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A Possibilidade de Prestação de Contas dos Alimentos na Perspectiva da Proteção Integral Infanto-juvenil
"Mas se quiseres tuas contas acertar
Pra ficar livre de minha maldade
Cobra de mim o que me tens a pagar
E eu te darei o fim da eternidade."
(Rita Lee)
1. Colocação do problema
Conflito bastante comum no cotidiano forense diz respeito ao interesse que o genitor-alimentante tem de fiscalizar e acompanhar os gastos com o seu filho-alimentando incapaz que se encontra sob a guarda do outro genitor.
Motivações de diferentes índoles podem levar aquele que presta alimentos ao filho cuja guarda não detém a se preocupar com os gastos da criança ou do adolescente. A verificação do atendimento integral das necessidades do menor; o desequilíbrio financeiro das despesas, que pode implicar em sacrifício de determinados bens relevantes; o excesso de gastos com supérfluos; enfim, tudo isso pode gerar uma preocupação com o destino da verba alimentícia paga mensalmente.
Por força de entendimento (majoritário) doutrinário 1 e jurisprudencial 2 histórico, tem prevalecido o entendimento de que, considerado o caráter irrepetível da obrigação alimentícia e a falta de previsão expressa em lei, não seria admissível a propositura de uma ação de prestação de contas pelo alimentante, de modo a materializar, concretamente, a fiscalização que se pretenda exercer dos interesses de filho menor alimentando.
Venia maxima permissa, não é a melhor solução.
Diversos argumentos e ponderações se unem para justificar o manejo da ação de prestação de contas pelo genitor-alimentante, que não detém a guarda, com o propósito de fiscalizar os gastos com o alimentando, garantindo o império da proteção integral da criança e do adolescente.
Seja pelo prisma do direito material, seja pela ótica do direito processual, a possibilidade de utilização da via processual da prestação de contas pelo alimentante exsurge como conclusão inexorável. Veja-se minudentemente.
2. A proteção integral infanto-juvenil como instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana (a criança e o adolescente em perspectiva civil-constitucional)
Entrelaçada a feição da família com o retrato da própria sociedade, consideradas as circunstâncias de tempo e lugar, imperativa se faz uma compreensão contemporânea, atual, da entidade familiar, considerados os avanços técnico-científicos e a natural evolução filosófica do homem.
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade pós-moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário substancialmente e desmatrimonializado (pluralizado). O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias à afirmação da dignidade humana, regido o seu núcleo duro pelo afeto, como mola propulsora.
Abandona-se, assim, um caráter institucionalista, matrimonializado, para compreender a família como verdadeiro instrumento de proteção da pessoa humana que a compõe. Isto é, a ratio essendi do Direito de Família não é a proteção das instituições, mas do próprio ser humano e de sua integridade física e psíquica, de sua liberdade e de seus pressupostos básicos elementares (mínimo existencial). A família, por conseguinte, existe em razão de seus componentes e não estes em função daquela, valorizando, de forma definitiva e inescondível, a pessoa humana.
É a busca da dignidade humana, sobrepujando valores meramente patrimoniais ou institucionais. 3
Aliás, eleito como princípio fundamental da República, a dignidade da pessoa humana modela uma nova feição da família, garantindo proteção isonômica (igualdade substancial, que significa tratar desigualmente aquele que reclama proteção diferenciada) a todos os seus membros. Em concreto, implica em afirmar uma tutela jurídica diferenciada para a criança e o adolescente, a quem deve ser dispensada pela família, pela sociedade e pelo Estado, proteção integral e prioridade absoluta, como reza o art. 227 da CR. 4
Harmonizando-se com a lata compreensão da dignidade humana e com o caráter garantista da Lex Mater, a proteção integral implica na aplicação das garantias fundamentais constitucionais às crianças e adolescentes, que deixam de ser objeto, elevados à altitude de sujeito especial de direitos, particularmente do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227, caput, CF).
A proteção integral serve, assim, como instrumento vinculante de todo o tecido infraconstitucional, impondo ao jurista compreender toda e qualquer situação concreta de acordo com o que o melhor interesse da criança e adolescente recomendar. 5
Em cada caso concreto, exige-se a construção de soluções derivadas do melhor interesse infanto-juvenil, oxigenando clássicos institutos jurídicos (como a guarda, a filiação e, é claro, o poder familiar e os alimentos). Todo e qualquer instituto concernente a interesse de criança ou adolescente precisa estar sintonizado na freqüência da proteção integral constitucional, pena de incompatibilidade com o sistema constitucional. 6 Seguramente por isso, Andréa Rodrigues Amim adverte que, bem delineada a proteção integral no sistema jurídico constitucional, doravante, "o desafio é torná-la real, efetiva, palpável. A tarefa não é simples. Exige conhecimento aprofundado na nova ordem, sem esquecer as lições e experiências do passado. Além disso, e principalmente, exige um comprometimento de todos os agentes - Judiciário, Ministério Público, Executivo, técnicos, sociedade civil, família - em querer mudar e adequar o cotidiano infanto-juvenil a um sistema garantista". 7
Ora, da aplicação desse vetor constitucional ao âmbito alimentício, resulta, inexoravelmente, que os alimentos devem garantir uma vida digna a quem os recebe (alimentando) e a quem os presta (alimentante). Por isso, fixá-los em percentual aquém do mínimo imprescindível à sobrevivência do alimentando ou além das possibilidades econômico-financeiras do devedor ofende, de maneira direta, o princípio da dignidade humana. 8 Averbe-se, então: toda e qualquer decisão acerca de alimentos deve ser presidida pelo (fundamental) princípio da dignidade do homem, respeitando as personalidades do alimentante ou alimentando, pena de incompatibilidade com o Texto Magno.
Por outro turno, fixados os alimentos, a proteção integral infanto-juvenil implica em reconhecer uma necessidade constante, permanente, de fiscalização do emprego das verbas pecuniárias no atendimento daquelas necessidades elementares do alimentando, as quais justificaram a sua quantificação, para a garantia de sua dignidade. Aliás, a proteção integral recomenda exatamente essa atuação fiscalizatória, de modo a não periclitar interesses indisponíveis.
Trilhando este caminho, vislumbra-se que há inescondível interesse (ou melhor, dever) do alimentante em fiscalizar a aplicação dos alimentos pagos, de modo a verificar o respeito à dignidade do alimentando-incapaz, constatando se a verba vem sendo aplicada no respeito à sua integridade física e psíquica e se estão sendo atendidos os seus pressupostos materiais básicos, fundamentais.
Este é o novo delineamento da matéria (alimentos e poder familiar) à luz das garantias especiais que decorrem da proteção integral da criança e do adolescente. É o que resulta de um olhar comprometido com a renovada cartela de (belas) cores, e matizes apresentados pela Carta Magna, cujo tom é eminentemente garantista. Para enxergar essa nova arquitetura, exige-se do jurista, além de profundo conhecimento constitucional, uma generosa medida de sensibilidade, vencendo o tecnicismo.
3. Lineamentos sobre o poder familiar
É certo que o conteúdo do instituto do poder familiar, no direito brasileiro, jamais se aproximou da concepção despótica romanista, sendo concebido, entre nós, como um complexo de direitos e deveres, simultaneamente concedidos ao pai e à mãe, a fim de que, a partir deles, pudessem melhor desempenhar a sua missão de guardar, defender e educar os filhos, formando-os para a vida. 9
Do ponto de vista técnico, como bem percebeu Orlando Gomes, este "conjunto de direitos e deveres compreendidos no instituto qualifica-se como situação jurídica peculiar que se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, uma faculdade e uma necessidade". 10
Trata-se, pois, de um feixe de situações jurídicas, através das quais o pai e mãe (simultaneamente, a partir de uma perspectiva isonômica constitucional) assumem um direito-função ou poder-dever, situando-se, topologicamente, em posição sui generis entre os direitos potestativos e os direitos subjetivos. Em decorrência disso, vislumbra-se para os pais uma prerrogativa e, concomitantemente, uma obrigação cuidar dos interesses dos seus filhos - independentemente de sua origem - biológica, artificial, afetiva...
Por lógico, a partir de uma perspectiva civil-constitucional, é preciso sublinhar que a pedra de toque do poder familiar é o melhor interesse da criança ou adolescente (derivada da conhecida fórmula the best interest of the child), reconhecido pelo art. 227 da CR e corroborado pelos arts. 1º e 4º do ECA. Segue-se, neste sentido, uma firme corrente mundial, tendo a própria Convenção Internacional de Direitos da Criança, acolhida pelo Brasil, reafirmado este propósito de proteção integral e prioritária, sempre visando ao bem-estar e segurança das crianças e adolescentes, independente de formalismos processuais, regulamentações de normas constitucionais ou qualquer outro entrave burocrático ou legal.
Por isso, muito melhor seria falar em autoridade parental, 11 afastando a histórica idéia de um poder excessivo conferido aos pais, para avultar a importância do tratamento protetivo prioritário da criança e do adolescente. 12
Nessa linha de intelecção, as latitudes e longitudes do poder familiar têm de estar a serviço da proteção preferencial e integral menorista, com o fito claro e incontroverso de preservar a dignidade e o melhor interesse das crianças e dos adolescentes, assegurando-lhes o crescimento e desenvolvimento completo, a salvo de ingerências negativas que possam ser proporcionadas (no âmbito patrimonial ou pessoal) pela ausência, omissão, abuso ou negligência dos genitores ou responsáveis.
Em respeito à tábua axiológica grantista constitucional (de onde deriva o melhor interesse da criança e adolescente), portanto, é imperioso adaptar-se o instituto do poder familiar às exigências de prioridade absoluta e de proteção integral do interesse menoril, contribuindo para evitar o abuso, o abandono e o descaso de pais ou responsáveis para com menores e para permitir-lhes um feliz aprimoramento moral, psíquico e social, além de uma eficaz proteção patrimonial.
Velhos e novos conflitos de interesses devem estar, sempre, submetidos à proteção integral e prioritária da criança e do adolescente. Este é o caminho e a salvação para o sistema jurídico.
4. A função fiscalizadora encartada no exercício do poder familiar como concretização do melhor interesse da criança e do adolescente
Prima facie, merece destaque o fato de que, na perspectiva afetiva abraçada pela Constituição de 1988, a separação, o divórcio a dissolução de união estável, bem como a não convivência entre os genitores, não afetam o exercício do poder familiar, que continuará sendo reconhecido a ambos, independentemente mesmo da constituição de uma nova entidade familiar com terceiro. No particular, a regra do art. 1.632 é clara: a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. E mais o comando do art. 1.588: "o pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que não são tratados convenientemente". 13
Sem dúvida, a concepção constitucional do poder familiar - fundada no afeto, na solidariedade e na proteção integral da criança e do adolescente - impõe uma mudança em seu conteúdo, fazendo com que a autoridade seja conjugada com outros valores e que os atributos dele decorrentes sejam exercidos por ambos os genitores, como regra geral.
Pois bem, vislumbrando a matéria a partir do imperioso contexto protetivo decorrente da norma constitucional, naturalmente, detecta-se a existência de um conteúdo fiscalizador como atributo essencial ao poder familiar, quando se tratar de pais que não convivem juntos, que não formam, entre si, uma entidade familiar (pais separados ou divorciados, por exemplo). Até porque "o arcabouço básico do conjunto de deveres que compete à família - e especialmente aos genitores - encontra-se na Constituição e é correspondente aos direitos fundamentais da criança e do adolescente", como bem apregoa Ana Carolina Brochado Teixeira. 14 Dessa maneira, atrelando o conteúdo do poder familiar às garantias fundamentais infanto-juvenis, infere-se, com absoluta convicção, a necessidade de se lhe conferir a funcionalidade necessária para preservar o melhor interesse da criança e adolescente, inclusive conferindo-lhe a possibilidade fiscalizatória.
Aliás, reconhecer a possibilidade de exercício de uma atividade fiscalizatória é essencial para assegurar o melhor interesse da criança e adolescente, uma vez que, mesmo estando o filho sob a guarda, apenas, de um dos pais, o outro se mantém na plenitude do poder familiar, devendo contribuir para a proteção integral de sua prole.
Com efeito, não se pode negar que o pai ou a mãe que não detém a guarda do filho deve (observe-se não se trata de pode, mas sim de deve) estar atento às despesas e gastos realizados, pelo cônjuge guardião, com o seu filho incapaz, velando pelo atendimento de suas necessidades básicas fundamentais, com educação, saúde, moradia, cultura, esporte, vestuário e, por igual, lazer.
Inspirado nesses valores, o art. 1.589 do Código Civil é de clareza solar ao prescrever que "o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação", realçando, na parte final, esta possibilidade de acompanhamento das despesas com menores. Corolário disso, além do reconhecimento de um dever de visitas, é a possibilidade de fiscalização pelo genitor não guardião do sustento, manutenção e educação conferidos ao filho.
De fato, a não convivência dos pais não pode representar para aquele que não detiver a guarda uma sanção ou mesmo uma diminuição do exercício do poder familiar. Assim, o poder de fiscalização da manutenção e educação de filhos menores que estejam sob a guarda de outrem é de alto significado na ótica civil-constitucional, pois está antenado na proteção integral assegurada pela Lex Legum. 15
Conferir carta branca ao guardião, colocando a sua administração pessoal e patrimonial de uma criança ou adolescente a salvo de uma atividade fiscalizatória, é, sem dúvida, temerário e pode implicar em violação de interesses infanto-juvenis. Seria conferir um bill de indenidade ao guardião, ainda que em detrimento de criança ou adolescente.
Exatamente por isso, Yussef Said Cahali, em vigorosa obra, sustenta, com argumentos irrefutáveis, que o genitor não guardião está "investido do direito de fiscalizar a manutenção e educação dos filhos que não tem sob sua guarda", porque não foi excluído do poder familiar. 16
Também fazendo coro ao entendimento aqui esposado, Denise Damo Comel esclarece que, "embora de difícil realização prática", a possibilidade de se exigir as contas daquele genitor que administra os bens e a verba pecuniária alimentícia do seu filho "parece mais jurídica e mais consentânea com o primado do interesse do menor, que norteia toda a matéria". 17
Ora, caro leitor, a partir de uma simples - e ainda que perfunctória - compreensão sistêmica da matéria, é possível perceber que o interesse em verificar as despesas e gastos realizados para a manutenção e educação de um incapaz funda-se na própria proteção integral da criança e do adolescente, constitucionalmente assegurada. O genitor não guardião, que não foi excluído do exercício do poder familiar (CC, art. 1.632), tem o dever de fiscalizar para assegurar a ampla e integral proteção de sua prole, colocando-a a salvo de prejuízos.
Na esteira dessa compreensão, infere-se, necessariamente, que, mesmo aquele cônjuge ou companheiro reconhecido como culpado pela separação, conserva o direito de fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros pagos ao filho-incapaz, vez que construída tal solução a partir do melhor interesse da criança e não do genitor. 18
Em razão disso, como desfecho lógico do que se expôs, é fatal entender que o art. 1.589 da Lei Civil, sintonizado na Norma Maior, protege e assegura, com absoluta prioridade, os interesses da criança e do adolescente, seja pela ótica pessoal, seja pelo prisma patrimonial, o que implica em reconhecer um conveniente poder fiscalizatório como atributo natural do poder familiar de cada um dos pais, obstando abusos e desleixos.
5. A ação de prestação de contas como instrumento processual idôneo para a proteção integral infanto-juvenil, através da verificação das despesas com o alimentando-incapaz
5.1. O cabimento da prestação de contas em sede de alimentos para a proteção do interesse de criança e adolescente
Conectada a atividade fiscalizatória do genitor não guardião no exercício do poder familiar (materializando a proteção integral e prioritária da criança e do adolescente), facultam a Lei Civil e a Lei Menorista uma série de providências judiciais que podem ser manejadas na defesa do interesse infanto-juvenil.
Equivale a dizer: reconhecido o direito de fiscalizar a manutenção e educação dos filhos, o genitor não guardião pode se valer de uma série de medidas, judiciais inclusive, para concretizar esta prerrogativa. Nesse âmbito, merece realce o fato de que esse rol de medidas judiciais protetivas do interesse de criança e adolescente é exemplificativo, não se exaurindo nas medidas de limitação, suspensão e extinção do poder familiar previstas no CC e no ECA. Bem esclarece Ana Florinda Dantas que, além das medidas limitadoras do CC e do ECA, "outras poderão ser adotadas, se assim reclamar o interesse do filho, observados os princípios constitucionais... preservando a pessoa do filho e levando em conta o seu interesse". 19
Detecta-se, assim, a possibilidade de utilização de quaisquer medidas judiciais que se façam necessárias para a proteção prioritária e integral do menor, dentre as quais, por lógico, a prestação de contas. Até mesmo porque "no direito de fiscalização da guarda, criação e educação da prole atribuída ao outro cônjuge, ou a terceiro, está ínsita a faculdade de reclamar em juízo a prestação de contas daquele que exerce a guarda dos filhos, relativamente ao numerário fornecido pelo genitor alimentante", como pontua Yussef Said Cahali. 20
Sem dúvida, a possibilidade de exigir contas é inerente ao exercício do poder familiar e da proteção avançada da criança e do adolescente, sob pena de inviabilizar a própria fiscalização da manutenção, sustento e educação dos filhos, reconhecida pelo art. 1.589 da Codificação de 2002.
Não é demais lembrar que a própria natureza do procedimento de prestação de contas recomenda a sua utilização nessa hipótese. Veja-se que a prestação de contas está vocacionada para compor conflitos em que a pretensão esteja centrada em esclarecer situações decorrentes, no geral, da administração de bens alheios - o que se amolda com perfeição à gestão pelo genitor-guardião da verba pecuniária paga a título de alimentos ao seu filho que esteja sob sua gestão. 21
Exatamente com esse espírito, o Tribunal de Justiça bandeirante reconheceu:
Alimentos. Pensão. Filha sob a guarda da mulher. Prestação de contas. Exigência pelo alimentante pai da criança. Possibilidade. Direito deste em exigir esclarecimentos precisos acerca da administração da prestação alimentícia recebida por conta da filha menor. Incidência do art. 1.589 do Código Civil de 2002. Direito de exigir contas que, na hipótese, decorre do exercício do poder familiar. Extinção do processo afastada. Recurso provido. (TJ/SP, in JTJ 271:27).
Sem dúvida, a melhor solução, à luz de uma interpretação conforme os valores protetivos da Constituição Federal, passa pelo reconhecimento da viabilidade do manejo da ação de prestação de contas, pelo genitor não guardião, para fiscalização de despesas com um alimentando incapaz.
Mesmo porque para evitar o desvio de recursos destinados a um menor, o uso do procedimento de prestação de contas pode se apresentar necessário. 22
De fato, a ação de prestação de contas consiste no "relacionamento e na documentação comprobatória de todas as receitas e de todas as despesas referentes a uma administração de bens, valores ou interesses de outrem", consoante a cátedra de Humberto Theodoro Júnior. 23 Assim, é cabível o seu manejo sempre que uma pessoa mantiver com outra uma relação jurídica através da qual seja necessária a apresentação de um balanço de despesas (descritivo, ainda que não contábil, quando não for possível apresentar as contas dessa maneira).
Trata-se de regra elementar: todo aquele que tem sob sua responsabilidade ou administra bens alheios, tem obrigação de prestar contas, evitando um prejuízo de terceiro, o que ganha contornos ainda mais nítidos quando se tratar de interesse preferencial e integral de criança ou adolescente. 24
Nessa linha de pensamento, Caio Mário da Silva Pereira advoga a tese de que ao pai administrador dos interesses do filho corre o dever de lhe serem dadas as contas da gerência. 25
De mais a mais, não fosse admissível o uso da ação de prestação de contas pelo genitor não guardião, que presta alimentos, restaria esvaziado o exercício pleno de seu poder familiar (rectius, autoridade parental), 26 faltando-se um de seus mais relevantes atributos, qual seja a atividade fiscalizadora.
Outrossim, impedir a propositura da prestação de contas poderia fazer periclitar os interesses menoristas que devem ser tutelados preferencial e integralmente. É que vedado o ajuizamento da ação, a má administração de verba pecuniária destinada à manutenção e educação de filho menor não seria passível de um eficiente controle. Por isso, na defesa do melhor interesse da criança e do adolescente, é reconhecida ao genitor-alimentante (bem como ao Ministério Público e a qualquer outra pessoa interessada, como os avós e tios) a legitimidade para requerer a prestação de contas do genitor que detiver a guarda e estiver administrando a importância pecuniária paga a título de alimentos.
Em lúcida decisão, reconheceu esta tese o TJSC, fundando em valores de inspiração constitucional a possibilidade do uso de prestação de contas em sede alimentar:
"Alimentos destinados à genitora e à filha. Prestação de contas. Ilegitimidade ativa ad causam. Indeferimento da inicial. Insurgência. Fiscalização. Direito protetivo do menor. Legitimidade ativa do pai alimentante. Ilegitimidade ativa do marido alimentante. Provimento parcial. Sentença reformada em parte.
Porque a má administração de numerário destinado à manutenção e educação de filho alimentando pode acarretar severas sanções legais ao mau administrador (arts. 1.637 e 1.638, IV, do CC), a Lei do Divórcio assegura ao alimentante a fiscalização da respectiva verba alimentar.
Não tem o marido alimentante legitimidade ativa ad causam para o ajuizamento de prestação de contas no tocante à verba alimentar da ex-mulher". (TJ/SC, Ac. 2ª Câm.Cív., ApCív.06.024243-1 - comarca de Itajaí, rel. Des. Monteiro Rocha, j.28.9.06).
Assim, conseqüência natural do reconhecimento de um componente fiscalizatório inserto no poder familiar é a admissibilidade do manejo da ação de prestação de contas pelo genitor não guardião (ou mesmo por terceiro interessado ou pelo Ministério Público) contra aquele que exercer a guarda, de modo a resguardar os interesses pessoais e patrimoniais do menor. 27 Essa admissibilidade ocorre com o objetivo precípuo de resguardar os interesses pessoais e patrimoniais do menor em face de atos ruinosos ou de graves omissões (deixando de aplicar os recursos financeiros em atividades relevantes para a dignidade do menor, como educação, cultura, lazer e esporte) praticados pelo genitor-guardião, que detém a gestão financeira de sua pensão alimentícia.
Não é difícil notar que esta assertiva harmoniza-se, integralmente, com o melhor interesse da criança (CF, art. 227; ECA, arts. 1º e 4º), evidenciando que a criança e o adolescente são protagonistas do próprio processo de educação, manutenção e crescimento. Enfim, são sujeitos, e não objetos da tutela jurídica.
Em suma-síntese: sendo certo e incontroverso que o guardião é o natural gestor dos recursos financeiros destinados ao alimentando-incapaz, especificamente voltados para a sua manutenção, sustento e educação, é imperioso reconhecer a possibilidade de uso do procedimento judicial de prestação de contas, como mecanismo para explicitar o respeito e efetivação do melhor interesse da criança e do adolescente.
Por derradeiro, vale acrescer um outro argumento favorável ao cabimento da prestação de contas. Cuida-se do fato de que a não comprovação de despesas e a má administração dos recursos financeiros do menor, geridos pelo guardião, pode ocasionar a modificação de guarda, a suspensão do poder familiar ou mesmo a sua extinção - o que vem a confirmar a possibilidade de uso da prestação de contas, sempre à luz da proteção integral constitucional. 28
Defendendo a idéia, Sílvio Rodrigues dispara de modo contundente e concreto que o pai não guardião "pode reclamar alegando que a mãe economiza no trato do menor". Acrescenta, inclusive, ser isto, de certo modo, freqüente na prática forense, exemplificando com a hipótese do genitor guardião que utiliza a pensão alimentícia do filho menor "para atender a seus gastos pessoais, às vezes até luxuosos". E desfecha: "o pai tem ação (de prestação de contas) para remediar a situação e até pretender a mudança da guarda". 29
5.2. A natureza dúplice do procedimento de prestação de contas e a possibilidade de seu uso por qualquer dos genitores e mesmo por terceiro
O procedimento de prestação de contas previsto no CPC (arts. 914 a 919) tem estrutura dúplice, 30 podendo ser utilizado tanto pelo devedor (o alimentante), quanto pelo credor (o guardião, gestor dos alimentos pagos a um incapaz).
Ambos podem se apresentar como autor ou réu porque ao direito de exigir a apresentação das contas correspondentes à administração da importância paga a um incapaz corresponde, natural espelho invertido, o direito de prestar contas da gestão do patrimônio de terceiro, prevenindo-se de futuros questionamentos e medidas judiciais. Aliás, o próprio Código Instrumental confirma esta possibilidade ao disciplinar regras específicas para o procedimento de exigir contas e outras especificamente atinentes ao procedimento de dar contas.
Como corolário disso, percebe-se que a prestação de contas dispensa, por esse motivo, o uso da via reconvencional. 31
5.3. A compatibilização entre a natureza irrepetível dos alimentos e o procedimento de prestação de contas
Apesar de alguma resistência em sede doutrinária e jurisprudencial, 32 não há, efetivamente, qualquer descompasso entre o uso do procedimento de prestação de contas, em sede alimentícia, e o caráter irrepetível dessa especial obrigação jurídica.
É que, como esclarece Ernane Fidélis dos Santos, "na prestação de contas, o objeto da lide é o acertamento (esclarecimento das contas), sem importar o resultado". Por isso, "o objetivo do pedido (de prestação de contas), que limita e caracteriza a lide, é a prestação das contas". 33 Dessa maneira, para que se admita a ação de prestação de contas, pouco interessa se o saldo, eventualmente apresentado, poderá, ou não, gerar execução.
É plenamente possível utilizar o procedimento especial de prestação de contas somente para ver apresentado o rol de créditos e despesas com o alimentando-incapaz, sem que um eventual saldo seja objeto de execução.
Bastaria imaginar, para confirmar o que se aduz, a possibilidade de uma ação de prestação de contas, decorrente da gestão de uma sociedade empresarial, por exemplo, na qual as contas são apresentadas corretamente, não havendo qualquer saldo a ser ajustado. Ter-se-ia, na aludida hipótese, a mera prestação de contas, sem qualquer acerto posterior.
Assim, não há que se cogitar de qualquer incompatibilidade entre o uso da via processual da prestação de contas com a natureza irrepetível da verba alimentícia, uma vez que, em caso de manejo da prestação de contas pelo genitor alimentante, o resultado apresentado não poderá ensejar execução, mas poderá servir de prova para outras finalidades protetivas do interesse da criança e do adolescente, como, exempli gratia, a suspensão ou destituição do poder familiar ou mesmo uma alteração de guarda.
6. À guisa de arremate: a melhor solução para o império da proteção integral da criança e do adolescente
Sintetizando os argumentos postos, em especial à luz do garantismo constitucional de onde deriva a proteção integral da criança e do adolescente, sobreleva reconhecer a necessidade de aperfeiçoamento dos instrumentos do Código Civil atinentes ao interesse infanto-juvenil, inclusive o poder familiar e a obrigação alimentar, submetendo-os às diretrizes constitucionais, que afirmam a primazia dos interesses superiores da pessoa humana, como verdadeiro exercício de cidadania. 34 Isto porque a cidadania, concebida como elemento essencial, concreto e real, para servir de centro nevrálgico das mudanças paradigmáticas da ciência jurídica, será a ponte, a ligação com o porvir, com os avanços de todas as naturezas, com as conquistas humanas que vêm se consolidando, permitindo um Direito mais sensível, aberto e poroso aos novos elementos que se descortinem na sociedade. Um Direito mais real, mais humano e, por conseguinte, muito mais justo.
Para tanto, é preciso que esteja o direito aberto, sensível e em sintonia com os avanços da sociedade. Modificações nas históricas categorias e institutos jurídicos serão necessárias para garantir uma passagem aberta para outra dimensão, na qual a proteção integral da criança e do adolescente é elemento de garantia da própria dignidade humana. Disso advirá a eliminação de fronteiras delimitadas pelo sistema codificado anterior, por via das quais o interesse dos filhos estava submetido aos direitos dos pais. Abre-se espaço para um Direito de Família contemporâneo, propício às poderosas influências decorrentes do garantismo constitucional.
A propósito, vale invocar trecho do voto proferido pelo Ministro Waldemar Zveiter, em interessante julgado do STJ, tão bem aplicável ao caso sub occulis: "mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que com clarividência pôs o constituinte de modo mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao que incumbe a composição dos litígios, com olhos postos na realização da Justiça, limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem à modernidade". 35
No que tange aos interesses de criança e de adolescente, a pedra angular primordial ao jurista do novo tempo é o respeito ao valor constitucional da proteção integral (que se materializa, em larga escala, através da fórmula the best interest of the child), relevando vincular toda a normatividade infraconstitucional aos seus contornos, adaptando institutos e regras.
Volvendo os olhos para o poder familiar e para a obrigação alimentícia entre pais e filhos, infere-se, com tranqüilidade, o reconhecimento de uma função fiscalizadora no conteúdo do poder familiar, incumbindo ao genitor-alimentante (que não possui a guarda) acompanhar a destinação da verba pecuniária paga ao seu filho-menor, de modo a que estejam salvaguardados os seus interesses e que não estejam sendo sacrificados os seus direitos pessoais e patrimoniais.
Nesse ambiente, o manejo do procedimento especial de prestação de contas (pelo genitor não guardião, por terceiro interessado ou mesmo pelo Ministério Público) apresenta-se idôneo para assegurar o melhor interesse da criança e do adolescente, harmônico com a sua proteção integral e prioritária.
Comprovar desvio de verbas pecuniárias, a má administração financeira ou mesmo a insuficiência dos recursos são conseqüências possíveis de uma ação de prestação de contas e justificam o seu cabimento no âmbito da prestação alimentícia.
Longe da repetição de fórmulas hauridas em outros tempos 36 ou de discussões jurídicas a respeito da legitimidade (ou seja, do titular do direito de cobrar as contas) ou da natureza do procedimento, o que se espera, efetivamente, do jurista contemporâneo é a busca da solução adequada para os conflitos de interesses, máxime quando dizem respeito à criança ou adolescente, cuja proteção especial diferenciada, além de calcada em valores culturais, morais, humanitários e na preocupação com o tempo futuro (que os menores representam), foi determinada constitucionalmente.
Bem por isso, não se poderia utilizar o procedimento de prestação de contas para o controle de verbas pecuniárias pagas, a título de pensão alimentícia, a pessoa maior e capaz, não se justificando a tutela jurídica diferenciada. 37
Deste modo, é fácil perceber a necessidade de adaptação do exercício do poder familiar e da administração de verba financeira do filho-menor-alimentando à possibilidade de prestação de contas, respeitando as garantias constitucionais e à proteção integral infanto-juvenil. Do contrário, por via oblíqua, será possível frustrar o melhor interesse da criança e do adolescente, o que serviria como óbice à concretização da dignidade humana.
Como bem salientou Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao relatar no STJ, o REsp 4987/RJ (publicado no DOU de 28.10.91), na fase atual da evolução do Direito de Família é injustificável o fetichismo de normas ultrapassadas..., sobretudo quando em prejuízo de legítimos interesses de menor.
Cristiano Chaves de Farias é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia; Mestre em Ciências da Família na Sociedade Contemporânea; professor e presidente da Comissão de Promotores das Famílias do IBDFAM.
Referências
AMIM, Andréa Rodrigues. "Doutrina da proteção integral", In MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.), Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
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BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, 2007, vol.1.
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Notas
1 Não admitindo a existência de um dever de prestar contas do genitor que detenha a guarda e administre os alimentos de seu filho menor, veja-se o que escreve Maria Berenice Dias, fundada não falta de previsão legal: "não existe a obrigação do genitor que tem o filho sob sua guarda e percebe a verba alimentar a ele destinada, de prestar contas ao outro genitor que paga os alimentos", cf. Manual de Direito das Famílias, cit., p.351. No mesmo sentido, Maria Helena Diniz, para quem o pai que administra o patrimônio e a pensão de um filho menor, não responde, nem estar obrigado a prestar caução ou render contas, cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, cit., p.537.
2 Em franca maioria, os Tribunais brasileiros vem negando a possibilidade de uso da prestação de contas em sede de alimentos. Veja-se ilustrativamente: "Ação de prestação de contas. Alimentos. Descabimento. Acertada a decisão que extinguiu a ação de prestação de contas que o alimentante move contra a genitora das alimentadas, com fundamento no art. 267, VI do CPC, por carecer o recorrente do direito de ação e pela impossibilidade jurídica do pedido. Não se perquire de declaração de crédito ou débito entre os litigantes, ante a irrepetibilidade dos alimentos. Precedentes do Tribunal. Recurso de apelação desprovido monocraticamente". (TJ/RS, Ac. 8ª Câm.Cív., AC 70019287127 - comarca de Taquara, rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j.11.6.07, DJ 14.6.07).
3 Em outra sede, tive oportunidade de afirmar, em obra escrita a quatro mãos, juntamente com eminente civilista radicado na Terra das Alterosas, que o acatamento do princípio da dignidade humana como valor fundante de todo o ordenamento jurídico "impõe a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade", FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, cf. Direito Civil: Teoria Geral, cit., p.96.
4 Assim já se firmou a jurisprudência do STJ: "Guarda de menor. Criança criada pelos avós maternos. Reconhecida pelas instâncias ordinárias ser melhor para o menor permanecer na companhia dos avós maternos, com quem sempre viveu e a quem foi concedida a guarda depois da morte prematura da mãe, não cabe rever a matéria em recurso especial, seja porque se trata de matéria de fato, seja porque estão preservados os interesses da criança." (STJ, Ac. 4ª T., REsp.280.228/PB, rel . Min. Ruy Rosado de Aguiar, j.28.11.00, DJU 12.02.01).
5 Sobre a proteção integral infanto-juvenil, Tânia da Silva Pereira corrobora dessa imperiosa vinculação de todo o tecido infraconstitucional ao melhor interesse da criança ou adolescente, asseverando se tratar de uma verdadeira garantia que assegura a efetividade dos direitos subjetivos, limitando, inclusive, a discricionariedade estatal, cf. "O 'melhor interesse da criança'", cit., p.26.
6 Endossando estas idéias, vale invocar a lição de Paulo Luiz Netto Lôbo que, propondo uma interpretação dos dispositivos codificados conforme a Constituição, afirma que as palavras utilizadas pelo Código Civil "são apenas signos, cujos conteúdos deverão ser hauridos dos princípios e regras estabelecidos pela Constituição e no contexto de sua aplicação", cf. "Do poder familiar", cit., p.152.
7 AMIM, Andréa Rodrigues, cf. "Doutrina da proteção integral", cit., p.18.
8 As idéias apresentadas também são defendidas por Juliano Spagnolo, em excelente texto dedicado à apreciação constitucionalizada dos alimentos, cf. "Uma visão dos alimentos através do prisma fundamental da dignidade da pessoa humana", cit., p.152.
9 Em lição lapidar, Pontes de Miranda reconheceu o poder familiar (outrora, pátrio poder) como o "conjunto de direitos que a lei concede ao pai, ou à mãe, sobre a pessoa e bens do filho, até a maioridade, ou a emancipação desse, e de deveres em relação ao filho", cf. Tratado de Direito de Família, cit., p.143.
10 GOMES, Orlando, cf. Direito de Família, cit., p.389.
11 Nesse diapasão, Paulo Luiz Netto Lôbo, após anotar a importância e atualidade desta discussão terminológica, defende o uso da expressão autoridade parental por traduzir "melhor o exercício de função ou de múnus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade e no interesse do outro", cf. "Do poder familiar", cit., p.148.
12 Lembrando uma passagem bíblica, João Baptista Villela afirma que "tanto mais autoridade se tem quanto mais se exercita o serviço", apud TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado, cf. Família, guarda e autoridade parental, cit., p.146-7.
13 Em comentário a respeito do dispositivo legal mencionado, Denise Damo Comel dispara contundente crítica, observando que o artigo pretende "preservar o poder familiar do pai ou da mãe que se casa com terceiro, e encerra disposição que tinha sentido de existir antes da Constituição Federal, quando ainda não se reconhecia a plena igualdade entre o homem e a mulher, no casamento ou fora dele, bem como quando não se reconhecia a igualdade entre todos os filhos, independentemente da origem da filiação. Protegia, ao invés, o poder conferido à mulher que se casava com outro homem tendo em vista que no casamento ela, como esposa, num primeiro momento tornava-se relativamente incapaz e passava a ser chefiada pelo marido. Posteriormente, embora não perdendo a plena capacidade, continuava sob o mando do marido", cf. Do poder familiar, cit., p.243.
14 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado, cf. Família, guarda e autoridade parental, cit., p.128-9.
15 Com cuidadosa análise da base valorativa constitucional, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel explica "que o poder de fiscalizar o exercício da guarda não é privilégio exclusivo daquele que exerce o poder familiar..., a fiscalização do encargo da guarda pode ser feita por qualquer pessoa da família e, também, por todos aqueles que tiveram informações acerca do tratamento indigno dispensado a uma criança ou a um adolescente", cf. "Poder familiar", cit., p.100-1.
16 CAHALI, Yussef Said, cf. Dos Alimentos, cit., p.573.
17 COMEL, Denise Damo, cf. Do poder familiar, cit., p.160.
18 Nessa direção, vale conferir a cátedra de Edgard de Moura Bittencourt, esclarecendo poder "o cônjuge culpado exercer distante mas permanente controle, inclusive por via judicial, sobre a educação dos filhos. Aí surge a tarefa do magistrado, com penetração psicológica e moral nos fatos, evitando abusos, auscultando o amor pelos filhos e afastando os golpes de vingança dirigidos ao outro cônjuge, por intermédio de criaturas inocentes", cf. Família, cit., p.185.
19 DANTAS, Ana Florida, cf. "O controle judicial do poder familiar quanto à pessoa dos filhos", cit., p.152.
20 CAHALI, Yussef Said, cf. Dos Alimentos, cit., p.572.
21 Confirmando esse entendimento, veja-se Humberto Theodoro Júnior, fulminando qualquer dúvida: "todos aqueles que têm ou tiveram bens alheios sob sua guarda e administração devem prestar contas", cf. Curso de Direito Processual Civil, cit., p.87.
22 Veja-se, a respeito, decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, admitindo o uso da prestação de contas quando se demonstrou a potencialidade de desvio de verbas destinadas a incapaz, TJ/RJ, Ac.10ªCâm.Cív., AgInstr.2000.002.05567, rel. Des. Sylvio Capanema, j.25.7.00.
23 THEODORO JÚNIOR, Humberto, cf. Curso de Direito Processual Civil, cit., p.85.
24 Nesse diapasão, o TJBA já teve oportunidade de reconhecer o cabimento da ação de prestação de contas sempre que necessária a apresentação de prova de despesas. Veja-se: "a obrigação de prestar contas resulta do princípio universal de que todos aqueles que administram, ou têm sob sua guarda bens alheios, devem prestar contas". (TJ/BA, Ac.1ª Câm.Cív., ApCív.21.052-8/01, rel. Des. Raymundo Carvalho, j.14.11.01, Ac.nº14.076).
25 PEREIRA, Caio Mário da Silva, cf. Instituições de Direito Civil, cit., p.239.
26 "Os poderes-deveres inerentes à autoridade parental competem a ambos os pais, mesmo após o fim da conjugallidade. Desta forma, os genitores devem continuar assistindo, criando e educando os filhos, independentemente da sua condição de solteiros, casados, separados, conviventes ou divorciados", como sinaliza Ana Carolina Brochado Teixeira, cf. Família, guarda e autoridade parental, cit., p.138-9.
27 Precedente jurisprudencial do TJPR chegou mesmo a reconhecer a legitimidade do próprio alimentando, após a aquisição da plena capacidade, para a ação de prestação de contas contra o genitor que administrou, durante a menoridade, o seu patrimônio: "Ação de prestação de contas. Administração de bem dos filhos. Exigência de render contas. Inobstante haja certa dúvida, na doutrina, acerca do direito dos filhos, após a maioridade, de exigirem contas dos pais quanto a administração dos bens que lhe pertencem, não há negar que se a mãe, no exercício do pátrio poder, recebeu determinada importância em função de acordo judicial, em nome de seus filhos, com notícia de que o numerário já não existe, convém determinar-se a prestação de contas, de sorte a possibilitar o esclarecimento definitivo quanto ao destino da pecúnia". (TJ/PR, Ac.3ª Câm.Cív., ApCív.7349, rel. Des. Renato Pedroso, j.16.11.90).
28 Também assim, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, cf. "Poder familiar", cit., p.101.
29 RODRIGUES, Sìlvio, cf. Comentários ao Código Civil, p.209-10.
30 Sobre o ponto, confira-se, por todos, Antônio Carlos Marcato, cf. Procedimentos especiais, cit., p.150-1.
31 É o que diz Alexandre Freitas Câmara: "conseqüência desta natureza dúplice é que não cabe, na ação de prestação de contas (em qualquer das duas modalidades de procedimento que se pode instaurar), reconvenção. Eventual pretensão que o demandado queira manifestar em seu favor será veiculada através da contestação", cf. Lições de Direito Processual Civil, cit., p.371.
32 "Agravo de instrumento. Ação revisional de alimentos Cumulada com ação de prestação de contas. Descabimento. Deve ser extinta a ação de prestação de contas (cumulada com a revisional de alimentos) que o alimentante move contra o alimentando, com base no art. 267, VI do CPC, pela ilegitimidade daquele, e pela impossibilidade jurídica do pedido. Não se perquire de declaração de crédito ou débito entre eles, ante a irrepetibilidade dos alimentos. Precedentes do Tribunal." (TJ/RS, Ac.8ª Câm.Cív., AgInst 70017308271 - comarca de Gravataí, rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 21.12.06).
33 SANTOS, Ernane Fidélis dos, cf. Manual de Direito Processual Civil, cit., p.36.
34 Luiz Edson Fachin, com habitual proficiência, leciona que o "conceito de cidadania pode ser o continente que irá abrigar a dimensão fortificada da pessoa no plano de seus valores e direitos fundamentais. Não mais, porém, como um sujeito de direitos virtuais, abstratos ou atomizados para servir mais à noção de objeto ou mercadoria", cf. Teoria Crítica do Direito Civil, cit., p.330.
35 STJ, Ac. 3ª T., REsp 269/RS, rel. Min. Waldemar Zveiter, j.3.4.90, DJU 7.5.90, p..3829, in RSTJ 40:231-6.
36 Em página literária clássica, Edgard de Moura Bittencourt adverte não ser raro encontrar "decisões displicentes, em que o juiz adota soluções de rotina, em lastimável perjúrio ao compromisso funcional. É admissível que venha a errar, porque, embora sensível ao problema das partes, a solução não lhe brotará sempre perfeita; mas não há perdão para o descaso. E o certo é que o erro dos pais não devem ser agravados pelos descuidos dos juízes", cf. Família, cit., p.185.
37 O Tribunal de Justiça de Santa Catarina chegou a idêntica conclusão: "não tem o marido alimentante legitimidade ativa para a causa para o ajuizamento de prestação de contas no tocante à verba alimentar da ex-mulher" (TJ/SC, Ac.2ª Câmara de Direito Civil, ApCív.06.024243-1 - comarca de Itajaí, rel. Des. Monteiro Rocha, j. 28.9.06).
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