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Reflexão sobre o caráter institucional da família
"Chega um dia em que se o homem não deixar tudo para trás, não vaipara frente". (Autor Desconhecido)
A pessoa humana nasce inserida no seio familiar, a partir de onde modela as suas potencialidades para harmonizar a convivência em sociedade e alcançar a sua realização pessoal. Nota-se, assim, que é nessa ambientação primária que o homem distingue-se dos demais animais, pela susceptibilidade de escolha de seus caminhos e orientações, formando grupos nos quais desenvolverá a sua personalidade na busca da felicidade; aliás, não só pela fisiologia, como, igualmente, pela psicologia, pode-se afirmar que o homem nasce para ser feliz.
Não é por outro motivo que, desde sempre, tem-se definido a entidade familiar como um instituto destinado a ser instrumento de felicidade das pessoas envolvidas. Enfim, a idéia de família precisa ser construída a partir de valores vigentes em cada tempo e espaço, consideradas as peculiaridades sociais e culturais, pois concretiza uma forma de viver os fatos básicos da vida.
Com esse espírito, não se pode questionar que a família está sempre se reinventando e se reconstruindo. Transforma-se a cada momento naturalmente, ao se renovar em face da sua própria estrutura cultural. Não seria despiciendo, a título ilustrativo, lembrar a destacada importância da família colonial brasileira, que superou a relevância social e jurídica da própria pessoa humana e do Estado, concebida como uma unidade produtiva, e que refletiu os valores daquela sociedade agrícola, patriarcal, hierarquizada e patrimonialista. Na análise de PAULO FREYRE, em decantada obra, que se tornou um clássico universal e confirmou a importância social e o caráter mutável da estrutura familiar:
A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é, desde o século XVI, o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política.1
Destarte, na mesma linha de evolução da sociedade, a família vai se adequando às necessidades humanas, e corresponde aos valores que inspiram um tempo e espaço. Ora, com a Constituição Federal de 1988, que determinou uma nova navegação aos juristas ao estabelecer que a bússola que norteia as viagens jurídicas precisa ser a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a solidariedade social e erradicação da pobreza (art. 3º) e a igualdade substancial (arts. 3º e 5º). Diante disso, o Direito de Família ganhou novos ares e possibilitou viagens em mares menos revoltos.
A família do novo milênio, ancorada na segurança constitucional, é igualitária, democrática e plural, não mais necessariamente casamentária, pois a Constituição Federal de 1988 tutela todo e qualquer modelo de vivência afetiva. Essa é a família da pós-modernidade, compreendida como estrutura sócio-afetiva e forjada em laços de solidariedade. Desse modo, surge a justificativa constitucional de que a proteção a ser conferida aos novos modelos familiares tem como destinatários, imediatos e mediatos, os próprios cidadãos, pessoas humanas, merecedoras de tutela especial, assecuratória de sua dignidade e igualdade.
Pois bem, essa ruptura definitiva com um modelo necessariamente heteroparental, fundado na chefia paterna, captada pelas lentes constitucionais (arts. 3º e 5º da C.F.), propiciou o reconhecimento de novos grupos familiares, como as famílias monoparentais, ou seja, comunidades de ascendentes e descendentes, no eloqüente exemplo da mãe solteira com a sua filha que demonstra a possibilidade de estruturas familiares homoparentais. Assim sendo, a tutela do núcleo familiar tem como ponto de partida e de chegada a tutela da própria pessoa humana, sendo descabida pois, e inconstitucional, toda e qualquer forma de violação da dignidade do homem, sob o pretexto de garantir proteção à família.
Interessante precedente da jurisprudência sul-rio-grandense atesta exatamente a não-recepção da norma antes prevista em nosso ordenamento e que, a pretexto de proteger a família, viola a dignidade do homem e atenta contra a sua cidadania. Importante, nesse sentido, é a análise do seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Testamento. Inalienabilidade. Impenhorabilidade e incomunicabilidade. Desaparecimento destas cláusulas no direito brasileiro. As clausulas testamentárias de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, além de extremamente prejudiciais aos indivíduos e à sociedade, não foram recepcionadas pelo sistema constitucional vigente no Brasil. Além disso, no caso concreto, verifica-se o efetivo prejuízo aos interessados em suprimilas.Votos vencidos.2
Superam-se, em caráter definitivo, os lastimáveis argumentos históricos de que a tutela da lei justificava-se pelo interesse da família, como se houvesse uma proteção para o núcleo familiar em si mesmo. O espaço da família, na ordem jurídica, justifica-se como um núcleo privilegiado para o desenvolvimento da pessoa humana. Não há mais proteção à família simplesmente pela família, mas em razão do ser humano, como membro desta família. Enfim, é a valorização definitiva e transparente da pessoa humana. Aliás, a observação nos remete aos comandos dos arts. 226 a 230 da Lei Maior e às palavras de GUSTAVO TEPEDINO que nos conduzem ao raciocínio de que:
a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.3
A Constituição Federal de 1988, no art. 3º, IV, é de clareza solar ao disparar que é objetivo fundamental da República "promover o bem de todos", deixando antever a nítida preocupação com a dignidade da pessoa humana. É simples, assim, afirmar a evolução da idéia de família instituição, com proteção justificada por si mesmo - e que importa, não raro, na violação dos interesses das pessoas nela compreendidas - para o conceito de família, instrumento do desenvolvimento da pessoa humana.
Isto evita qualquer interferência que viole os interesses dos seus membros tutelados na medida em que promove a dignidade das pessoas de seus membros, com igualdade substancial e solidariedade entre eles. A preocupação central do ordenamento é com a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.
A tese aqui empolada já ecoa nos Pretórios, acolhida, especialmente pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em passagens destacáveis como esta, citadas em matéria na Revista do Direito Privado por CRISTIANO CHAVES DE FARIA:
A Lei nº 8.009/90 precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto Estabelece limitação á regra draconiana de que o Patrimônio do devedor deve responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável ou descendência. Não se olvidem os ascendentes. Seja o parentesco civil ou natural. Compreende ainda a família substituta. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa Proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias e, como normalmente acontece passam a residir em outras casas. Data vênia, a Lei nº 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário, à pessoa solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade data venha, põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário sacrificar-se-á e interpretação teleológica para prevalecer e insuficiente interpretação literal.4
Assim, a família existe em razão de seus componentes, e não estes em função daquela, valorizando, de forma definitiva e transparente, a pessoa humana. Desse modo, avulta afirmar, como conclusão lógica e inarredável, que a família cumpre modernamente um papel funcionalizado, devendo, efetivamente, servir como ambiente propício para a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade; ainda no dizer de CRISTIANO CHAVES DE FARIAS:
Do contrário, ainda viveremos como os nossos pais, relembrando da canção de Belchior, esquecendo que o principal sentido da evolução é não permitir que se mantenham erros e equívocos de um tempo passado. É mais que fotos nas paredes e quadros de sentido é possibilidades de convivência.5
Fernanda Tribst é Bacharel pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada atuante na área de direito de família. Membro doIBDFAM
Referências
1 FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 49 ed. São Paulo: Global, 2004, p. 81.
2 TJRS, EI 596245324, Ac. 4º G. C. Civ., Rel. Des. SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, J. 11/04/1997, Revista Trimestral de Direito civil - RTDC 6: 191.
3 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direto civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 349.
4 FARIA, Cristiano Chaves de. A família da pós modernidade: a busca da dignidade perdida da pessoa humana. Revista de Direito Privado, nº 19, ano 5, Jul / Set. 2004. p. 65. 5 Op. cit. p 31.
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