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Um valor imprescindível
“Amor é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer; / / É um não querer mais que bem querer; / É solitário andar por entre a gente; / É nunca contentar-se de contente; / É cuidar que se ganha em se perder; ...” (Camões. Sonetos).
De forma inevitável e na mesma esteira de tudo que o século passado assistiu alterar-se (sob o influxo de pressões sociais, psicológicas e antropológicas, com evidentes conseqüências no plano jurídico), também a família submeteu-se a uma visceral mudança. Apresenta-se como instituição, com forma multifária. A respeito dela sequer é possível afirmar um conceito único. Varia conforme o aspecto sob o qual se analisa e suscita indagações cada vez mais intrincadas quanto aos aspectos que a envolvem e os efeitos que produzem.
Inexoravelmente e na tela que esse panorama oferece, a figura da união de fato surge como instituto a demandar e obter inserção em moldura que a proteja e também aos que a adotam como forma de vida, de sorte tanto a afastar a conotação pejorativa que alguns sempre insistiram em lançar contra sua irrefutável existência, como a mostrar que o Estado não se alheia ao que a vida apresenta em suas várias circunstâncias.
E dentro da legitimação - que a partir de 1988 é manifestada constitucionalmente à condição dos que adotam a união informal como objetivo de vida - e do debate surgido quanto ao espectro da norma que a rege, surge um outro debate, acerca da necessidade de sua regulamentação.
Este debate sobre a necessidade de sua regulamentação diz respeito aos requisitos que devam ser considerados para a produção de efeitos em relação aos conviventes. E, como não poderia deixar de ser, o aspecto patrimonial acaba sendo objeto de especial preocupação em ambos os diplomas editados e pertinentes ao tema (Leis n. 8.971/94 e 9.278/96), tanto com vistas ao partilhamento de bens adquiridos durante a vida em comum, quanto em relação ao direito sucessório, envolvendo aqui o direito de usufruto ou direito real de habitação, dispondo, também, sobre a assistência material de um companheiro ao outro.
Se a primeira vista é possível entender que o legislador mais se preocupou com a seara patrimonial do que com qualquer outra, na realidade é permitido verificar que uma outra circunstância foi objeto de consideração e, sem dúvida nenhuma, de muito maior importância que as concernentes às conseqüências que possam advir da união de fato, por pertinente ao quanto é necessário à sua própria existência.
Esta outra circunstância diz respeito ao aspecto do afeto e, que, embora possa “soar redundante, uma vez que tal noção é elemento essencial nas relações interpessoais” que formam a família, como observado por Silva Maria Carbonera,(1) nunca será demais ser ele considerado de forma expressa pelo Legislativo, de sorte a realçar sua importância para o Direito, principalmente em se tratando daquilo que é delimitado pelo Direito de Família.
Efetivamente e muito embora a Lei n. 8.971 não tenha aludido a circunstância diretamente relacionada com o afeto, o mesmo deixou de ocorrer quanto à de n. 9.278/96. O legislador preocupou-se em conceituar a entidade familiar como “a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família” (art. 1º), sendo direitos e deveres dos conviventes o “respeito e consideração mútuos”, a “assistência moral e material recíproca” e a “guarda, sustento e educação dos filhos comuns” (art. 2º, incisos I a III), resultando evidente em cada um de tais enunciados, que na verdade deveriam compor o próprio conceito da entidade antes referida, a clara presença do elemento da afetividade.
Da mesma forma que o afeto é sinônimo de amizade, simpatia, amor, paixão, emoção ou inclinação, entre outras palavras que expressam sentimentos, ele também está intrinsecamente ligado às expressões contidas nos enunciados referidos e indicativos dos direitos e deveres dos conviventes, uma vez que tanto a intenção de constituir família quanto a convivência duradoura e o respeito e considerações mútuos (além da assistência moral e material recíproca e também a guarda, sustento e educação dos filhos comuns) têm como ínsitos à moldura e conteúdo de cada um a manifestação do afeto, como “sentimento terno de adesão geral por uma pessoa”,(2) ou seja do próprio amor, sendo extremamente importante que a lei - para os fins inicialmente referidos e que têm a ver tanto com aquilo que se entende como necessário à caracterização da união de fato como com as conseqüências que dela podem advir - tenha dado ao afeto o valor jurídico que ele possui e já fora apregoado, ainda que aludindo ao amor, que dele é sinônimo, por Silvio de Macedo.
Por isso mesmo e como corolário do exposto, verifica-se que a regra do art. 5º, da Lei n. 9.278/96, estabelecendo que “Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação em contrato escrito” nada mais é do que o reconhecimento legislativo de um efeito que a realidade não pode negar, consubstanciado na circunstância de que só a vida em comum (desde que estável e constituída segundo os critérios previstos nos arts. 1º e 2º do mesmo diploma e independente da demonstração de como contribuíram os companheiros para a aquisição) basta à caracterização do condomínio aludido e, que, “(...) usando a expressão de THALLER, pode-se dizer que é um estado criado mais do que um estado procurado”,(3) no tocante ao qual e acima de tudo muito importa é o afeto ou amor que um companheiro nutre pelo outro.
*Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo; Professor de Direito Civil na PUC de São Paulo; Membro da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito; Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
De forma inevitável e na mesma esteira de tudo que o século passado assistiu alterar-se (sob o influxo de pressões sociais, psicológicas e antropológicas, com evidentes conseqüências no plano jurídico), também a família submeteu-se a uma visceral mudança. Apresenta-se como instituição, com forma multifária. A respeito dela sequer é possível afirmar um conceito único. Varia conforme o aspecto sob o qual se analisa e suscita indagações cada vez mais intrincadas quanto aos aspectos que a envolvem e os efeitos que produzem.
Inexoravelmente e na tela que esse panorama oferece, a figura da união de fato surge como instituto a demandar e obter inserção em moldura que a proteja e também aos que a adotam como forma de vida, de sorte tanto a afastar a conotação pejorativa que alguns sempre insistiram em lançar contra sua irrefutável existência, como a mostrar que o Estado não se alheia ao que a vida apresenta em suas várias circunstâncias.
E dentro da legitimação - que a partir de 1988 é manifestada constitucionalmente à condição dos que adotam a união informal como objetivo de vida - e do debate surgido quanto ao espectro da norma que a rege, surge um outro debate, acerca da necessidade de sua regulamentação.
Este debate sobre a necessidade de sua regulamentação diz respeito aos requisitos que devam ser considerados para a produção de efeitos em relação aos conviventes. E, como não poderia deixar de ser, o aspecto patrimonial acaba sendo objeto de especial preocupação em ambos os diplomas editados e pertinentes ao tema (Leis n. 8.971/94 e 9.278/96), tanto com vistas ao partilhamento de bens adquiridos durante a vida em comum, quanto em relação ao direito sucessório, envolvendo aqui o direito de usufruto ou direito real de habitação, dispondo, também, sobre a assistência material de um companheiro ao outro.
Se a primeira vista é possível entender que o legislador mais se preocupou com a seara patrimonial do que com qualquer outra, na realidade é permitido verificar que uma outra circunstância foi objeto de consideração e, sem dúvida nenhuma, de muito maior importância que as concernentes às conseqüências que possam advir da união de fato, por pertinente ao quanto é necessário à sua própria existência.
Esta outra circunstância diz respeito ao aspecto do afeto e, que, embora possa “soar redundante, uma vez que tal noção é elemento essencial nas relações interpessoais” que formam a família, como observado por Silva Maria Carbonera,(1) nunca será demais ser ele considerado de forma expressa pelo Legislativo, de sorte a realçar sua importância para o Direito, principalmente em se tratando daquilo que é delimitado pelo Direito de Família.
Efetivamente e muito embora a Lei n. 8.971 não tenha aludido a circunstância diretamente relacionada com o afeto, o mesmo deixou de ocorrer quanto à de n. 9.278/96. O legislador preocupou-se em conceituar a entidade familiar como “a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família” (art. 1º), sendo direitos e deveres dos conviventes o “respeito e consideração mútuos”, a “assistência moral e material recíproca” e a “guarda, sustento e educação dos filhos comuns” (art. 2º, incisos I a III), resultando evidente em cada um de tais enunciados, que na verdade deveriam compor o próprio conceito da entidade antes referida, a clara presença do elemento da afetividade.
Da mesma forma que o afeto é sinônimo de amizade, simpatia, amor, paixão, emoção ou inclinação, entre outras palavras que expressam sentimentos, ele também está intrinsecamente ligado às expressões contidas nos enunciados referidos e indicativos dos direitos e deveres dos conviventes, uma vez que tanto a intenção de constituir família quanto a convivência duradoura e o respeito e considerações mútuos (além da assistência moral e material recíproca e também a guarda, sustento e educação dos filhos comuns) têm como ínsitos à moldura e conteúdo de cada um a manifestação do afeto, como “sentimento terno de adesão geral por uma pessoa”,(2) ou seja do próprio amor, sendo extremamente importante que a lei - para os fins inicialmente referidos e que têm a ver tanto com aquilo que se entende como necessário à caracterização da união de fato como com as conseqüências que dela podem advir - tenha dado ao afeto o valor jurídico que ele possui e já fora apregoado, ainda que aludindo ao amor, que dele é sinônimo, por Silvio de Macedo.
Por isso mesmo e como corolário do exposto, verifica-se que a regra do art. 5º, da Lei n. 9.278/96, estabelecendo que “Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação em contrato escrito” nada mais é do que o reconhecimento legislativo de um efeito que a realidade não pode negar, consubstanciado na circunstância de que só a vida em comum (desde que estável e constituída segundo os critérios previstos nos arts. 1º e 2º do mesmo diploma e independente da demonstração de como contribuíram os companheiros para a aquisição) basta à caracterização do condomínio aludido e, que, “(...) usando a expressão de THALLER, pode-se dizer que é um estado criado mais do que um estado procurado”,(3) no tocante ao qual e acima de tudo muito importa é o afeto ou amor que um companheiro nutre pelo outro.
*Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo; Professor de Direito Civil na PUC de São Paulo; Membro da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito; Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
1. CARBONERA, Silva Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 273.
2. DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001 (verbete: afeto).
3. BITTENCOURT Edgard de Moura. Concubinato. São Paulo: LEUD, 1980, p. 73.
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