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A interação do afeto nas relações de família
Desde a primitividade o afeto está intimamente ligado ao sentido de família.
Nas primeiras noções de casamento através do rapto, quando violento, derivava para os institutos penais da sedução ou do estupro e quando admitido ou aceito, tínhamos a primeira noção ou fonte do casamento pelo utuus consensus, que nada mais era que a interação dos fatores atrativos e afetivos que resultavam na criação de mais uma família.
Tudo era levado por instinto dentro de uma pureza do direito natural e das qualidades inerentes do próprio ser humano, em que prevalecia a volição das partes em cujo interior havia a intenção afetiva da constituição de um animus contrahendi, sem qualquer conotação formal, dando-se vazão à sensibilidade dos instintos.
Essa união do homem com a mulher, visando a criação de uma família, difere socialmente da aproximação efêmera dos dois sexos por força da necessidade psicológica e ainda é diferente dessa união carnal, por constituir uma família natural para a troca de afetos e a procriação de filhos.
O alcance das partes é sublime, num envolvimento divino, sempre com aquela intenção de eternizar o amor através da vontade de perpetuação de uma vida coberta de permanente afeto.
Ferreira Coelho, em seus Comentários ao Código Civil Vigente, afirma, que ”não é a lei jurídica que determina o afeto dos dois entes que se unem para satisfazer o desejo irreprimível da aproximação corporal; outro poder dirige ou guia essa união, santificando. O Direito intervém somente para regular socialmente os efeitos humanos desta união, declarando as relações que surgem da constituição do ente social que se formou” (1929:46).
Até dentro de nossa cultura ibérica, influenciada pela religião e pelas normas romanas, temos a solenidade do ato social do noivado e posterior do matrimônio, quando marca o momento exato do “pedido”. O noivo se dirige ao pai de sua amada, para pedir-lhe “a mão de sua filha”, o que significa a intenção de se casar. O pai da noiva, por sua vez, também emocionado, admite, aceita o pedido, partindo as duas famílias para a etapa seguinte na fixação da data para as bodas e a sua social comemoração.
Quanta emoção de quem pede e de quem cede, envolvidos que estão numa grande e infinita sensibilidade de afetos trocados, lembrando-nos da traditio in manu da antiga Roma. Até mesmo Fustel de Coulanges, em sua clássica A Cidade Antiga, afirmava que, “em toda a história o casamento sempre foi um ato santificado”.
O casamento é o mais sublime de todos os atos jurídicos, por estar inserido na condição de um ato solene ad solemnitaten, ou seja, de todos, é o que necessita de maior formalidade para sua validade no contexto social.
Dois seres se encontram no universo e, por fatores instintivos e psíquicos, passam a nutrir uma atração afetiva recíproca, resolvem externar para a sociedade que habitam um sentido repleto de afeição, para justificar o marco inicial de um relacionamento que, em poucos meses ou anos, se transformará no ato constitutivo da família, através da sacramentação de um casamento.
Uma áurea envolve o ato formal do matrimônio, numa affectio maritalis, que subjetivamente se colhe o animus uxoris de ambos, envolvidos que estão numa felicidade, carinho, amor, atração física, imantando as partes numa integração em que os aspectos materiais não passam ou não deveriam passar entre os nubentes.
Mas o Estado, como interventor na família, estabelece regras e condições não somente para a validade do matrimônio, como também do reconhecimento de outra forma constitutiva de família, como a união estável, iniciada como o primeiro, mas conduzida pelo instinto e sem os ritos deste, embora subjetivamente sempre se evidenciando a mesma affectio no envolvimento das partes.
É interessante que a affectio se faz presente de formas distintas antes, durante e após o casamento.
Antes, encontramos o lado frio, calculista e material que antecede poucos momentos ou dias da solenidade do casamento, mas que irá se integrar num ato só, pois não existe e nem tem validade um pacto antenupcial sem estar untado e unificado ao ato do casamento.
Portanto, sentimos esse vento frio soprando aspectos materiais antes do ato jurídico formal do casamento, momentos que um contrato será solenemente realizado ad substantiam, mas posteriormente integrado ad solemnitaten na formalização do casamento.
É interessante o entendimento de Carvalho Santos, em seu Código Civil Interpretado, quando fala da intimidade, vinculação dos dois atos jurídicos, ditos “geminados”, afirmando: “trata-se de matéria intimamente ligada ao próprio casamento, do qual é acessório, estando modernamente aceito pela maioria dos tratadistas que mesmo o pacto antenupcial tem esse caráter acessório, participando um pouco da natureza do casamento, diferindo, por outro lado, por muitos dos seus efeitos, dos contratos ordinários.”
A affectio irá se manifestar, subjetivamente, pelo silêncio ou pela exteriorização formal de vontades, transcritas de forma rígida, sob a integral tutela do Estado, em que a opção contida naquela volição irá ser traduzida formalmente no ato notarial, com a livre escolha do regime de bens que irá nortear o casamento dos afetivamente envolvidos por uma paixão incontida visando quase em seguida a convolação do respectivo ato matrimonial.
Portanto, aquele ato solene ad solemnitatem possui sutilezas originais na sua forma constitutiva anterior, mas integra-se, posteriormente, essa fase grosseiramente material, para a satisfação do próprio estado, num envolvimento sublime, num ato só, integrando dois seres enlaçados pelo amor, pelo afeto, pelo carinho, objetivando a criação da família.
Até caladas as partes, estarão com o silêncio, pactuando pelo chamado regime legal, sem a necessidade formal de ato notarial, envolvendo a affectio negotialis a constituição do regime da comunhão parcial de bens.
Portanto, não existe e não existirá pacto de forma autônoma sem o alcance erga omnes, sem sua fusão no ato jurídico do casamento, quando constará do próprio termo o regime adotado pelos outrora nubentes após a materialização oral do “sim”, transformados em marido e mulher, chefes de uma sociedade conjugal, obrigados que estão entre outros ao dever da “mútua assistência”.
Temos, assim, evidenciada a affectio societatis no contrato constitutivo das regras que vão administrar a parte material da família.
O casamento, como ato formal constitutivo da família, sempre foi historicamente tão importante que desde a primitividade era realizado pelo chefe da tribo, o pajé, a autoridade religiosa, em suma, a importância do ato jurídico era sumamente graduada que somente as pessoas imbuídas de notório poder, força, carisma ou com munus especiais concedidos pelos dirigentes políticos e religiosos é que se revestiam das qualidades para presidir o ato jurídico solene do casamento.
Sempre houve a convergência triangular de três oralidades. A das duas partes intimamente ligadas pelo afeto, diante da autoridade, expressando de forma livre a volição de contrair núpcias e a da autoridade civil ou religiosa, cuja voz deveria ecoar, alcançando as mais longínquas regiões territoriais daquela jurisdição, para que toda a comunidade pudesse ter noção de que os dois estavam se casando.
O conceito mais usual desse ato jurídico consiste na formalização do vínculo jurídico entre o homem e a mulher, para a constituição da família.
Mesmo com a intervenção do Estado no ditame dos deveres comuns, o afeto se integra e sem ele não existiria o elemento fundamental da intenção volitiva para a convolação do matrimônio.
Em suma, o casamento, analisado em suas nuances prévias, no momento exato de sua celebração e durante a sua vigência, possui a evidência da necessidade permanente da interação afetiva, pois ela bem cultivada servirá como elemento incandescente e estimulador, envolvendo o carinho e o amor como elemento mantenedor de uma família saudável e estável para o bom desenvolvimento de uma nação.
*Advogado de Família; Diretor Internacional do IBDFAM; Governador da Academia Internacional de Advogados de Família; Membro da Sociedade Internacional de Direito de Família.
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