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Separação Judicial: uma incompatibilidade com a nova ordem constitucional
Com o advento da EC 66/2010 houve a supressão da prévia separação judicial/fato como requisito para obtenção do divórcio. Dessa assertiva não há mais dúvida. Entretanto, algumas controvérsias jurídicas e doutrinárias resplandeceram no cenário jurídico, como por exemplo, a mantença da separação judicial, não como requisito para obtenção do divórcio, mas como possibilidade de escolha dos requerentes de optarem pelo término da sociedade conjugal via separação judicial.
Devida vênia, tal exemplo supracitado carece de respaldo jurídico, haja vista a supremacia das normas constitucionais que afastou do seu diploma legal o instituto da separação judicial, seja expressamente como requisito para o divórcio, ou implicitamente, através da supressão da separação judicial, pois esta apresenta incompatibilidade com a axiologia constitucional. Essas premissas se devem ao fato do caráter teleológico das razões que motivaram o legislador em perpetrar a reforma constitucional[1]. Paulo Luiz Netto Lôbo em sua doutrina preleciona:
No plano da interpretação teleológica, indaga-se quais os fins sociais da nova norma constitucional. Responde-se: permitir sem empeços e sem intervenção estatal na intimidade dos cônjuges, que estes possam exercer com liberdade seu direito de desconstituir a sociedade conjugal, a qualquer tempo e sem precisar declinar os motivos. Conseqüentemente, quais os fins sociais da suposta sobrevivência da separação judicial, considerando que não mais poderia ser convertida em divórcio? Ou ainda, que interesse juridicamente relevante subsistiria em buscar-se um caminho que não pode levar à dissolução do casamento, pois o divórcio é o único modo que passa a ser previsto na Constituição? O resultado da sobrevivência da separação judicial é de palmar inocuidade, além de aberto confronto com os valores que a Constituição passou a exprimir, expurgando os resíduos de quantum despótico: liberdade e autonomia sem interferência estatal[2].
O próprio Poder Judiciário[3] em um de seus julgados elucida uma interpretação voltada para a finalidade da norma:
Primeiramente, é de se ressaltar que a melhor hermenêutica aplicável sugere que qualquer técnica de leitura de textos legais deve ceder vez à teleologia da norma, ou seja, investiga-se a finalidade da norma para daí se extrair o exato sentido.
Daí porque Carlos Maximiliano asseverou com propriedade invulgar que "o hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgados necessários para satisfazer certas exigências econômicas e sociais; será interpretada do modo que melhor corresponde àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida" (In Hermenêutica e Aplicação do Direito, 3ª ed. pg. 193).
Se buscarmos os fins sociais e as exigências do bem comum, podemos concluir que vivemos em um Estado laico e que a moral religiosa[4] não deve interferir nas interpretações das normas jurídicas, sob pena de inconstitucionalidade e comprometimento na integridade do Estado Democrático de Direito. Assim, não faz mais sentido a mantença da separação judicial em casos de dissolução do vínculo conjugal, por trazer gastos desnecessários, delonga na prestação jurisdicional, desgaste emocional e abarrotamento de processos judiciais por questões que envolvam a intimidade e à vida privada do casal que não podem ser esmiuçados pelo Direito. Essa foi à conclusão do Superior Tribunal de Justiça em um de seus julgados:
Os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida privada do casal, não devem ser esquadrinhados pelo Direito, em hipóteses não contempladas pelas exceções legais, o que violaria direitos fundamentais enfeixados no art. 5º, inc. X, da CF/88 - o direito à reserva da intimidade assim como o da vida privada -, no intuito de impedir que se torne de conhecimento geral a esfera mais interna, de âmbito intangível da liberdade humana, nesta delicada área de manifestação existencial do ser humano[5].
A vontade soberana do comando constitucional através da superveniência da EC 66/2010 que instituiu o divórcio direto, não deve ser cerceada pela legislação infraconstitucional, sob pena de contrariar a sistematização da interpretação das normas jurídicas. Ou seja, interpreta-se a legislação infraconstitucional frente à luz dos dispositivos constitucionais, jamais o inverso. Tal justificativa se deve ao fato do princípio da supremacia axiológica da ordem constitucional.
Até mesmo antes da reforma constitucional, o Tribunal de Justiça de Tocantins havia priorizado em um de seus julgados o Divórcio Direto sem a necessidade do 'calvário' da separação judicial.
A requerente foi vítima de tentativa de homicídio e aborto de conduta proferida pelo requerido em 06.08.2007, e desse fato penal recebeu 17 (dezessete) facadas; teve a cabeça toda furada, ficou com aversão e medo do marido, perdeu o filho, pois estava grávida e espera do Estado o reconhecimento do Direito de não ter nenhum vínculo e "status social" que a identifique com o requerido. Não almeja o direito de separar-se judicialmente, mas sim o de sentir-se livre para poder reconstituir sua vida e identificar-se como pessoa divorciada do requerido[6].
Pelo exercício da hermenêutica jurídica deve-se observar a hierarquia, cronologia e especificidade. Devemos observar que hierarquicamente a Constituição é superior e se ela suprimiu do seu texto a separação judicial, prevendo tão somente o divórcio direto, a separação judicial não deve ser mantida no cenário infraconstitucional, pelas razões sistêmicas do ordenamento jurídico. O antigo texto constitucional era: Art. 226 § 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. Com a recente reforma o texto ficou: Art. 226 § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. Portanto, passou a ser a vontade soberana constitucional a inexistência da separação judicial, afinal suprimiu de seu texto a referência a que se fazia a esse anacrônico instituto. Atualmente, não há mais dúvida da força normativa constitucional que prevalece sobre todo o ordenamento jurídico.
Cronologicamente falando, conclui-se que a legislação posterior revoga a anterior no que nela for incompatível ou que expressamente o declare. Com a recente reforma constitucional auferida pela EC 66/2010, perpetrou a incompatibilidade da separação judicial com o novo ordenamento jurídico. Tal fato se deve na simplificação dos ritos processuais, não intervenção estatal, liberdade, intimidade, economia processual, eficiência e celeridade o que, aliás, é uma exigência da realidade social. Não menos importante é a previsão normativa[7] de que na aplicação da lei o Poder Judiciário atenderá os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Em atendimento as exigências do bem comum, o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE em suas pesquisas realizadas nos últimos anos demonstra a opção da população brasileira pelo Divórcio direto ao invés da separação judicial.
A elevação do número de divórcios em relação ao de separações, ocorrida no período compreendido entre 1998 e 2008, se explica pela maior aceitação do divórcio no Brasil e pela ampliação do acesso aos serviços de Justiça, além da possibilidade de realizar os divórcios nos tabelionatos, o que desburocratiza este evento para os casos previstos em lei[8].
Confirma-se aí a inutilidade da separação judicial e o amadurecimento da sociedade brasileira, afinal a própria população escolhe em sua maioria o divórcio direto.
Pela especificidade não seria possível à mantença da separação judicial devido à hierarquia normativa da ordem constitucional. Aliás, no próprio trâmite legislativo da EC 66/2010 a expressão nos termos da lei, foi suprimida pelo Poder Legislativo, demonstrando a vontade do legislador em manter no texto constitucional somente o divórcio direto sem a necessidade de prazos, discussão da culpa pelo término conjugal e a continuidade do instituto da separação judicial. Portanto, a separação judicial foi abolida do cenário jurídico devido à força vinculante da ordem constitucional que tem aplicabilidade imediata.
A supressão da separação judicial torna a legislação brasileira consentânea com a realidade contemporânea, priorizando a economia dos gastos processuais, brevidade na prestação jurisdicional e maior responsabilização dos seres humanos por suas escolhas. Em síntese, não há mais prazos desnecessários, discussão da culpa pelo fim do enlace conjugal, nem muito menos a ultrapassada separação judicial. Essa foi à repercussão da superveniência do novo comando constitucional que instituiu o divórcio direto.
Ronner Botelho Soares é Advogado e membro do IBDFAM
Referência Bibliográfica:
LÔBO, Paulo. "A PEC do Divórcio: conseqüências jurídicas imediatas". In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, vol. 11, pp. 05-17, Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, p. 8, ago./set. 2009.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: Teoria e Prática. Editora GZ: Rio de Janeiro, 2010.
[1] (...) Deve-se sublinhar que a necessidade de dois processos judiciais distintos apenas redunda em gastos maiores e também em maiores dissabores para os envolvidos, obrigados que se vêem a conviver por mais tempo com o assunto penoso da separação - penoso, inclusive, para toda a família, principalmente para os filhos. (...) Para esta relatoria, salta aos olhos que os representantes da advocacia, do Poder Judiciário e do Ministério Público foram unânimes em afirmar que o instituto da separação judicial deve ser suprimido do direito brasileiro. (Parecer da Comissão Especial quando da análise da PEC 413/2005 e 33/2007 ministrado na Câmara dos Deputados, Diário da Câmara dos Deputados, quinta-feira, 29.11.200) grifo nosso
[2] LÔBO, Paulo. "A PEC do Divórcio: conseqüências jurídicas imediatas". In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, vol. 11, pp. 05-17, Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, p. 8, ago./set. 2009.
[3] STJ, RESp. nº 646.259 - RS, Rel Min. Luis Felipe Salomão, 4ª turma, public. 24/08/2010
[4] Rodrigo da Cunha Pereira elucida: O sistema dual para romper o vínculo legal do casamento, como já se disse, tem suas raízes e justificativas principalmente em uma moral religiosa. Não se justifica mais em um Estado laico manter esta duplicidade de tratamento legal. A tendência evolutiva dos ordenamentos jurídicos ocidentais é que o Estado interfira cada vez menos na vida privada e na intimidade dos cidadãos. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: Teoria e Prática. Editora GZ: Rio de Janeiro, 2010. Pg 26)
[5] STJ, Resp. REsp 1107192 / PR, Rel Min. MASSAMI UYEDA, 3ª turma, public. 20/04/2010
[6] TJTO, Ação ordinária de divórcio direto, autos n° 2671/08, Juíza LUCIANA COSTA AGLANTZAKIS, julgamento 09.10.2008
[7] LICC Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
[8]http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1501&id_pagina=1
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