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Divórcio — O Fim da Separação e da Culpa?
I - INTRODUÇÃO
Novas leis, recentemente promulgadas, evidenciam a importância do AFETO, da RESPONSABILIDADE, da SOLIDARIEDADE e da DIGNIDADE HUMANA na conceituação do moderno Direito de Família.
Duas Emendas Constitucionais, a de n. 64, que torna a alimentação um direito social, com evidente reflexo na aplicação do dever de alimentos entre ex-cônjuges e companheiros, e a 66, que estabelece o divórcio como causa de extinção da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial que, juntamente com as leis da Guarda Compartilhada (Lei nº 11.698/2008) e daquela que define a alienação parental (Lei nº 12.318/2010), constituem o arcabouço de sua nova definição.
Com a EC 66/10 desaparecem as causas subjetivas (culpa) e objetivas (tempo mínimo) para se obter o divórcio, as primeiras já haviam sido minimizadas pelo novo Código Civil (arts. 1578 - perda do direito ao uso do sobrenome; 1694 - alimentos apenas os necessários; e 1830, que dá nova configuração ao direito sucessório, ao tratar do cônjuge culpado). Por sua vez, as causas objetivas (ruptura da vida em comum há mais de um ano e, no divórcio direto, separação de fato por mais de dois anos) desaparecem (Lôbo, 2009).
II - FALSOS DILEMAS
A favor ou contra?
Não mais existe a discussão sobre a culpa?
E as religiões?
Contardo Calligaris (Folha de S.Paulo, de 14/X/2010), ao analisar a questão do aborto, às vésperas de eleições, indica também um caminho para o debate entre os juristas divorcistas e aqueles que restritivamente interpretam a extensão da EC 66/10: ...as pretensas discussões entre "a favor" e "contra" me inspiram o mesmo mal-estar que sinto quando assisto a uma cena de violência.
Faz sentido porque, nessas discussões, ninguém argumenta, cada um apenas reafirma abstratamente sua identificação: em "eu sou a favor" e "eu sou contra", o que mais importa é reforçar o "eu". Com isso, inevitavelmente essas discussões menosprezam, atropelam e violentam a vida concreta de todos (E16 ilustrada).
Por outro lado, o mesmo diário (C3 cotidiano, de 15/X/2010), através de dados do Colégio Notarial do Brasil, informa que o número de divórcios administrativos, no Estado de São Paulo, cresceu 149% desde a promulgação da referida Emenda. Acresce-se que o incremento é devido à facilitação do processo, "que chegava a se arrastar durante anos, à diminuição dos custos e a uma demanda reprimida de serviço", em clima de absoluta civilidade.
Estas considerações demonstram que mesmo nos países em que o divórcio vem sendo decretado de longa data, resulta claro que o divórcio não destrói a família, antes é uma forma de reconstruir e acrescer o núcleo familiar.
Outro falso dilema reside no aspecto religioso eis que, na afirmação de Pereira (2010), não mais se pode misturar Direito com valores morais particulares e religiosos. Ademais, o novo texto do § 6º, do artigo 226 da CF, ao retirar de seu corpo a expressão separação judicial, permite ao mesmo doutrinar questionar: como mantê-la na legislação infraconstitucional?
A inexistência de causas objetivas - decurso de prazo - alegado para repensar a decisão do casal não mais poderá prevalecer. O dogma religioso: a união é indissolúvel, não cabendo ao Homem separar o que Deus uniu, não passa de hipocrisia, a partir do momento em que a própria religião admitiu a separação, tornando evidente que o vínculo permaneceria tão-só para resguardar a aparência de moralidade. E, para aqueles que pretendem um momento a mais de reflexão existe a possibilidade da separação de corpos, de caráter satisfativo, até que, pelo menos um dos separandos, pretenda converte-la em divórcio.
Por outro lado, a conjugação entre Direito e Fé não impõe a prevalência de um sobre o outro, eis que o primeiro não se submete a dogmas, mas à vontade democrática do povo, por intermédio de seus legisladores, enquanto que a outra é opção particular, incapaz de interferir na vida social, salvo no âmbito das próprias ideologia e intimidade. Ademais, de há muito se questiona se apenas o casamento religioso consegue harmonizar a relação conjugal. Se assim fosse o Alcorão (2ª Sura, Versículos 226 e ss.), desde 600 anos depois de Cristo, assim como a Tora, previram o divórcio e anteciparam-se à posição da religião católica, assim como a das demais seitas, sem que isto represente seja qualquer delas um exemplo de modernidade. É evidente que intercalam, no decorrer dos séculos, posições afirmativas que se contrapõem a outras de evidente caráter sectário e retrógrado, como por exemplo, os muçulmanos africanos a impor a ablação do clitóris; a morte dos homoafetivos ou, de forma mais abrangente, a burca; os católicos, por sua vez, impedindo o uso de preservativo e impondo o celibato a seus celebrantes; ou, por fim, os judeus em sua ortodoxia a partir da vestimenta ou corte de cabelos, com desprezo à mulher, impura, durante a menstruação.
Talvez, e este é o entendimento de Yussef Cahali e Mathias Coltro, na breve menção de Francisco Cahali, em painel promovido, em setembro último, pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família - Secção São Paulo ("A Emenda Constitucional do Divórcio: Questões Polêmicas"), no sentido de que se proponha revisão na celebração do casamento, diante da quebra do rigor formalístico, imposto pela EC/66, ao extinguir a sociedade conjugal e o vínculo matrimonial (Lôbo, 2009).
Ao cabo, cabe referir como exemplo de núcleo familiar em mutação, à figura da "família mosaico" (Borges, 2007), composta quer pela "mulher do pai" quer pelo "homem da mãe", ambos sem substituir ao anterior cônjuge ou companheiro, e que ampliam consideravelmente o espectro daquele núcleo, agregando elementos que passam a constituir a nova parentalidade.
III - HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Desde logo, há que repetir a lição do Supremo Tribunal Federal, em voto do Min. Marco Aurélio (RE 387.271 - DJ 01.02.2008) quando assenta: O conflito de norma com preceito constitucional superveniente resolve-se no campo da não-recepção. Portanto, a exclusão da separação judicial, na condição de instituto jurídico, ao texto constitucional implica em que não terá esta o suporte do direito adquirido à sua permanência, nada obstante prevista na esfera infraconstitucional e salvo naquilo em que compatível com a imediata decretação do divórcio. Exemplo de exceção é a do separado judicialmente, ao tempo da promulgação da Emenda 66/10, que, necessariamente, deverá ingressar com ação de conversão para atingir o divórcio.
Recorde-se aqui a lição de Lôbo (2009) no sentido de que: ...o advento da nova norma constitucional não necessita, para ser diretamente aplicável, de nova regulamentação constitucional, pois as questões essenciais do divórcio estão suficientemente contempladas na legislação civil existente e as normas destinadas à separação judicial ou à dissolução da sociedade conjugal podem ser aproveitadas, porque foram revogadas, em virtude de sua incompatibilidade com a dissolução do casamento pelo divórcio.
IV - ESPÉCIES DE DIVÓRCIO
Doravante temos: o divórcio judicial consensual, o litigioso e o consensual administrativo (Resolução 35/07 do Conselho Nacional de Justiça - cuja aplicação será recusada naquilo em que contrariar a norma Constitucional e admitido onde inexistir interesse de menores ou de incapazes).
No que diz respeito ao divórcio litigioso, há que cogitar da aplicação da figura processual dos "Capítulos da Sentença", conforme obra homônima de Dinamarco (2009), permitida pela jurisprudência quanto à partilha nas ações de divórcio. Desta forma, as discussões restantes: guarda e visitas aos filhos, alimentos, sobrenome, bem como a questão patrimonial, devem ser resolvidas em "cisão da sentença em partes, ou capítulos, em vista da utilidade que o estudioso tenha em mente. É lícito: a) fazer somente a repartição dos preceitos contidos no decisório, referentes às diversas pretensões que compõem o mérito; b) separar, sempre no âmbito do decisório sentencial, capítulos referentes aos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito e capítulos que contêm esse próprio julgamento; c) isolar capítulos segundo os diversos fundamentos da decisão".
Incabível a recusa pelo cônjuge, que não terá elementos para contestar a pretensão à decretação do divórcio, que é imediata, bastando a vontade de um deles, pois, para ser alcançado, não mais caberá discutir a culpa (Simão, 2010).
Anote-se que o litígio sobre a matéria remanescente, como na guarda de filhos, há de se resolver por meio daquela compartilhada, pois em caso de acordo o juiz apenas a homologa, resultando claro que o prosseguimento da discórdia, em geral, poderá desaguar na alienação parental, com característica de indignidade (Pereira, 2010).
Na concessão e fixação dos alimentos é de meridiana clareza que o alimentado, desde que necessite dos mesmos e disponha o alimentante de recursos, independentemente de qualquer discussão sobre a culpa, a eles fará jus. Ressalve-se que nos casos de indignidade (parágrafo único, do art. 1708 do CC) ao credor será garantido o mínimo à sobrevivência ou deverá ser fixado de forma transitória e por período certo. A decisão deve observar os princípios da solidariedade e sobrevivência, enquanto que a extinção da responsabilidade do devedor não poderá prescindir de apurar-se a indignidade, conforme preleciona Fonseca (2010) ou características pessoais do alimentado, tais como, maioridade, capacidade de exercer atividade profissional, moléstia incapacitante, etc.
A culpa será objeto de discussão apenas quando se referir a ato ilícito, doloso ou culposo, onde a presença de nexo de causalidade garantirá o ressarcimento, na esfera cível. O litígio entre duas pessoas, que não possuem vínculo de qualquer espécie, não passa de uma discussão entre dois particulares, alheios à tutela das Varas de Família.
Não é a indignidade que, com exclusividade, põe fim ao relacionamento, mas, ao pensionamento, implicando na interposição de ação de extinção e sem estar atrelada à fiscalização da vida sexual do alimentado, tanto assim que a doutrina excluiu ao Código Civil a expressão "mulher desonesta", prevista no art. 1744, III do CC. Desta forma, a indignidade deve ser analisada sob aspecto ético e não moral - subjetivo.
O sobrenome é direito indisponível e integra a personalidade podendo ser objeto de opção, salvo nos casos de desonra (art. 1578 do CC) e desde que não se constitua em atributo inafastável à personalidade, mesmo daquele que dê ensejo à eventual exclusão, lembrando-se a respeito a mantença do nome artístico (Lucinha Lins) ou de vida pública (Marta Suplicy).
Por fim, a questão patrimonial já era objeto de discussão posterior, feita a ressalva de não prejudicar a prole ou um dos cônjuges ou companheiros. Quanto a estes, é o relacionamento efetivado sob a forma de contrato, com expressa previsão de partilha, enquanto que para os casados a opção pelo regime de casamento não tem impedido dificultosa interpretação.
V - A CULPA
A exclusão da culpa da esfera do Direito de Família não quer em absoluto dizer que os atos ilícitos praticados durante a constância dos relacionamentos deixam de ser objeto de ressarcimento, assim como a comprovação dos atos de indignidade.
Novamente, há que referir o disposto no art. 1708, parágrafo único do Código Civil, e que não implica na perda, desde logo, ao direito aos alimentos, na verdade, o sentido da referida disposição legal parece ser aquele que conduz à exoneração apenas dos alimentos já anteriormente estabelecidos (Fonseca, op.cit.), mesmo sob a forma de separação de corpos.
Releva, contudo, que a rapidez com que se extingue a sociedade conjugal e o vínculo matrimonial nem sempre conduz à imediata constatação da indignidade, obrigando à interposição da ação de exoneração, para melhor e mais aprofundada análise.
Desta forma também se conclui quanto às agressões mentais ou físicas, conforme o grau de dolo ou culpa da conduta do agressor, apurado o nexo de causalidade e eventual ressarcimento em ação ordinária cível.
Na esfera das Varas de Família permanece o reconhecimento da instalação ou reiteração de atos de alienação parental, especialmente quanto ao grau de dolo ou culpa indignidade que se compara a atos de tortura, constitucionalmente puníveis.
A rapidez da dissolução do vínculo torna evidente que ao insistir num relacionamento falido, onde não mais existem o Amor, o Afeto, o Respeito ou a Solidariedade, assumirá a parte os riscos de manter o clima de violência e desonra. Pior quando colocar em risco o interesse superior da criança ou do adolescente, fazendo surgir ou fomentando a alienação parental.
CONCLUSÕES
A aprovação da EC 66/2010 legisla para o Futuro e veio ao encontro do anseio da sociedade no sentido de afastar a tutela e a intervenção do Estado na vida privada.
Onde constatado o desaparecimento do Amor, do Afeto, da Solidariedade, em evidente desrespeito ao princípio da Dignidade Humana, cabe a imediata decretação do divórcio.
Estéril será a discussão entre favoráveis ou contrários ao divórcio, sob a frágil alegação de que irá representar o fim da família. O fim da aparência e da hipocrisia permite a criação de modelo mais aberto e dirigido à plena realização de todos os membros do núcleo familiar, inclusive na composição de verdadeira "família mosaico".
Não tem pertinência a discussão religiosa; a proximidade entre Direito e Fé não impõe a supremacia de um sobre o outro, uma vez que o primeiro não se submete a dogmas, mas à vontade democrática do povo, enquanto que a outra é fruto de crença ou ideologia, de feição particular. A discussão é ética e não moral.
O instituto da separação judicial, em qualquer de suas formas, não foi recepcionado pela nova ordem constitucional. Hoje existe o divórcio judicial consensual e litigioso, além do consensual administrativo. Doravante, observada a exclusão das exigências subjetivas (culpa) ou objetivas (lapso temporal), para sua decretação, com o fim da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial.
O divórcio, imediatamente decretado, reduz o período de exposição dos ex-cônjuges e filhos às consequencias do fim do relacionamento.
Não se discute mais a culpa como motivação para a decretação do divórcio. No divórcio litigioso apurar-se-á a prática de atos dolosos ou culposos dirigidos a eventual guarda de filhos e regime de visitas, opção pelo sobrenome, concessão de alimentos e partilha. Nas hipóteses de violência física ou psíquica por ato ilícito a ação irá se desenvolver na esfera cível, salvo nos casos de alienação parental, que permanecerá junto às Varas de Família e Sucessões.
O que extingue o pagamento dos alimentos é a indignidade, prevista no art. 1708, parágrafo único, do Código Civil, nada obstante fixados, caso a caso, diante das condições de disponibilidade e necessidade em caráter temporário ou mínimo.
Prestigia-se em qualquer hipótese o ativismo judicial e o princípio da dignidade humana: liberdade e igualdade.
Ressalte-se, por fim, que a importância jurídico-social dos novos institutos advém de hermenêutica construtiva, a partir da analogia e acatamento aos princípios fundamentais da dignidade, liberdade, autodeterminação, igualdade, intimidade, não discriminação e busca da felicidade. (Min. Celso Mello, no julgamento da Adin 3.300/DF, j. em 9/2/2006).
Caetano Lagrasta é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Bibliografia
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CIMINO, James. "Divórcios têm aumento de 149% no Estado de São Paulo após novas regras". Folha de S. Paulo, 15/10/2010. Cotidiano. C3.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos da Sentença. 4ª ed. Malheiros Editores. 2009.
FONSECA. Priscila Maria Pereira Corrêa da. Afirma que: insta reconhecer que o art. 1708, parágrafo único, nada mais representa do que a estratificação da jurisprudência que já se consolidara acerca da pertinência da exoneração do devedor de alimentos diante da indignidade da conduta assumida pelo respectivo credor, suprimindo, assim, a lacuna de que se ressentia o revogado Código Civil. In A Exoneração da Pensão Alimentícia Devida ao Ex-Cônjuge. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. V. 16 (Jun/Jul 2010). Magister, p 22 e ss.
LÔBO, Paulo. "PEC do Divórcio": Consequências Jurídicas Imediatas. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, v. 11 (Ago/Set 2009). Magister. pp. 9 e s.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010. p 29.
SIMÃO, José Fernando. "A PEC do Divórcio" - A Revolução do Século em Matéria de Direito de Família - A passagem de um Sistema Antidivorcista para o Divorcista Pleno. Revista Brasileira do Direito das Famílias e Sucessões. V. 17 (Ago/Set 2010) Magister. p. 14 e s.
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