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Comércio de luas e estrelas
Na atual fase de hegemonia do biocapital financeiro, o embrião humano tornou-se matéria-prima para a indústria farmacêutica. Neste exato instante, vários laboratórios disputam uma corrida para legalizar o mais rápido possível a experimentação e a exploração industrial e comercial destes embriões, quer os excedentários já existentes, quer os ainda por produzir. Neste processo de mercantilização da vida, o ser humano tende a transformar-se em mais uma commodity submetida às leis do mercado, afetando diretamente tanto a reprodução quanto a constituição de novas famílias.
Laços de sangue, independentemente do que o Direito possa estabelecer como famílias legitimadas a desfrutar dos direitos a nome, herança, alimentos, costumam ser o vínculo primordial da rede de parentesco, englobando distintas gerações. No baby business o casal parental associa-se ao capital, incorporado como um terceiro elemento na forma de lucros, laboratórios, doadores de matéria-prima, mercado de ações. O biocapital consegue, portanto, aninhar-se, implantar-se na própria célula reprodutora de seres humanos, completando um outro triângulo fundamental. Esta situação se aplica até mesmo para os casos de reprodução assistida com óvulo e esperma dos progenitores.
A introdução do biocapital nas relações amorosas abriu de vez a perspectiva de genitores do mesmo sexo. Afinal, para o biocapital o modelo da relação amorosa é o amor entre iguais, isto é, entre consumidores. Com a genetização da biologia, as relações socioafetivas vão ganhando importância. Mas de que afeto se trata? Nas redes de parentesco por aliança não se compartilha o sangue e sim um seu substituto, que pode ser afeto. Mas o eixo destas relações também pode ser ocupado por dinheiro, ideais, paixões.
Afeto como argumento de venda
Criando demandas de consumo, impondo sonhos e fantasias, naturalizando exclusões e dominações, a Comunicação vai ocupando espaços e legitimando-se como fonte de verdade. Só que ela é a bocca de la veritá do capital. E é deste lugar que determina a concepção dos valores e princípios que devem reger nossas vidas, como, por exemplo, o afeto. Este não será definido como um complexo de sentimentos, envolvendo amor, ódio, ternura, horror, afeição, nojo, generosidade, mesquinhez, mas como isca para comover consumidores a comprarem produtos e serviços.
Em anúncio do Colégio Pinheiro Guimarães (RJ), veiculado como encarte em jornais, somos informados que ele é "sinônimo de vida, vibração, energia, espírito de equipe e muito afeto. Por isso mesmo, há tantos anos, somos conhecidos como o colégio de corpo e alma. Então, não perca tempo: entre de cabeça e venha estudar aqui. A gente coloca o coração na frente". Com o fim da palmatória, será que estes são os principais atributos exigíveis de um estabelecimento de ensino?
O afeto entra nesta série como um dos principais argumentos de venda do colégio, ainda mais em sua forma "e muito afeto", indício de um ambiente de camaradagem entre alunos, pois não há professores na foto que ilustra a publicidade. Assim, evoca-se uma atmosfera familiar, lúdica, com muita animação nas horas de recreio e, até mesmo, quem sabe, durante as aulas. Mas os alunos não devem temer nenhum rigor pedagógico ou disciplinar, afinal "a gente coloca o coração na frente". O bolso dos pais não é esquecido, pois há um lembrete de que descontos especiais são concedidos aos funcionários e dependentes de uma extensa lista de empresas conveniadas.
Em anúncio do Bradesco Vida e Previdência podemos ler: "Neste Natal, dê um futuro mais tranqüilo para sua família. E desconte do Imposto de Renda". Explorando a insegurança que reina no mundo do neoliberalismo globalizado, com desemprego, falências fraudulentas, perdas e/ou confisco da poupança de toda uma vida, este anúncio se aproveita do período natalino para amolecer o bolso dos chefes de família. O final de ano, no entanto, também é o prazo final para se ter direito ao desconto do Imposto de Renda. Este anunciante percebe as relações familiares como um bom negócio para si, no qual o "dar para a família" significa, na verdade, comprar um produto imaterial, sem garantia efetiva de um futuro melhor .
Espalhado pelos pontos de ônibus da cidade, disseminado nas páginas de jornais e revistas, encontra-se o anúncio da última promoção da Telefônica Celular. Nesta peça publicitária não há mais sutileza, não é preciso mais dourar a pílula: a família virou moeda. Pai, mãe, filhos literalmente foram convertidos em dinheiro, com direito até mesmo a centavos, representados pelas crianças menores.
O cenário idílico desta família idealizada, o verde da relva e dos arbustos, a brancura dos personagens, a alegria e o bem-estar que emanam da imagem são alguns dos ingredientes usados para impor a nova trindade da família brasileira: R$. "Aproveite a oportunidade única de proteger a saúde de seu filho desde o nascimento." "Trata-se de uma das mais importantes decisões para seu bebê e o futuro de sua família." "Não perca a única possibilidade de salvar o sangue do cordão de seu filho."
Estes são alguns exemplos de campanhas que começam a ser feitas nos Estados Unidos para incentivar futuros pais a estocar e congelar durante anos o sangue do cordão umbilical do recém-nascido. Cerca de dez empresas disputam este novo mercado, que pode chegar a representar US$ 500 milhões, o equivalente a 10% dos pais dos 4 milhões de crianças que nascem por ano no solo norte-americano.
Estas firmas estão vendendo a possibilidade futura, ainda não comprovada cientificamente, de utilização das células-tronco do cordão umbilical para tratar doenças atualmente incuráveis, e até mesmo para fabricar tecidos e órgãos de substituição com as próprias células do paciente. As tarifas destes serviços variam de US$ 275 a 1.500 para a coleta e o congelamento, e de US$ 50 a 100 por ano para a estocagem. Para o biocapital, culpa também pode ser um bom motor de vendas.
Luas e estrelas
No capítulo final da novela As filhas da mãe, de Sílvio de Abreu, veiculada pela TV Globo em 18/1/2002, Ramona (transexual vivido por Cláudia Raia) assim responde às inquietações do amado Leonardo (Alexandre Borges) de que eles não poderiam casar nem ter filhos: "Por que desejar a lua, quando já temos as estrelas?" Esta resposta, citação do filme Now Voyager de 1942, com Bette Davis e direção de Irving Rapper, apesar de brilhantemente evocada, está ultrapassada em relação à atualidade do desempenho do biocapital, não apenas no imaginário, como também no real do corpo e do desejo contemporâneos. Hoje, já é possível ter a lua e as estrelas simultaneamente. Desde que se tenha o dinheiro para comprá-las.
* Jornalista; Escritora; Autora dos livros: Capital da Libido, os EUA em MM; Despache-se; co-autora de CPI: Os novos Comitês de Salvação Pública. Foi responsável pela coluna semanal Defesa do Cidadão do jornal O Globo. Dedica-se atualmente à construção do gênero jornalismo jurídico.
Laços de sangue, independentemente do que o Direito possa estabelecer como famílias legitimadas a desfrutar dos direitos a nome, herança, alimentos, costumam ser o vínculo primordial da rede de parentesco, englobando distintas gerações. No baby business o casal parental associa-se ao capital, incorporado como um terceiro elemento na forma de lucros, laboratórios, doadores de matéria-prima, mercado de ações. O biocapital consegue, portanto, aninhar-se, implantar-se na própria célula reprodutora de seres humanos, completando um outro triângulo fundamental. Esta situação se aplica até mesmo para os casos de reprodução assistida com óvulo e esperma dos progenitores.
A introdução do biocapital nas relações amorosas abriu de vez a perspectiva de genitores do mesmo sexo. Afinal, para o biocapital o modelo da relação amorosa é o amor entre iguais, isto é, entre consumidores. Com a genetização da biologia, as relações socioafetivas vão ganhando importância. Mas de que afeto se trata? Nas redes de parentesco por aliança não se compartilha o sangue e sim um seu substituto, que pode ser afeto. Mas o eixo destas relações também pode ser ocupado por dinheiro, ideais, paixões.
Afeto como argumento de venda
Criando demandas de consumo, impondo sonhos e fantasias, naturalizando exclusões e dominações, a Comunicação vai ocupando espaços e legitimando-se como fonte de verdade. Só que ela é a bocca de la veritá do capital. E é deste lugar que determina a concepção dos valores e princípios que devem reger nossas vidas, como, por exemplo, o afeto. Este não será definido como um complexo de sentimentos, envolvendo amor, ódio, ternura, horror, afeição, nojo, generosidade, mesquinhez, mas como isca para comover consumidores a comprarem produtos e serviços.
Em anúncio do Colégio Pinheiro Guimarães (RJ), veiculado como encarte em jornais, somos informados que ele é "sinônimo de vida, vibração, energia, espírito de equipe e muito afeto. Por isso mesmo, há tantos anos, somos conhecidos como o colégio de corpo e alma. Então, não perca tempo: entre de cabeça e venha estudar aqui. A gente coloca o coração na frente". Com o fim da palmatória, será que estes são os principais atributos exigíveis de um estabelecimento de ensino?
O afeto entra nesta série como um dos principais argumentos de venda do colégio, ainda mais em sua forma "e muito afeto", indício de um ambiente de camaradagem entre alunos, pois não há professores na foto que ilustra a publicidade. Assim, evoca-se uma atmosfera familiar, lúdica, com muita animação nas horas de recreio e, até mesmo, quem sabe, durante as aulas. Mas os alunos não devem temer nenhum rigor pedagógico ou disciplinar, afinal "a gente coloca o coração na frente". O bolso dos pais não é esquecido, pois há um lembrete de que descontos especiais são concedidos aos funcionários e dependentes de uma extensa lista de empresas conveniadas.
Em anúncio do Bradesco Vida e Previdência podemos ler: "Neste Natal, dê um futuro mais tranqüilo para sua família. E desconte do Imposto de Renda". Explorando a insegurança que reina no mundo do neoliberalismo globalizado, com desemprego, falências fraudulentas, perdas e/ou confisco da poupança de toda uma vida, este anúncio se aproveita do período natalino para amolecer o bolso dos chefes de família. O final de ano, no entanto, também é o prazo final para se ter direito ao desconto do Imposto de Renda. Este anunciante percebe as relações familiares como um bom negócio para si, no qual o "dar para a família" significa, na verdade, comprar um produto imaterial, sem garantia efetiva de um futuro melhor .
Espalhado pelos pontos de ônibus da cidade, disseminado nas páginas de jornais e revistas, encontra-se o anúncio da última promoção da Telefônica Celular. Nesta peça publicitária não há mais sutileza, não é preciso mais dourar a pílula: a família virou moeda. Pai, mãe, filhos literalmente foram convertidos em dinheiro, com direito até mesmo a centavos, representados pelas crianças menores.
O cenário idílico desta família idealizada, o verde da relva e dos arbustos, a brancura dos personagens, a alegria e o bem-estar que emanam da imagem são alguns dos ingredientes usados para impor a nova trindade da família brasileira: R$. "Aproveite a oportunidade única de proteger a saúde de seu filho desde o nascimento." "Trata-se de uma das mais importantes decisões para seu bebê e o futuro de sua família." "Não perca a única possibilidade de salvar o sangue do cordão de seu filho."
Estes são alguns exemplos de campanhas que começam a ser feitas nos Estados Unidos para incentivar futuros pais a estocar e congelar durante anos o sangue do cordão umbilical do recém-nascido. Cerca de dez empresas disputam este novo mercado, que pode chegar a representar US$ 500 milhões, o equivalente a 10% dos pais dos 4 milhões de crianças que nascem por ano no solo norte-americano.
Estas firmas estão vendendo a possibilidade futura, ainda não comprovada cientificamente, de utilização das células-tronco do cordão umbilical para tratar doenças atualmente incuráveis, e até mesmo para fabricar tecidos e órgãos de substituição com as próprias células do paciente. As tarifas destes serviços variam de US$ 275 a 1.500 para a coleta e o congelamento, e de US$ 50 a 100 por ano para a estocagem. Para o biocapital, culpa também pode ser um bom motor de vendas.
Luas e estrelas
No capítulo final da novela As filhas da mãe, de Sílvio de Abreu, veiculada pela TV Globo em 18/1/2002, Ramona (transexual vivido por Cláudia Raia) assim responde às inquietações do amado Leonardo (Alexandre Borges) de que eles não poderiam casar nem ter filhos: "Por que desejar a lua, quando já temos as estrelas?" Esta resposta, citação do filme Now Voyager de 1942, com Bette Davis e direção de Irving Rapper, apesar de brilhantemente evocada, está ultrapassada em relação à atualidade do desempenho do biocapital, não apenas no imaginário, como também no real do corpo e do desejo contemporâneos. Hoje, já é possível ter a lua e as estrelas simultaneamente. Desde que se tenha o dinheiro para comprá-las.
* Jornalista; Escritora; Autora dos livros: Capital da Libido, os EUA em MM; Despache-se; co-autora de CPI: Os novos Comitês de Salvação Pública. Foi responsável pela coluna semanal Defesa do Cidadão do jornal O Globo. Dedica-se atualmente à construção do gênero jornalismo jurídico.
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