grupo a transexual como portadora da necessidade de efetuar a cirurgia para mudança de seus genitais, enquanto as travestis não sentiriam essa necessidade.
Porém, é importante assinalar neste momento que, em concordância com a ressalva feita por Benedetti (2005) em seu estudo, essas categorizações poderiam encobrir uma variedade de vivências e subjetividades. Concordamos que essas categorias são problemáticas e reducionistas. Percebeu-se uma variedade de vivências e escolhas das participantes nos mais variadas âmbitos, como, por exemplo, trabalhar como profissionais do sexo nuas ou não, acreditar na necessidade de se auto-afirmar como profissional do sexo ou não e, inclusive, buscar outras escolhas de trabalho. No decorrer das nossas observações tentamos não reduzir as participantes a uma categorização arbitrária, procuramos compreendê-las em suas inter-relações dentro do grupo e com o contexto social maior.
Pode-se pensar que um dos traços que unifica o grupo é o ato de colocar em cheque a ordem compulsória sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2003) através da (re)construção de seus corpos. Os processos de construção de seus corpos são evidentes mesmo visualmente, porém foram verbalizados inclusive pelas participantes, como na primeira observação, em que a coordenara declara ter "750 ml de silicone em cada seio". Pela norma regulatória representada na seqüência sexo-gênero-desejo, espera-se que determinado sexo, por exemplo macho, irá inevitavelmente desencadear determinado gênero, masculino, e portanto, determinado tipo de desejo (pelo sexo oposto - feminino) (LOURO, 2004). As participantes rompem com essa lógica linear que normatiza a subjetivação das pessoas através de seu gênero. Nas palavras do odontologista que ministrou uma oficina na ultima reunião observada, "vocês são do gênero feminino, mas do sexo masculino". Até mesmo uma assertiva destas é questionável dentro do presente estudo, na medida em que a distinção sexo/gênero é nula, em que o próprio corpo/sexo é objeto de um discurso e de toda uma gama de dispositivos culturais para modificá-lo, fato que as participantes do grupo colocam em evidência, não existindo portanto um corpo fora da cultura (BUTLER, 2003).
Porém, como aponta Louro (2004), não é livre de constrangimentos que os sujeitos subvertem a ordem compulsória. Durante as reuniões, inúmeros relatos emergiram as dificuldades ou constrangimentos enfrentados pelas participantes por não se enquadrarem na norma. Um relato exemplar é o trazido pela participante Cris na primeira reunião observada, oportunidade em que denúncia que em sua escola não estava sendo possível utilizar o banheiro feminino e a direção estaria sugerindo que ela utilizasse o banheiro dos funcionários "para não dar problema". A falta de respeito com o "nome social" das participantes é outro ponto demonstrativo dos constrangimentos enfrentados, questão recorrente durante as reuniões. Ser censuradas nas suas escolhas parece ser uma realidade freqüente deste grupo e as relações de poder que se infiltram em suas vidas denunciam todo um aprisionamento por serem diferentes.
Relação de poder e censura no cotidiano
Muitas profissionais do sexo, que trabalham em zonas da cidade utilizam roupas decotadas durante o horário de trabalho nas ruas. Em um dos encontros o grupo trouxe o fato de que é muito difícil, quando se trabalha vendendo o próprio corpo, não se utilizar de técnicas e estratégias de venda. O apelo publicitário das profissionais como, por exemplo, ficar pelada e apenas de casaco se justifica por que elas acreditam "que isso atrai mais o cliente". Em situação de grupo a coordenadora da atividade conta que recentemente teve que ter uma reunião com a Brigada Militar por causa desta exposição de corpos em via pública. Assim ela pede às participantes que não trabalhem nuas ou com o peito de fora, para evitar transtornos, já que tal atitude seria ato obsceno, o que é crime. Acrescenta falando que "estamos em época de eleições e que existe uma questão política, pois eles [os policiais militares] querem mostrar serviço".
A censura através da polícia também aparece no grupo em uma situação na qual um "policial falou que mandaram prender todos que circulavam na zona (região na qual ficam as profissionais do sexo)" para a coordenadora da ONG. Nesta situação ela conta que conversou com o policial para que "prendesse as travestis que fazem delito". Conta inclusive que sabia de um documento oficial (um ofício) que havia sido emitido pelos órgãos públicos que autorizava as prisões de todos que circulavam na zona, mesmo sem terem eles cometido crimes. Confirmando a informação da coordenadora o policial que conversa com ela pergunta "como ela sabia?". Rafaela, a coordenadora, conta ao grupo que "não vinha ao caso saber quem havia falado, mas que se havia um oficio era sinal de que alguém o assinou!". Minutos após conversar com o policial, toca o telefone e o funcionário da polícia fala que a "'Operação pega Viado e Travesti' havia sido suspensa". No momento em que contava ao grupo este fato, Rafaela comentou que "me deu uma raiva, mas eu me controlei". Estas situações que envolvem a polícia parecem ser frequentes nas reuniões da ONG. Outra situação de repressão também foi contada por Carol, uma das participantes, na qual relata que "estava se prostituindo, o policial chegou e disse que teria que prendê-la porque havia uma operação que tinha como objetivo controlar o tráfico, a prostituição, os roubos e os camelôs".
Assim, existe alguém por traz da censura (FOUCAULT, 1999), sendo no relato das participantes os policiais os responsáveis por oprimir e censurar. Questiona-se quais são os critérios para censurar, afinal, se o que "ofende" a sociedade são os corpos expostos das profissionais do sexo em uma rua de pouco acesso, no período da madrugada, então porque eles não censuram as revistas que estão expostas nas bancas durante o dia, nos principais e mais movimentados pontos da cidade, nas quais aparecem mulheres e homens nus nas capas?
De acordo com o relato do grupo, talvez nem os próprios policiais questionem por que eles agem desta maneira. Em um dos relatos da coordenadora ela conta que recentemente perguntou a um policial "porque eles tinham vindo prender o pessoal que estava transitando em um parque público?". O policial responde dizendo que "eles não tinham certeza se as pessoas que estão lá são de bem". Assim, os critérios para julgar quem é criminoso se dão muito mais por questões de localização e aparência (por exemplo, tudo aquilo que desvia da "normalidade") do que em relação a um crime real cometido (uma agressão causado a alguém).
As participantes do grupo descrevem diversas relações fora do grupo nas quais vivenciam exclusões e discriminações. Recentemente Rafaela havia sido espancada ao tentar entrar no posto de saúde no qual ela iria trabalhar. Contou que pelo fato de os guardas não a conhecerem, imediatamente resolveram a situação quebrando uma de suas costelas. Outra situação recorrente trazida pelo grupo diz respeito à nomeação que as travestis recebem. Elas pedem para serem chamadas pelo nome "feminino", mas, em muitos casos, os atendentes fazem questão de chamá-las em tom alto pelo nome "masculino". Estas situações evidenciam que as práticas de linguagem (GUERRA, 2005) parecem ter vinculado a pessoa travesti a características negativas nos discursos da nossa sociedade, pois dificilmente elas são recebidas e tratadas com respeito.
A sutileza destas relações de poder (FOUCAULT, 1999) faz com que este grupo "não aceito" seja jogado para o submundo da sociedade onde a violência, as drogas e o crime se tornam presentes nos seus cotidianos. O medo de, por exemplo, ser jogado em uma cadeia, faz com que muitas travestis, frente à polícia, se "auto-mutilem para irem para o hospital ao invés se serem presas", conforme conta um dos policiais para a coordenadora da ONG. Sendo constantemente discriminadas, estas pessoas buscam o trabalho, principalmente, em locais restritos e distantes. Fica evidente que a prática do sexo, como trabalho, apareceu constantemente nas falas das participantes. Os discursos com conteúdos sexuais fazem parte da sua linguagem e o corpo aparece como a única fonte de renda da maioria das travestis e transexuais participantes das reuniões. É inevitável pensar que as travestis e transexuais tem sua imagem muito vinculadas à prostituição e poucas como, por exemplo, a coordenadora, trabalham em locais além da rua. Desta forma além de serem excluídas de um contexto social amplo elas, muitas vezes, buscam a solidão como uma forma de se proteger até de seus semelhantes.
Individualismo e resistência
As participantes frequentemente relatavam a grande competição que existe no meio de trabalho das profissionais do sexo. Em uma das atividades do grupo a Psicóloga presente pergunta se "o dote (o tamanho do pênis) é importante?". A maioria das participantes responde que "sim". Consequentemente, este se torna um dos motivos para afastar as profissionais do sexo uma das outras: o fato de que cada característica da pessoa pode contar como um ponto de vantagem, assim como o acesso a clientes e mudanças estéticas podem significar um aumento de renda.
Apesar dos encontros da ONG ser em grupo, o individualismo parece ser uma característica forte nas participantes. O medo de ser "passado a perna" em si ficou evidente em uma fala da coordenadora quando ela comenta sobre as travestis que "não respeitam mais nada", não respeitam mais nem os moradores. Rafaela conta ter conhecido uma senhora que sempre ajudou as travestis que trabalhavam na rua em frente à sua casa, dando cafezinho, mas hoje em dia, a senhora relata ter medo das travestis e reclama que elas estão sempre nuas e fazendo barulho.
O fato de a maioria das participantes trabalharem nas mesmas regiões da cidade evidencia uma prática de poder que coloca o grupo estigmatizado em locais específicos como forma de vigiá-los (FOUCAULT, 1999). Apesar de as profissionais do sexo exercerem seus trabalhos de forma autônoma, elas são de alguma forma "supervisionadas" pelas funcionárias da ONG. Fica a cargo das funcionárias fazer visitas todas as terças e quintas-feiras nos locais de trabalho das travestis e transexuais para conferir se todas estão seguindo as combinações do grupo. Apesar de elas exercerem vigilância sobre as participantes, este olhar também era responsável pelo cuidado e controle das situações para que nenhuma das profissionais fosse desrespeitada e abandonada em seu local de trabalho.
Fica claro que o grupo e o espaço público em que se reunem tornaram-se pontos de encontro de indivíduos com um objetivo em comum (BARROS, 2007). Esta questão fica evidente no relato da coordenadora da ONG, no qual descreveu que a instituição fora criada para trabalhar na busca dos direitos humanos para travestis e transexuais:
"a gente queria né, direitos iguais pra todos né e todas né......, ai eu disse assim "olha a gente vai tentar, não sei se a gente vai ter essa força, mas eu acho que a gente vai ter que trabalhar em conjunto né, vamos ver se a gente vai conseguir". E também a gente questionou muito a questão da epidemia da AIDS né, dos anos 80.... que a gente penso.....era um grande desafio né, porque eu e a Paula ao longo do tempo a gente viu que não é era questão da epidemia da AIDS que elas queriam trabalhar, elas queriam trabalhar muito mais que agente trabalhasse direitos humanos, e muito a questão da discriminação. A questão da discriminação é o foco principal que hoje a ONG enfrenta"
A união destas participantes permite que muitas delas tenham determinados comportamentos que só aparecem quando elas se juntam (BARROS, 2007), o que faz com que consigam direitos que talvez sozinhas tivessem dificuldades em obter. Uma das participantes na entrevista individual relatou:
"Eu participo porque hoje nós estamos conseguindo como travestis nós estamos conseguindo um campo de profissões, nome e respeito através desta ONG. Por eu tá levando pra minha cidade, essa ONG, é um dos motivos que eu participo, por perceber que hoje o travesti tem muito mais direito do que há anos atrás, (...) não podia reclamar, não podia nada, hoje nós podemos participar de tudo, com cabeças erguidas, com respeito, com dignidade, por isso que eu participo".
Percebe-se que o grupo uniu-se para formar movimentos de reivindicações e de busca por direitos (TARDE, 1992) assim como para construir um espaço de acolhimento e de problematização das relações sociais.
Considerações Finais
As transgressões das normas calcadas na ordem compulsória sexo-gênero-desejo tornam as travestis e transexuais um constante alvo de agressões, situação evidenciada durante todo o presente trabalho. Esta subversão das regras culturais de "ser homem" e "ser mulher" se dá, principalmente, através do corpo. As modificações cirúrgicas, as intervenções hormonais e a ambigüidade sexual materializam o diferente do padrão, tornando as travetis/transexuais sujeitos denunciadores de uma "máquina binária de gênero" (masculino/feminino) construída culturalmente, e mantida mediante determinadas configurações de forças e estratégias de poder. São estas configurações e estratégias, investigadas neste estudo, que colocam as travestis em um lugar de transgressão, fazendo com que sejam alvo de aprisionamentos e controle, como se relatou nas observações realizadas.
As conseqüências de subverterem as normas aparecem através da repressão pelos policiais, da limitação de acesso a espaços públicos, do desrespeito a suas escolhas de modificar o corpo e o nome, da restrição de políticas públicas de cuidado a saúde e direitos destes grupos. O trabalho da ONG relatado surge como uma possibilidade de intervenção, possibilitando uma desestabilização das estratégias de poder em jogo e, conseqüentemente, produz repercussões na subjetividade dos envolvidos com o grupo. Questões políticas apareceram como um dos focos da instituição, mas o descuido e a discriminação com as participantes é o principal tema trazido por elas. A participação nos encontros de moradores de rua, portadores de hepatite, HIV, amigos e amigas de travestis e transexuais, profissionais do sexo e outras pessoas mostra que o grupo observado é apenas uma parcela de toda uma grande diversidade de características que atualmente são discriminadas e "escondidas" dos olhos da sociedade em geral.
Sentindo-se estrangeiras em seu próprio corpo, distantes de regras e normas de comportamento estabelecidas, a construção de uma Organização Não Governamental aparece como uma das possibilidades das transexuais resistirem e buscarem estratégias de se inserir no contexto com respeito e direitos garantidos. A instituição participa deste processo auxiliando no encaminhamento a cirurgia de troca de sexo das participantes, facilitando o acesso a atendimentos de saúde, à medicação e serve como interlocutora a outras instituições que possam servir de apoio a este grupo.
A prática da censura e o estabelecimento de relações de poder estão muito vinculadas à sexualidade das participantes, principalmente, pela profissão que elas exercem. Como maior parte do grupo era profissional do sexo e as intervenções da ONG se davam no local de trabalho das participantes, em grande parte, os conflitos apareciam vinculados ao trabalho. Em estudo com profissionais do sexo, Espósito (2006) já evidenciava a carga de preconceitos historicamente vinculados à prostituição. Percebe-se assim, que além da condição de travesti ou transexual que as participantes sustentam, há todo um imaginário por trás da sua profissão que fortalecem o local de exclusão em que se encontram.
Por fim, este estudo pode servir de auxílio para os profissionais que trabalham com travestis e transexuais e, inclusive, pode vir a desmistificar idéias relacionadas a elas. As situações vividas pelas participantes e relatadas neste trabalho denunciaram que ainda é preciso vencer muitos desafios para que todas as pessoas consigam viver com menos opressão, com maior possibilidade de um "cuidado de si" e em relações mais equânimes. Limitar o desejo do outro, criar normas e padrões de comportamento é uma estratégia que, conforme transparece por todas as vivências trazidas pelo grupo, parece não funcionar, pois por uma questão de resistência, os sujeitos tendem a transgredi-la.
Daniel DallIgna Ecker é estudante do curso de graduação em psicologia da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FAPSI)
Felipe Luckmann é estudante do curso de graduação em psicologia da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FAPSI)
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