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A natureza jurídica da relação homoerótica
Algumas causas, como as resistências sociais e psicológicas, decorrentes dos preconceitos largamente difundidos, até a bibliografia praticamente inexistente em português, impediram o desenvolvimento de discussões na área.
Este panorama se alterou a partir do projeto da chamada parceria civil, e com o fortalecimento de entidades e organizações não-governamentais que labutam pelos direitos civis e políticos de gays, lésbicas e travestis; e o enfraquecimento do discurso dos movimentos de esquerda sem bandeiras tradicionais (como a do socialismo), para adotar os da proteção da subjetividade e a liberdade comportamental. Além disso, a transformação dos padrões culturais acerca da masculinidade, da posição de homens e mulheres na sociedade - processo profundo e de repercussões imprevisíveis mas frutíferas - abriram espaço à vida erótica dissonante dos monolíticos referenciais da outrora intocada e inabalável visão do mundo heterossexual (1) .
Hoje são mais freqüentes as decisões sobre variados aspectos da homoafetividade, construindo-se repertórios que alimentam as demandas e que despertam estudos. São numerosas publicações, nas quais especialistas se debruçam sobre flagrantes destas uniões, o que contribui para a mudança do paradigma que sustentava o farisaísmo e a indiferença no manejo de tema relevante.
Uma das controvérsias diz respeito à partilha do patrimônio havido por homossexuais de vida comum, ora solvida nas regras do direito obrigacional, como se fora uma sociedade de fato.
Na linha do entendimento dominante, o parceiro tem direito a receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato com os requisitos do art.1.363 do Código Civil, aceitando-se uma mútua obrigação de combinar ânimos para lograr fim. Eis que a negativa da incidência de dita regra tão ampla e clara significa prevalecer princípio moral (respeitável) que recrimina o desvio de preferência sexual, desconhecendo a realidade que esta união, embora criticada, existe e produz efeito de natureza obrigacional e patrimonial que o Direito Civil comum abarca e regula.
O Direito, segundo a decisão, não regula sentimentos. Contudo, dispõe sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas ingressando no Direito de Família - como o matrimônio e, hoje, a união estável -, outras ficando à margem dele, contempladas no Direito das Obrigações, das Coisas, das Sucessões, mesmo no Direito Penal, quando a crise da relação chega ao paroxismo do crime, e assim por diante. (2)
A inclusão da discussão no direito obrigacional é iterativa, achando, alguns tribunais, que o concubinato de dois homens, como se casados fossem, é uma relação esdrúxula que até contrasta com a alegada sociedade de fato,(3) ou mesmo não gera direitos, embora a coabitação.(4)
O objetivo desta meditação é discutir a relação homossexual como entidade similar à união estável.
Costuma-se objetar que a relação homoerótica não se constitui em espécie de união estável, pois a regra constitucional e as Leis n. 8.971/94 e 9.278/96 exigem a diversidade de sexos.
Neste sentido, argumenta-se que a relação sexual entre duas pessoas capazes do mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relação homossexual voluntária, em si, não interessa ao Direito, em linha de princípio, já que a opção e a prática são aspectos do exercício do direito à intimidade, garantia constitucional de todo o indivíduo (art. 5º, X), escolha que não deve gerar qualquer discriminação, em vista do preceito da isonomia.
Sucede que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade e, mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os efeitos e natureza dela.
Nas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem sido, até então, a marca de um estigma, pois se relega à marginalidade aqueles que não têm suas preferências sexuais de acordo com determinados padrões de moralidade. O que acontece não apenas com a homo e heterossexualidade, mas para qualquer comportamento sexual anormal, como se isto pudesse ser controlado e colocado dentro de um padrão normal.(5)
É que o sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a atribuição de uma posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de titularidades que o sistema define, operando-se a exclusão quando se negam às pessoas ou situações as portas de entrada da moldura das titularidades de direitos e deveres.
Tal negativa, emergente de força preconceituosa dos valores culturais dominantes em cada época, alicerçam-se em juízo de valor depreciativo, historicamente atrasado e equivocado, mas este medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e afeto.(6)
A questão dos direitos dos casais do mesmo sexo tem sido debatida no mundo, e o argumento básico, em favor do tratamento igualitário, é no sentido de que as uniões homoeróticas devem ter os mesmos direitos que outros casais, ao demonstrar um compromisso público um para o outro, em desfrutar uma vida de família, a qual pode ou não incluir crianças, o que exige isonomia legal.
Afastada a possibilidade de emoldurar a união homoerótica como forma de casamento - o que não acha respaldo na doutrina e nos repertórios dos tribunais -, toca examiná-la como uma forma de comunidade familiar, aparentada com a união estável, o que, como sublinhado, encontra reação pela antinomia com a regra constitucional vigente (CF, art. 226, § 3º).
Todavia, a interpretação constitucional deve garantir uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo e de toda a ordem jurídica.(7)
O Direito Constitucional deve ser interpretado evitando-se contradições entre suas normas, sendo insustentável uma dualidade de constituições, cabendo ao intérprete procurar recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária da grundnorm.
Como conseqüência deste princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente imbricadas, não se podendo jamais tomar determinada regra isoladamente. A Constituição é o documento supremo de uma nação, estando as normas em igualdade de condições. Nenhuma pode se sobrepor à outra, para afastar seu cumprimento. Cada norma subsume-se e complementa-se com princípios constitucionais, neles procurando encontrar seu perfil último.(8)
O princípio da unidade da ordem jurídica considera a Constituição como o contexto superior das demais normas, devendo as leis e normas secundárias serem interpretadas em consonância com ela, configurando a perspectiva uma subdivisão da chamada interpretação sistemática.(9)
Como corolários desta unidade interna, mas também axiológica, a Constituição é uma integração dos diversos valores aspirados pelos diferentes segmentos da sociedade, através de uma fórmula político-ideológica de caráter democrático, devendo a interpretação ser aquela que mais contribua para a integração social (princípio do efeito integrador), como ainda que lhe confira maior eficácia, para prática e acatamento social (princípio da máxima efetividade).
Ou seja, a interpretação da Constituição deve atualizá-la com a vivência dos valores de parte da comunidade, de modo que os preceitos constitucionais obriguem as consciências (princípio da força normativa da Constituição).(10)
Em síntese, pode-se afirmar que a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica, não podendo separar-se da verdade concreta de seu tempo, operando sua eficácia somente tendo em conta dita realidade.
As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. É incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças.
Alinhadas as premissas de que as relações homoeróticas constituem realidade notória - a que o Direito deve atenção - e de que a interpretação da Constituição deva ser ativa (relevando a vida concreta e atual, sem perder de vista a unidade e eficácia das normas constitucionais), é que se pode reler a regra constitucional que trata da família, do casamento, da união estável e das uniões monoparentais, cuidando de sua vinculação com as uniões homossexuais.
O que corresponde a reputar o Direito, enquanto sistema aberto de normas, a uma incompletude completável, já que ele mesmo trás soluções para os casos que eventualmente deixa de regular.(11)
A Constituição afirma que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado e dispõe sobre a forma e gratuidade do casamento, os efeitos do casamento religioso, para depois reconhecer a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, ainda assim tida a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, e parágrafos).
Ora, desde logo se impõe aceitar que o constituinte quis apontar a existência de mais de uma entidade familiar, não depositando apenas na união matrimonializada e heterossexual a vassalagem de comunidade familiar, já que assim ainda admite a união estável e a família monoparental.
Portanto, tendo prescrito que o casamento e a união estável seriam constituídos por homem e mulher, deixou antever que a entidade familiar ainda podia ser formada por um homem (ou mulher) e seus descendentes, o que impele concluir que o texto não é taxativo ao conceituar como entidade familiar apenas os que descreve.
A Constituição não só possibilita, como requer que o legislador e o juiz, no procedimento hermenêutico resultante da interação entre o programa da norma (texto) e seu âmbito (realidade), concretizem o direito vigente, de molde a considerar os princípios democráticos e a inegável pluralidade de formas de vida amorosa, abrindo espaço para caracterização das uniões homossexuais como comunidades familiares, que não se caracterizam pelo vínculo matrimonial.(12)
Na ausência da proibição expressa ou de previsão positiva, postula-se a interpretação da Constituição de acordo com o cânone hermenêutico da “unidade da Constituição”, segundo o qual uma interpretação adequada do texto exige a consideração das demais normas, de modo que sejam evitadas conclusões contraditórias, pois sob o ponto do Direito de Família, a norma do § 3º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988 não exclui a união estável entre os homossexuais.
Para os tribunais, é possível o processamento e reconhecimento de união estável dos homossexuais ante os princípios insculpidos na Constituição Federal, que vedam qualquer discriminação.
Assim, ao dirimir a partição de bens entre homossexuais, aludiu-se que não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas, realidades ainda permeadas de preconceitos, mas que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária, pois nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas uniões de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, prestigiados os princípios da dignidade humana e da igualdade.(13)
Não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade - considerada a visão unitária e coerente da Constituição, com o uso da analogia e suporte nos princípios gerais do direito - ter-se a união homoerótica como forma de união estável, desde que se divisem, na relação, os pressupostos da notoriedade, da publicidade, da coabitação, da fidelidade, de sinais explícitos de uma verdadeira comunhão de afetos.
*Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Professor; Especialista em Ética e Bioética, Autor de Notas sobre o Agravo; Prazos no Processo Penal; A Lide como Categoria Comum do Processo.
1. RIOS, Roger Raupp. Direitos humanos, homossexualidade e uniões homossexuais. Direitos humanos, ética e direitos reprodutivos. Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, Porto Alegre, 1998, p. 130.
2. STJ, 4ª Turma, Resp. n 148897-MG, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.
3. TJRJ, APC 7355/99, 14ª Câmara Cível, j. 29/09/98; APC 1813/93, 1ª Câmara Cível, j. 14/09/93; APC 3.309/92, 8ª Câmara Cível, j. 24/11/92.
4. TAMG, APC 226.040-8, 2ª Câmara Cível.
5. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família. Uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1997, p. 43.
6. FACHIN, Luiz Edson. Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo. A nova família: problemas e perspectivas. Riode Janeiro: Renovar, 1997, p.114 passim.
7. MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p.79.
8. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p. 102-104.
9. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 223.
10. MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Op. cit., p. 79-80.
11. BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 56.
12. RIOS, Roger Raupp. Op. cit., p. 134.
13. TJRS, Sétima Câmara Cível, APC 70001388982, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 14/04/2001.
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