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As novas entidades familiares
A família passou por diversas mudanças, acompanhando sempre a evolução e a transformação social. Em virtude destes acontecimentos, a família perdeu várias de suas características, como a matrimonialização, a essência patrimonial e paternalista. A ligação estreita entre Estado e Igreja impedia o reconhecimento de outras formas de família que não aquela formada pelo casamento.
Era ele o único meio de garantir a perpetuação da espécie, dando garantia à máxima citada na Bíblia, "crescei-vos e multiplicai-vos". A Igreja Católica ainda vê no casamento a única forma de constituição de família, marginalizando os demais agrupamentos familiares. A família do início do século XIX visava apenas à manutenção do patrimônio e exercia funções econômicas, religiosas e políticas.
O bem-estar psicofísico de seus integrantes era ignorado, pois eles não eram vistos como pessoas, mas, sim, como meios de garantir o trabalho e a produção. Os grupos familiares não formados pelo casamento eram ignorados e discriminados, uma vez que não eram, sequer, considerados como uma família. Com a evolução da sociedade, outros agrupamentos familiares foram clamando por proteção estatal. Deixou o casamento de ser a forma magna de constituição de família e abriu espaço para todas as manifestações afetivas em que estivesse presente a vontade de constituir uma entidade familiar.
Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal de 1988, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele, mas não unicamente dele decorrentes; e que a milenar proteção da família, como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.
Buscando a efetividade das normas constitucionais, novas formas de entidades familiares passaram a ser aceitas, respeitadas e protegidas pela ordem estatal. Contrariando o texto da Constituição Federal de 1967, em que apenas o casamento era considerado a base da família, a nova Constituição Federal de 1988 abraçou a idéia de família plural, consagrada pelo art. 226, inciso V, impedindo uma moldura rígida e imutável para a formação de uma família. Conforme citam os autores RICARDO ARONNE, SIMONE TASSINARI CARDOSO E FELIPE PASTRO KLEIM:
A concepção de família no decorrer da história sofreu constantes alterações, sendo contemporaneamente para o Direito, um núcleo de desenvolvimento do ser enquanto pessoa, lugar de aprendizado, de crescimento e participação. Este novo modelo familiar somente existe na justa medida da sua instrumentalidade, enquanto caminho para a afetividade, e pela afetividade.
O referido dispositivo não é taxativo, constituindo uma cláusula geral de inclusão, pois toda entidade familiar, ainda que não descrita expressamente no texto constitucional, é capaz de garantir a dignidade da pessoa humana e deve receber tratamento igualitário, sendo proibida qualquer discriminação entre as formas de famílias. Com muita propriedade no assunto, segundo PIETRO PERLINGIERI, citado pelos já mencionados no parágrafo anterior:
A solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam.
Assim, a repersonalização das relações familiares, nome dado a esse fenômeno, buscou tutelar todas as uniões em que as novas características de uma família tivessem presentes: o afeto, a estabilidade e a ostensibilidade. O casamento, a união estável formada por um homem e uma mulher e a família monoparental, são apenas exemplos de tantas outras entidades familiares que hoje se fazem presentes em nosso cotidiano.
Não há quem duvide que as famílias anaparentais e as recompostas sejam merecedoras de proteção pelo Direito, apesar de não estarem presentes expressamente no art. 226 da Constituição Federal de 1988. Nesse novo contexto, aparecem as famílias formadas por companheiros do mesmo sexo, a chamada relação homoafetiva. Será que o fato de serem elas formadas por pessoas do mesmo sexo justifica tão grande preconceito, de modo a marginalizá-las, deixando-as fora da proteção estatal?
É importante destacar que a atual lei brasileira declara a ausência de supremacia de uma forma de entidade familiar sobre outra, o que, sem sombra de dúvidas, feriria os princípios constitucionais, entre eles o da igualdade e da dignidade: a única possibilidade de efetivação da democracia na sociedade bilateral é o respeito recíproco, a igualdade moral e jurídica. A afetividade passou a ser fator determinante na constituição e caracterização de uma família, assim, razão não há para desconsiderar as famílias homoafetivas, afinal o afeto o qual é existente na maior parte das uniões homossexuais, é idêntico ao elemento psíquico e volitivo das uniões conjugais e companheiris. Neste sentido, historicamente tem-se que o Estado tende a manter suas leis, em contraposição à sociedade que segue sua evolução, sem aguardar a devida proteção legal. Levanta-se pois a indagação: quanto tempo levará o Estado a rever seu ordenamento jurídico e abranger as novas entidades familiares? E permanece a questão sendo disciplinada pelas jurisprudências, em questão ainda distante de ser pacificada.
Fernanda Tribst é Advogada. Membro do IBDFAM.
BIBLIOGRAFIA
ARONNE, Ricardo; CARDOSO, Simone Tassinari; KLEIM, Felipe Pastro. Estudos de direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 9.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 5.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. São Paulo: Ed. Jurídica Brasileira, 2001
CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002
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PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 5.
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