Artigos
A certidão de nascimento na adoção por casal homossexual
A questão da certidão de nascimento sempre é suscitada em face da adoção por casais homossexuais. Com efeito, quanto às mudanças no prenome, no nome e no assento (certidão) de nascimento de criança/adolescente adotada(o) por casal homossexual, muitas polêmicas são levantadas pelos que tentam argumentar em contrário à viabilidade de deferimentos de adoções a casais homoafetivos.
A existência de um registro de nascimento, no qual constem os nomes de dois homens ou de duas mulheres pode se opor aos costumes, mas não ao ordenamento positivo pátrio. Devendo espelhar a filiação não somente biológica, mas também afetiva, a certidão de nascimento, em caso de adoção homoafetiva bi-parental, deve contemplar os nomes dos pais/mães do mesmo sexo, refletindo a realidade socioafetiva na qual a criança ou adolescente estará inserida, através da adoção.
Sendo, a Lei 6.015/73 - Lei dos Registros Públicos -, de exigências meramente formais, nela não se encontra óbice sobre que o registro indique, como pais, duas pessoas do mesmo sexo. O Estatuto da Criança e do Adolescente, a tal respeito, apenas prevê, no art. 47, que "o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil, mediante mandado do qual não se fornecerá certidão". O § 1º do mesmo artigo, outrossim, não discrimina, com base no sexo biológico: "a inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome dos seus ascendentes". Se, quando se está diante das chamadas "produções independentes" ou de adoções deferidas a uma pessoa solteira, faz-se constar somente o nome de um ser humano como pai ou mãe, não há por que haver resistência em formalizar os nomes de duas pessoas como pais ou mães, somente por serem do mesmo sexo. A resistência não refletiria, veladamente, um flagrante preconceito, ainda decorrente de uma visão negativa para com a homossexualidade e as uniões homossexuais?
Felizmente, servidores da seara notarial comprometidos com uma sociedade melhor perceberam que os tradicionais modelos, tidos como padrões nos cartórios do país, poderiam ser adequados, para o amparo a situações que, expressamente, a legislação não previa, mas que deveriam ser inseridas formalmente, por critério de justiça e de igualdade (no bojo de deferimentos de direitos vários, a partir da doutrina e das decisões inovadoras do Poder Judiciário). Face às mudanças no âmbito notarial, por exemplo, foi pioneiro, no Brasil, o Provimento nº 06/2004 da Corregedoria Geral de Justiça do Rio Grande do Sul (Processo 22738/03-0), a partir do qual ficou permitido que pessoas do mesmo sexo pudessem registrar documentos sobre união estável em Cartórios de Notas daquele Estado.
Em 2005, quando da 1ª edição do meu livro A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais, eu já defendia que o(a) magistrado(a) determinasse que, na certidão de nascimento, oriunda do desfecho do processo de adoção por casal homossexual, constasse, tão-somente: filho de: ... [nome de um(a) dos companheiros(as)] e de: ... [nome do(a) outro(a) companheiro(a)]. E que, no lugar dos avós, constassem os nomes de todos eles, sem, necessariamente, ter que haver diferenciações entre "paternos" e "maternos". Nesta mesma direção que eu aventei teoricamente, quando começaram a ser deferidas (em caráter definitivo) as primeiras adoções a casais homossexuais no Brasil em 2006, os inovadores assentos de nascimento foram construídos, fazendo-se constar, no teor das certidões, tão somente, as expressões: "filho(a) de: ... e de: ..., sendo avós: ... ; ...". Assim, como um dos pioneiros exemplos do país, em 17 de novembro de 2006, foi lavrado, na comarca de Catanduva-SP, o assento de nascimento de Theodora Rafaela Carvalho da Gama, filha de Vasco Pedro da Gama Filho e de Dorival Pereira de Carvalho Júnior, sendo avós: Vasco Pedro da Gama e Aparecida de Souza Gama; Dorival Pereira de Carvalho e Maria Helena Fernandes de Carvalho. Os(as) magistrados(as) e os servidores da seara cartorária, acertadamente, a partir de 2006, começaram a possibilitar a formalização do vínculo de paternidade/maternidade entre pais/mães homossexuais e seus filhos adotivos, evitando discriminações e oportunizando que as certidões de nascimento, no caso das adoções por casais homossexuais, espelhem a filiação real, de modo a garantir não somente o direito dos(as) adotantes de serem pais/mães, mas, especialmente, dos(as) adotados(as) de serem filhos(as) de duas pessoas que os(as) acolheram através do amor.
A partir de 1º de janeiro deste ano de 2010, por força do Decreto nº 6.828, de 27 de abril de 2009, passou a vigorar, em todo o país, um modelo padronizado de certidão de nascimento. O modo como tal modelo foi construído, apesar de espelhar uma ótica familiar heterossexual, não impede a formalização do vínculo de filiação entre uma criança/um adolescente e duas pessoas do mesmo sexo. Com efeito, o referido modelo apresenta (para efeito de visualização do vínculo de paternidade/maternidade) um campo denominado "filiação", no qual deve constar o nome do pai, da mãe ou dos pais conjuntamente (pai e mãe ou pais/mães). A expressão utilizada no modelo oficial (filiação), deixando o campo para livre preenchimento, permite, portanto, que sejam lavradas certidões de nascimento tanto nos casos de adoções deferidas a uma só pessoa (independente de orientação afetivo-sexual), quanto nos casos de deferimentos a casais homossexuais. A padronização promovida pelo governo, neste particular, não pode prejudicar a constituição do vínculo da dupla paternidade/maternidade homoafetiva, porque essa não é vedada pelo ordenamento jurídico e se conforma, inclusive, com os princípios constitucionais da igualdade e, especialmente, da dignidade da pessoa humana. E, neste particular, será relevante contar com a sensibilidade dos(as) magistrados(as) e dos servidores da seara notarial para que constem os nomes de dois homens ou de duas mulheres, para efeito da lavratura da certidão, em caso de adoção por casal homoafetivo.
Para a segurança jurídica do(a) adotado(a), essencial é que, a partir da certeza de ser amado(a) pela convivência, tenha, no seu assento de nascimento, um reflexo preciso deste amor. Neste diapasão, o Direito deixa de ser vislumbrado pelo crivo de preconceitos infundados e as leis, de serem interpretadas sob o olhar da segregação. Com efeito, se, desde 1988, a partir da Constituição Federal em vigor, através de uma hermenêutica de inclusão pelo primado dos direitos fundamentais (caput do art. 226), já se podia deferir direitos familiares de convivência a casais homossexuais e às uniões entre homens e mulheres não casados (e o Judiciário era tímido em fazê-lo, por medo e/ou preconceito), a partir da legislação regulamentadora da união estável, valendo-se da analogia, mais ainda aparelhados estavam e estão os(as) magistrados(as) para conceder tais direitos aos casais homoafetivos. Além disso, desde 1990 e a partir de tal ano, quando nasceu o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei 6.015/73 (que versa sobre Registros Públicos) já poderia vir sendo interpretada no sentido da viabilidade de constituição do vínculo jurídico de filiação entre um(a) infante e um casal homossexual. Restrições, nos referidos diplomas, nesta direção, não há. Os óbices partem de interpretações eivadas de puro subjetivismo ou preconceito. O desafio maior consiste em alguns operadores jurídicos e servidores do Poder Judiciário - conservadores ou amedrontados pelas mudanças (que continuarão se processando) - reverem se estão interpretando as leis e vendo o fenômeno social submetido ao jurídico com base em conceitos (amparados cientificamente) ou com base em preconceitos.
Tanto a atividade cartorária, quando as demais do Estado Democrático não podem ser legitimadoras de segregações e de preconceitos quanto às uniões homossexuais no país. Para além da orientação sexual das pessoas, os servidores devem atuar, com eficiência e clareza, em prol da segurança jurídica dos atos legalmente amparados, que traduzem a vontade das partes, sem distinção de qualquer natureza. Por ser não somente justa, mas sintonizada em face da legislação, a formalização da filiação homoafetiva continuará sendo processada, viabilizando a lavratura de certidões de nascimento nos casos de adoções por casais homossexuais no Brasil. Eis mais um desafio posto.
Enézio de Deus é advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM e professor de Direitos Humanos (ACADEPOL-Ba e FTC-EAD). eneziodedeus@hotmail.com
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM