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Introdução
A recente decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, deixando de reconhecer pos mortem relação afetiva paralela ao casamento, tem sido recebida com euforia pela comunidade jurídica quase como se a justiça tivesse sido feita e a moralidade restaurada.
Na decisão, ficou registrado que o falecido, mesmo tendo convivido com a concubina há trinta anos e com ela tido e criado quatro filhos, não teria manifestado o interesse de com ela constituir família, já que não teria se afastado da primeira mulher.
Com a devida vênia, acreditamos que o decisum segue na contramão do moderno Direito das Famílias, cuja construção tem se pautado na dignidade, solidariedade e afetividade, contra tradicionalismos e preconceitos, já que sua luta consiste em afastar injustiças cometidas em nome da culpa e do moralismo.
1. Versos e reversos
Em primeiro lugar, cabe a concordância com a decisão quando menciona que o relacionamento entre o falecido e a concubina não se constitui união estável. De fato, para que esta fosse caracterizada, cumpre observar requisitos como convivência pública, lealdade, guarda comum dos filhos, desimpedimento do casal para permitir uma eventual conversão em casamento.
A relação em tela, portanto, se enquadra no concubinato, conceituado pelo artigo 1727 do Código Civil como "as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar".
E, na qualidade de concubinato, é possível, sim, vislumbrar-se o interesse de constituir família.
Importa deixar claro que em nenhum momento, seja no Código Civil, seja na Constituição Federal, é proibido o concubinato ou lhe é atribuída alguma pecha.
O artigo 1708 do diploma civil, inclusive, prevê que cessa o dever de prestar alimentos se o credor contrair casamento, união estável ou concubinato.
O artigo 1642, por seu turno, prevê no inciso V a reivindicação dos bens em comum doados ou transferidos pelo cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens não tenham sido adquiridos pelo esforço em comum do cônjuge e do concubino.
Apesar do concubinato não ter sido arrolado no artigo 226 da Constituição pátria como entidade familiar, já é pacífico na doutrina que o rol ali previsto não é taxativo, uma vez que a Magna Carta abraçou princípios como o do eudemonismo e da pluralidade familiar.
Nem o fato de ser simultâneo afasta o seu reconhecimento. A partir da nova Constituição, junto ao princípio da afetividade e da liberdade, ganhou força a simultaneidade familiar.
Daí aflora o conceito de famílias reconstituídas, em que surgem diferentes vínculos familiares que escapam ao tradicional formato de família.
O homem que se divorcia e constitui nova união passa a ter simultaneamente os vínculos familiares com a nova esposa, novos filhos e também com os filhos da anterior relação. O avô que convive afetuosamente com o neto, mesmo que este não seja reconhecido pelo pai, possui vínculos simultâneos com seu próprio filho e seu neto.
Interessante rememorar que, até algumas décadas atrás, a criança que nascesse fora de um casamento, mesmo que os pais fossem solteiros, passaria o resto da vida sendo considerada bastarda, ilegítima, inferior, principalmente se fruto de um relacionamento extraconjugal.
Hoje em dia, porém, ninguém cogita diferenciar o filho nascido fora ou dentro do matrimônio. Ambos são iguais em tratamento e direitos, mas essa igualdade foi conquistada a duras penas, depois de muito sofrimento, superando questões morais e religiosas.
Acreditamos que essa mesma batalha está sendo travada pelas relações simultâneas conjugais, e por certo também prevalecerão sobre o preconceito.
2. Universos paralelos
Impende aqui abrirmos um parêntese para frisar que nem toda relação paralela tem o condão de se constituir uma entidade familiar.
Carlos Pianovski Ruzyk leciona que o Direito de Família da Constituição de 1988 consiste em um sistema poroso de princípios e normais gerais a que se submetem vários institutos que, logrando perpassarem por essa trama, passam a pertencer ao arcabouço normativo do Direito (2005, 06).
Assim, temos que somente aqueles relacionamentos paralelos que não conflitarem com os princípios basilares do Direito de Família, mediante uma interpretação sistêmica, poderão ser por ele resguardados.
Nesse contexto, segundo estudo anterior de nossa autoria (Relações simultâneas conjugais: o lugar da Outra no Direito de Família. São Luís: Café e Lápis Editora, 2010), podemos idealizar três hipóteses de relações simultâneas conjugais, de acordo com a forma de sua constituição.
Se a relação paralela se forma clandestinamente à primeira relação, e somente o segundo núcleo tem conhecimento do primeiro, trata-se de uma relação simultânea clandestina de má-fé, que, como veremos, não merece guarida pelo Direito de Família.
Se a relação paralela se forma clandestinamente à primeira relação, mas nenhum dos núcleos tem conhecimento do outro, temos uma relação simultânea clandestina de boa-fé, que merece ser protegida pelas regras do Direito Familiar.
Já se a relação paralela se forma publicamente à primeira relação, e todos os núcleos têm ciência uns dos outros, em aparente tolerância, estamos diante de uma relação simultânea pública de boa-fé.
3. Necessárias distinções
Na primeira hipótese, a clandestinidade da segunda relação retira desta qualquer pretensão de natureza familiar, pois um dos elementos primordiais de toda relação conjugal, seja casamento, seja união estável, é a ostensividade, a publicidade dessa relação.
Na lição de Rukyz (2005, 184), a publicidade é caráter inerente à natureza de família:
A ostensibilidade pode ser compreendida sob a perspectiva da ausência da clandestinidade. A relação de conjugalidade, ainda que estável, mas mantida às ocultas, sem ampla recognoscibilidade pública, não se afigura como de natureza familiar. Trata-se de relacionamento sexual, que pode ser fundado no afeto, mas que não extrapola o restrito espaço dos sujeitos que o compõem, não se explicitando como relação afetiva perante o meio social. Os que mantêm conjugalidade sob a égide da clandestinidade não demandam reconhecimento público de seu afeto, buscando, ao contrário, ocultar qualquer manifestação exterior da relação por eles encetada. Enclausuram-se na cumplicidade clandestina do vínculo entre o "eu" e o "outro", encoberta por uma aparência social que lhe seja apta a subtrair, se possível, até mesmo o espectro da suspeita. Não se trata, como se vê, de relação apta a, em princípio, configurar entidade familiar e, por conseguinte, não ingressa como tal na porosidade principiológica do sistema jurídico. Eventual eficácia jurídica que se lhe possa atribuir não dirá respeito, necessariamente, aos efeitos inerentes a uma situação de natureza familiar.
A relação clandestina, portanto, não configura uma família porque o interesse entre o casal é de mera satisfação sexual mútua, sem a assunção de compromissos perante a sociedade. Pode, inclusive, ser constituída uma relação de dependência econômica entre os pares, e até mesmo ser dada uma publicidade mínima à relação, mas tão-somente com o intuito de desfazer suspeitas sobre a ilicitude do relacionamento perante um determinado círculo social, que geralmente não se imiscui com o círculo social da relação conjugal original.
No tocante à ciência do terceiro envolvido sobre a primeira relação conjugal, temos a escolha consciente de participar de um relacionamento clandestino com uma pessoa impedida para tanto, e a aceitação do risco de ferir a dignidade do membro enganado.
Esta ciência, portanto, é análoga a uma aceitação contratual tácita: aquele relacionamento será regrado pelas normas obrigacionais, e não familiares, posto que escapa aos requisitos mínimos para a constituição de uma família. Trata-se, quando muito, de uma sociedade de fato, com efeitos meramente patrimoniais.
Importa rememorar que, atualmente, com todas as opções legais para a dissolução de uma união - mediante a separação de fato, separação judicial e divórcio - além da plena aceitação social sobre a dissolução deste vínculo, não cabe mais tolerar a idéia da impossibilidade de rompimento da relação original, a permitir uma simultaneidade clandestina.
Assim sendo, aquele que constitui uma relação simultânea em caráter clandestino sem a coragem moral de romper o primeiro vínculo está notoriamente agindo com má-fé contra o primeiro cônjuge, assim como age de má-fé aquele que aceita participar da relação clandestina tendo ciência de que seu par já possui uma família:
Isso implica dizer que o direito pode não proteger aquele que, a pretexto da satisfação egoística do próprio desejo, aniquila a dignidade do outro, mediante um proceder iníquo e desleal, que frustra as expectativas de coexistência afetiva nutridas por conta da relação de conjugalidade entre eles mantida. Do mesmo modo, aquele que, ciente de que está a manter relação de conjugalidade com pessoa que já compõe um núcleo familiar anterior, procede de modo a desprezar qualquer dever ético perante os componentes da primeira entidade familiar, pode não ter plenamente atendidas suas expectativas acerca de eventual chancela jurídica da relação por ele mantida, se essa eficácia vier a intervir na esfera jurídica dos membros do outro núcleo familiar (RUZYK: 2005, 187-8).
Na segunda hipótese, apesar da relação ser também clandestina, temos que esta clandestinidade é firmada somente pela conduta desviada do membro em comum, que oculta de ambos os pares a situação de simultaneidade.
Nesta situação, os envolvidos constituem seus relacionamentos de boa-fé, depositando ambos no membro em comum a mesma confiança e possuindo as mesmas expectativas de exclusividade.
O rigor da clandestinidade, portanto, é quebrado pela boa-fé do terceiro envolvido de que está relacionando-se com pessoa desimpedida, pelo que existe a chance de, presentes os demais requisitos mínimos, ser esta relação considerada uma família:
Com efeito, não seria lícito supor que alguém teria o dever de, diante de uma situação fática específica, realizar dada conduta, comissiva ou omissiva, quando não tem ciência de que está inserido na referida situação. Por conseguinte, quando o companheiro daquele que se encontra em situação de simultaneidade familiar não tem conhecimento acerca da existência de um outro núcleo, a ele simultâneo e anterior, não será logicamente possível supor, de sua parte, a violação de deveres inerentes à boa-fé. O estado de boa-fé (Gutten Glaube) faz supor que sua conduta não está a violar os deveres impostos pelo princípio da boa fé (Treu und Glauben). (RUZYK: 2005, 189)
Na espécie, o membro da relação paralela constitui, em relação ao membro em comum, uma união estável ou um casamento putativo, merecendo, portanto, ter reconhecidos seus direitos no campo familiar, caso o relacionamento tenha, de fato e de direito, natureza de família.
Na lição de Silvio Rodrigues (2004, 109), casamento putativo é aquele reputado ser o que não é; é uma ficção da lei que busca homenagear a boa-fé dos contraentes ou do cônjuge inocente, concedendo ao casamento nulo ou anulável os efeitos do casamento válido até a data da sentença que o invalidou, nos termos do artigo 1.561 do Código Civil pátrio.
No caso em tela, em que apenas um dos cônjuges estava de boa-fé, este pode ou não invocar a existência do casamento para se beneficiar dos efeitos civis dele derivados, como o direito à pensão, acordo nupcial, utilização do apelido do consorte, enquanto que ao cônjuge de má-fé o casamento não produz nenhum efeito benéfico, e para ele decorrem todos os ônus (RODRIGUES: 2004, 114).
No tocante à união estável putativa, esta não é prevista expressamente em lei, mas já tem sido admitida na melhor doutrina e jurisprudência:
Os mesmos motivos que justificam a solução no campo do direito matrimonial inspiram a união estável. A tutela do convivente de boa-fé é imperativo que não pode ser abandonado. [...] Obviamente, o que determina a putatividade é a ignorância no momento em que se estabelece a união. É possível que haja até mesmo um contrato escrito. Sua ausência, contudo, não afasta o direito do convivente de boa-fé, embora seja dele o ônus da prova. Se vem a saber da realidade tempos depois, nem por isso ficam prejudicados os efeitos que lhe sejam favoráveis. [...] É bem verdade que não pode ser prejudicada a esposa, porque o casamento existe. Por isso mesmo na partilha dos bens hão de ser respeitados os direitos em função do regime patrimonial de bens, inclusive no campo sucessório. O patrimônio a ser partilhado é apenas aquele construído durante a união estável. O anterior beneficia apenas o cônjuge (VIANA: 1999, 91).
Por fim, na última hipótese, a publicidade de ambos os relacionamentos permite presumir a boa-fé do membro em comum na constituição das relações conjugais. Isto porque cada membro possui, entre si, os deveres éticos de respeito e proteção tanto à esfera moral quanto patrimonial (RUZYK: 2005, 193).
Entre estes deveres inclui-se a transparência, assim entendida como o oferecimento da oportunidade de escolha a cada membro em aceitar ou não a situação de conjugalidade simultânea:
Entre esses deveres, pode estar o de tornar ostensiva a nova relação em face do núcleo original, não permitindo que os componentes daquela primeira entidade familiar incorram em engano, que pode culminar em séria violação de sua dignidade. Trata-se do atendimento de um dever de transparência, de uma imposição ética de se agir com lealdade em relação às legítimas expectativas que o outro possui acerca da comunhão de vida instituída pela família, que pode implicar, como é evidente, a pretensão de mútua exclusividade no relacionamento sexual entre os cônjuges. O atendimento do dever de transparência pode permitir que uma das conjugalidades seja rompida quando se toma conhecimento do relacionamento simultâneo, evitando-se, de tal modo, que se mantenha uma vida em comum fundada no engano, o que, por certo, se coloca como aviltante à dignidade da pessoa humana (RUZYK: 2005, 193).
Esta ostensibilidade, por conseguinte, permite não só ao membro da relação anterior como ao membro da nova relação a chance de adotar uma postura bem definida sobre esta situação, evitando que um deles ou até mesmo ambos sejam enganados pelo membro em comum.
Pablo Stolze Gagliano (2008), apresentando uma justificativa para a configuração desta simultaneidade, traz ao cenário jurídico a teoria psicológica do poliamor, ou poliamorismo, que "admite a possibilidade de co-existirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta".
Baseado nesta teoria, referido autor defende que:
Por mais que este não seja o padrão comportamental da nossa vida afetiva, trata-se de uma realidade existente, e que culmina por mitigar, pela atuação da vontade dos próprios atores da relação, o dever da fidelidade. [...] Assim, podemos concluir que, posto a fidelidade seja consagrada como um valor juridicamente tutelado, não se trata de um aspecto comportamental absoluto e inalterável pela vontade das partes.
O cerne da questão subsiste em verificar se existe conivência com esta situação de conjugalidades simultâneas, o que permite presumir, portanto, que não foi violada a dignidade de nenhum dos membros, pois, caso contrário, a duplicidade não seria aceita.
Nesse sentido é a lição de Ruzyk (2005, 192):
O dever de fidelidade inerente ao casamento pode ser lido à luz do princípio da boa-fé objetiva, não se resumindo a uma proibição absoluta de relacionamentos sexuais extraconjugais. Pode ser sustentável, até mesmo, que não há violação do dever de fidelidade, decorrente de boa-fé, quando os cônjuges mantêm, de comum acordo, um "casamento aberto". Daí emergir, inclusive, dessa leitura do dever de fidelidade, a viabilidade das relações de simultaneidade, de conjugalidades não clandestinas, constituírem famílias simultâneas, desde que permeadas pelo atendimento recíproco, entre todos os componentes, do princípio da boa-fé objetiva.
O que se pode inferir, portanto, é que a aceitabilidade de todos os membros envolvidos sobre a simultaneidade das relações pode permitir a constituição de famílias simultâneas. Não parcerias ou sociedades de fato, mas entidades familiares propriamente ditas, com todos os direitos advindos desta relação:
[...] se a ostensibilidade é plena, estendendo-se a todos os componentes de ambas as entidades familiares - sobretudo os que mantêm relação de conjugalidade com o componente comum - e mesmo assim ambas as famílias se mantém íntegras, sem o rompimento dos vínculos de coexistência afetiva, pode ser viável concluir, segundo as peculiaridades que se apresentarem no caso concreto à luz dos demais deveres inerentes à boa-fé, que a simultaneidade não seria desleal, não havendo violação de deveres de respeito à confiança do outro e, sobretudo, de proteção da dignidade dos componentes de ambas as famílias. A simultaneidade atenderia, assim, em tese, às pretensões de felicidade coexistencial de todos os componentes das famílias em tela (RUZYK: 2005, 1994).
Em suma, por estas breves linhas, busca-se demonstrar a possibilidade jurídica do reconhecimento de relações paralelas a um casamento ou união estável, na condição também de entidades familiares.
Bruna Barbieri Waquim é sócia do IBDFAM, bacharel em Direito e subchefe da Assessoria Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão
REFERÊNCIAS
GAGLIANO, Pablo Stolze. Direitos da(o) amante:. na teoria e na prática (dos tribunais). Jus Navigandi, Teresina, v. 12, n. 1841, 16 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11500>. Acesso em: 09 mai. 2010.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. rev. e atual. por Francisco José Cahali, de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2004. v. 6
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005
VIANA, Marco Aurélio S. Da união estável. São Paulo: Saraiva, 1999.
WAQUIM, Bruna Barbieri. Relações Simultâneas Conjugais: o lugar da Outra no Direito de Família. São Luís: Café e Lápis, 2010.
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