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Reflexões: Guarda de filhos: A vitória do afeto
1.Introdução. O Direito da Família
Uma das simbioses do direito de família contemporâneo, foi constatar, apesar da obviedade que o afeto que decorre do amor, constitue a base e fundamento para sustentação do relacionamento que edifica as relações homem/mulher e destes com os filhos. Para alguns esta colocação pode soar o óbvio. Acontece que o direito de família, parte do direito civil, sempre foi construído a partir do positivismo jurídico em que se valorizou muito a patrimonialização das relações entre os seres humanos, esquecendo-se muitas vezes do lado humano.[1] Um olhar humano, fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana insculpido na Constituição Federal provoca uma ruptura com o tradicional sistema patriarcal e deita novas raízes para o direito de família e da própria família em si. O afeto constrói o relacionamento e, portanto edifica a familia, por qualquer de suas formas. Os filhos, frutos desta relação, são convidados a participar da vida. A família nuclear ( pais e filhos ), base da sociedade, deve cumprir seu papel de promover a educação das crianças, o crescimento e o aperfeiçoamento moral e social de seus integrantes, eudemonista portanto. Os pais devem formar uma só unidade construída e fundada no afeto. Pais e filhos devem comungar, pela troca da afetividade, do interesse comum de estarem todos, crescendo e se desenvolvendo, na incessante busca do ideal maior de felicidade. Lar, um espaço privado de crescimento e desenvolvimento. Lar, um espaço de fraternidade. Lar, um espaço de construção. Busca da realização dos interesses afetivos e existenciais. O desenho de uma nova família, mais humana.
2. A crise do Desamor. A derrota dos pais. Quem resolve. A busca do formal.
As vezes, e aos poucos o desamor aparece e o amor se torna liquido no dizer de Bauman, tudo já prenunciado pelo nosso poetinha Vinicius: "que seja infinito enquanto dure". Os conflitos surgem. O amor cede lugar ao ódio. As agressões tomam o lugar do diálogo. Os filhos, embora percebam, nem sempre conseguem dimensionar a exata proporção do que está a acontecer. Tornam-se o objeto do conflito. Intermináveis querelas que só o tempo desvanece, com seqüelas emocionais profundas. É o afeto que se encerra.
E ambos, os separandos, vão ao Judiciário expor as suas mazelas, dizer que não mais se amam, acreditando que encontrarão, no formal, amparo para a solução dos seus conflitos.
O Judiciário, instância do acerto, no maior das vezes não está estruturado e preparado para lidar com o ser humano. Dita regras: cumpra-se a lei. A Cesar o que é de Cesar. Um ato, um comando do Juiz, põe fim ao litígio. Desquite ou Divórcio. Dissolução de União Estável. Tudo isto implica em separação de corpos, partilha de bens, pensão, guarda de filhos e outros adminículos. Enfim o Judiciário ao dar o veredicto, pondo fim ao litígio, crê ter cumprido seu papel de ser o espaço que resolveu o problema.
A Ordem Jurídica, regulamentadora das condutas humanas foi aplicada ao caso concreto. Os operadores do direito, inclusive nós os advogados, cremos que obtivemos vitórias. Perguntas remanescem.
Será que realmente cessaram os conflitos ? Será que acabaram os problemas ? Quem ganhou ? Perguntas sem respostas adequadas.
Na verdade isso raramente ocorre. Todos perdem.
A lei em regra, desfaz o vínculo jurídico e dita regras, mas não tem a capacidade e alcance para resolver os conflitos intersubjetivos que ainda permanecem ligando homem e mulher. Está além da lei esta possibilidade.
Desfaz-se o ninho e permanece o nó. O nó, nem sempre se desata. O ódio permanece. Os ressentimentos exsurgem e as agressões, sejam manifestas ou subliminares, continuam. Os conflitos se reproduzem.
3. A superação da crise. A busca do encontro. A família.
A questão da guarda dos filhos, constitui ponto relevante e dos mais graves, que permanecem após o desfazimento do relacionamento de homem e mulher e se torna hoje, centro de uma importante discussão do Direito de Familia.
Afinal a decisão Judicial, que em regra, atribui a singela guarda do filho, a mãe e as vezes também ao pai, nem sempre está calcada no princípio constitucional que determina "o melhor interesse da criança". Decide-se até com o apoio do Serviço Social, mas, atribuindo-se a um ou ao outro ou pura e simplesmente fazem o que a prática tradicional determina: qual seja, a guarda exclusiva, nem sempre a melhor solução. Não que ela seja totalmente equivocada, mas sim, que existe uma outra e nova alternativa.
A questão principal que queremos enfocar é que: apesar da separação, a familia não deixa de existir, enquanto entidade promotora do desenvolvimento psicossocial de todos que a integram. Vale dizer: Apesar da separação, os filhos necessitam de assistência fisíca e espiritual, tanto do pai quanto da mãe. A Família é perene, duradoura. O casamento, este sim, pode ser transitório e efêmero.
A maioria dos conflitos levados ao Judiciário para deliberar com quem fica com a guarda dos filhos, nem sempre são solucionados pela visão macro do problema, mas sim, por visões restritas, míopes e técnicas.
Não basta descobrir quem tem razão ou quem tem culpa. Mas sim, as razões pelos quais os dois brigam pela posse dos filhos. Afora os casos excepcionais de doença mental grave de qualquer dos pais ou de conduta efetivamente desabonadora de qualquer dos cônjuges, verificamos na verdade, uma maioria de conflitos construídos apenas pelo ressentimento, pela agressão e pelo não desate do nó que uniu o casal. A frustração do projeto de vida remanesce e quem sofre são os filhos.
4. Guarda compartilhada. O afeto compartilhado. Uma tentativa.
A guarda compartilhada busca solucionar essa questão em relação aos filhos. E o que vem a ser essa guarda compartilhada? Em apertada síntese, é aquela segundo a doutrina, em que "pais e mães dividem a responsabilidade legal sobre os filhos ao mesmo tempo e compartilham obrigações pelas decisões importantes relativas as crianças".
É evidente que, para a adoção deste procedimento de guarda compartilhada, que no Brasil , dá seus primeiros passos, torna-se necessária não só sua discussão mas sobretudo coragem do Poder Judiciário de não resistir a sua implantação, que apesar de ausência de texto expresso de lei, encontra seu fundamento no princípio constitucional do melhor interesse da criança e no princípio da dignidade da pessoa humana.
A doutrina, afora as peculiaridades específicas de cada caso, aponta algumas pré condições para que ela possa ser bem sucedida. E essas condições dizem respeito a capacidade dos genitores:
- - transmitir confiança e respeito ao outro genitor
- - direcionar seu comportamento sobre o bem estar da criança e não considera-la como sua posse
- - estar disposto a fazer concessões
- - ser capaz de falar com o ex-cônjuge, pelo menos, no que diz respeito a criança
- - reconhecer a aceitar as diferenças entre os genitores[3]
Evidentemente que a implantação e a aceitação deste pacto pelo Poder Judiciário, há que se fazer em momento adequado, principalmente quando se percebe por parte dos pais uma manifesta vontade neste sentido, quando se constata nos pais uma real preocupação com o desenvolvimento emocional e fisíco dos filhos . Quando, os mesmos, devotam a seus filhos um ato de amor. Devem os pais, superar os seus conflitos, e em comum buscar o interesse maior dos filhos, apesar de separados.
5. A interdisciplinariedade. O direito em aberto. Um olhar renovador.
Os operadores do direito, inclusive o Judiciário, não podem agir sozinhos nesta situação . A interdisplinariedade com a psicologia, a psicanálise e a assistente social são sumamente importantes para que o processo de regulamentação da guarda compartilhada possa ser aplicada. Mas, para isso, todos os operadores do direito terão de depor as armas da letra fria de nossos Códigos e levantar os princípios maiores e dentre eles o do direito a dignidade da pessoa humana. A atuação das equipes multidisciplinares são essenciais para que se decidam questões como estas. É neste aspecto que, a psicologia e psicanálise, na ajuda da resolução dos conflitos entre os pais, podem efetivamente contribuir em muito com o direito.
6. CONCLUSÃO
Pais e filhos não podem ser apenas parte de um processo legal, formal. Precisam e devem, antes de tudo, ser considerados como seres humanos. Os Tribunais devem deixar de ser o depósito dos lixos da miséria humana e ser um espaço, onde a lei seja aplicada no sentido de buscar a transformação da sociedade e a preocupação com o ser humano, centro dessas mudanças. Mas, isto só é possível se estivermos dispostos a quebrarmos os paradigmas da concepção dogmática de nosso Código Civil, do conservadorismo e da hipocrisia de nossa sociedade fruto do positivismo jurídico que permeou o Século XX, ainda não superada, e trocarmos por uma visão humanista, voltada para o verdadeiro aperfeiçoamento do homem e conseqüentemente da família.
Julio Cesar randão é advogado, mestre em Direito e Teoria do Estado e ex-conselheiro da OAB-SP
[1] Neste rumo Guilherme Calmon Nogueira da Gama: " Verifica-se uma completa reformulação do conceito de familia atual. Não propriamente no Brasil, mas como um fenômeno mundial. Na maior parte dos cantos do planeta, verifica-se que o modelo de família tradicional - aquele que vigorava nos moldes greco-latinos, posteriormente cristão - vem perdendo terreno para o aparecimento de um nova família." ( O Companheirismo - Um espécie de Família, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,2001, p. 89)
[2] BRUNO, Denise Duarte: GUARDA COMPARTILHADA , artigo publicado na Revista de Direito de Familia , vol. 12 , Ed. Síntese, Rio Grande do Sul, 2002 , pág. 29
[3] ob. cit. pág. 36
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