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Afeto, abandono, responsabiilidade e limite: dialógos sobre ponderação
1 INTRODUÇÃO
A temática envolvendo o dano moral vez ou outra está presente no sistema jurídico civil contemporâneo. O enredo do dano moral encontrava-se inserido em outros tempos ao direito contratual ou reais, adentrando-se, pouco a pouco na sistemática do direito de família contemporâneo. Constitui, pois, o dano moral no direito de família moderno, um elemento a mais na ementa dos cursos que se propõem a balisar-se no relacionamento atual dos homens e suas respectivas consequências jurídicas advindas destas relações existenciais.
Tem se destacado na sociedade moderna o questionamento acerca da possibilidade, ou impossibilidade, da responsabilização civil por abandono afetivo oriundo das relações familiares. Revela-se, no mínimo, hipótese de indagação se os transtornos psicológicos provenientes da falta de afeto no seio familiar são capazes de implicar seqüelas que originariam reparação à pessoa humana sofredora de uma determinada conduta comissiva ou omissiva.
É preciso estabelecer uma doutrina prudente acerca do dano moral por abandono afetivo, analisando quais são as verdadeiras conseqüências danosas pela ausência de afeto merecedoras de amparo jurídico, de responsabilização, de cumprimento ao princípio jurídico da igualdade entre filhos, solidariedade familiar e afetividade. As relações afetivas e familiares geram direitos e deveres para as pessoas nela envolvidas, motivo pelo qual essas relações têm que ser alvo de intensos cuidados.
Embarca os danos morais por abandono afetivo as entranhas da tríplice vértice do direito civil: contratos, propriedade e família. Consubstanciando-se na última os seus mais modernos desdobramentos. Instituto jurídico este que era impossível imaginar a tão-somente doze anos atrás, epóca em que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) dava os seus primeiros passos. Tal fato, demonstra de forma inarredavél a importância do estudo do direito de família e seus reais e efetivos alcances na defesa da pessoa humana.
2. O DIREITO DE FAMÍLIA E A RELEVÂNCIA DOS SEUS PRINCÍPIOS
A sociedade tem evoluído de forma bastante acelerada, fazendo com que surjam novos conflitos e interesses, especialmente no que diz respeito aos conflitos familiares. Tendo em vista que é no direito de família que ocorrem as maiores mudanças sociais, verifica-se a dificuldade do ordenamento jurídico em acompanhá-las.
Assim, em se tratando de avanços no campo do direito de família, observa-se que muito tem se falado nos dias atuais sobre a afetividade, e, por consequência, em indenização pelo abandono afetivo.
Em seu artigo 227, a Carta Magna diz que é dever do Estado, da família e da sociedade proporcionar a convivência familiar.
O Código Civil de 2002, no artigo 1566, inciso IV, ao relatar os efeitos do casamento, prediz que compete aos pais ter os filhos menores em sua companhia e guarda; sendo que o artigo 1632 alerta que a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º repete o texto constitucional, enquanto o artigo 19 trata do direito à convivência familiar. Neste diapasão Maria Helena Diniz salienta que:
O Estatuto rege-se pelos princípios do melhor interesse, paternidade responsável e proteção integral, visando a conduzir o menor à maioridade de forma responsável, constituindo-se como sujeito da própria vida, para que possa gozar de forma plena dos seus direitos fundamentais.[1]
Notório no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo é que este é composto de princípios que se incorporam às exigências do ideal de justiça, inclusive alguns que são próprios das relações familiares e que servirão de norte na apreciação do caso concreto. Cabe, por ora, relembrar alguns presentes no direito de família como o da dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar, da afetividade, da igualdade entre filhos, da igualdade na chefia familiar, da igualdade entre cônjuges e companheiros, da celebração gratuita do casamento civil, do melhor interesse da criança e da pluralidade familiar.
Três princípios merecem nosso destaque para tratativa do tema danos morais por abandono afetivo. O primeiro, o princípio da dignidade da pessoa huma, traduzido como princípio dos quais se irradiam todos os demais, macroprincipio, princípio dos princípios. É carregado de sentimentos e emoções, experimentado no plano dos afetos, sendo que o Estado não tem apenas o dever de privar-se de praticar atos que atentem contra a dignidade, mas promovê-la, garantindo ao ser humano o mínimo existencial para a efetividade deste princípio, sendo direito constitucional do ser humano ser feliz e dar fim àquilo que lhe aflige. Temos no princípio da dignidade humana o corolário dos princípios da paternidade responsável e da afetividade.[2]
O princípio da dignidade a pessoa humana exerce função instrumental integradora e hermenêutica na ordem jurídica como um todo e, especialmente, no direito de família, servindo de parâmetro para aplicação, interpretação e integração de todo o ordenamento jurídico. É a idéia consagrada do macroprincípio, ou, o princípio dos princípios.
Outro princípio destacado é o da solidariedade familiar, enfatizamos Maria Berenice Dias:
Solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade a reciprocidade. (...) em se tratando de crianças e de adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (CF 227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação.[3]
Por último, e com abordagem direta ao dano moral por abandono afetivo, encontra-se o princípio da afetividade, em que dada a importância do afeto nas relações familiares, pode-se dizer que trata-se do princípio norteador das relações familiares e o direito a elas correspondente.
Nas preciosas lições de Paulo Luiz Netto Lobo Lobo revela-se que:
(...) A convivência familiar, que o art. 227 da Constituição considera integrante do melhor interesse da criança e do adolescente, é fato entretecido em relações sociais duradouras, com objetivo de constituição de família, o que as distingue de outras relações sociais. A afetividade, por seu turno, é dever jurídico a que devem obediência pais e filhos, em sua convivência, independentemente de haver entre eles afeto real.[4]
Na mesma linha de pensamento Maria Berenice Dias alega:
O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Igualmente tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família, compondo, no dizer de Sérgio Resende de Barros, a família humana universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família (...). O direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto. (...) as relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por mais complexas que se apresentem, nutrem-se, todas elas, de substâncias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido à arte e à virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência de em dar e receber amor. [5]
É através do afeto que se constroem as relações interpessoais formadoras da família, motivo pelo qual merece maior atenção da área jurídica, devendo, assim, a base da sociedade ser centrada na dignidade da pessoa humana. Assim, o afeto que tratava unicamente de um sentimento, passou a ter valor jurídico na esfera das relações familiares[6], sendo instrumentalizado através do princípio da dignidade da pessoa humana.
Literalmente não se menciona o afeto na Carta Magna. Sabe-se, todavia, que a primeira interpretação é a literal. "De forma límpida, o texto constitucional, ao mencionar o princípio da convivência familiar, demonstra que sua efetivação abrange dois aspectos: proximidade e convivência física"[7]. (2009, p. 18)
Não se pode afirmar que chegava a ser hilário o desprezo do tema da afetividade no meio jurídico em tempos mais remotos, devido a importância do fato. Mas fato é que perceptivelmente o termo afeto veio a ser inserido no Código Civil somente com as alterações advindas da Lei da Guarda Compartilhada, que consagrou o afeto como elemento merecedor de tutela judicial para o deferimento da guarda, prestigiando, assim, o indivíduo como ser sentimental, desvinculando-se das amarras legalistas e objetivas do homem como bem material.
3. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS CONSEQÜÊNCIAS PSICOLÓGICAS E SOCIAIS ORIUNDAS DO ABANDONO AFETIVO
As relações e os vínculos familiares são extremamente importantes quando considerados como fator primordial no desenvolvimento do indivíduo. Afinal "é no seio deste grupo que o indivíduo nasce e se desenvolve, moldando sua personalidade ao mesmo tempo em que se integra ao meio social". Devendo os genitores além do aspecto material, cuidar também da "alma, da moral, do psíquico"[8]. Pois, certo é que a família é um referencial para o desenvolvimento do indivíduo, onde serão incorporados valores, serão vivenciadas experiências afetivas e serão gerados juízos de valores e expectativas que irão influenciar diretamente no desenvolvimento da personalidade.
Assim, por ser a base da sociedade, a família recebe atenção especial do Estado, tendo em vista a preservação da mesma, uma vez que a ausência de afeto traz em si um conjunto de males causadores de verdadeira tortura ao filho abandonado, causando angústia não apenas pela falta de carinho, mas também como condições de sobrevivência, tendo em vista que o menosprezo vem daquele que jamais deveria eximir-se de dar afeto. Maria Berenice Dias, nesta linha de pensamento, aduz que "em face da garantia à convivência familiar, há toda uma tendência de buscar o fortalecimento dos vínculos familiares"[9].
Inegável, portanto, numa análise racional que a ausência afetiva pode causar danos irreparáveis na relação entre as pessoas, afinal somos humanos. Onde pode facilmente ser percebido que:
A falta de convívio dos pais com os filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e comprometer o desenvolvimento saudável da prole. A figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes e da sociedade. (...) A omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a falta da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo de vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes".[10]
A vida emocional das pessoas vai influenciar em todas as demais, havendo grande diferença entre os que foram bem amados e os que não tiveram a mesma sorte.[11]
4. O DANO MORAL NO DIREITO DE FAMÍLIA
Uma vez estabelecido que todo dano há de ser indenizado, conforme se observa dos artigos 186 e 187 do Código Civil, observa-se sua possibilidade também nas relações familiares, especialmente, levando-se em conta que o afeto ocupa um lugar significativo, demonstrando seu gradativo ingresso na esfera jurídica.
Algumas hipóteses da possibilidade dos danos morais embarcam perfeitamente nas relações familiares, situações diversas em que os deveres de família são violados. As sevícias, as ofensas morais e físicas, as injúrias graves praticadas por um cônjuge contra o outro, a transmissão e contágio de doenças graves, o abandono material e moral do companheiro, o abandono material e moral do pai pelo filho, a difamação, são alguns exemplos dessa seara.
Embora possível existir a responsabilidade civil na esfera familiar, necessário se faz ressaltar que "as peculiaridades próprias do vínculo familiar não admitem a incidência pura e simples das regras da responsabilidade civil"[12].
Trata, portanto, de matéria peculiar de responsabilidade civil, mas perfeitamente aplicável nas relações familiares. E cercando-se de ponderação, deve ser deferida também nos abandonos afetivos. Giselda Hironaka, com a prudência que lhe pertinente, relata que:
O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada.[13]
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 7º, assegura aos menores o seu desenvolvimento sadio e harmonioso, pondo-o a salvo de toda forma de negligência. Para a efetivação desse desenvolvimento, necessário haver entre os envolvidos a presença do afeto, elemento de elevada importância, sendo que a sua ausência desmedida pode gerar danos permanentes no decorrer da vida do filho. É concludente afirmar que "a omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação"[14].
Repetidamente, nos últimos anos, tem-se aumentado o número de ações judiciais pleiteando-se a justa indenização pelos abalos afetivos. Assunto, contudo, que tem gerado inúmeras controvérsias no meio jurídico e nos tribunais.
Porém, dada a complexidade da questão, variados são os questionamentos acerca das demandas indenizatórias em face do desafeto. Em que pese o afeto ser elemento constitutivo para o desenvolvimento da criança, indaga-se se a não observância desse direito pode causar-lhe indenização pelo abandono afetivo.
4.1 ANÁLISE DO DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO
Primeiramente, vale ressaltar que o assunto está longe da passividade. Embora novo o assunto não pode fugir da prestação jurisdicional, uma vez que, conforme se extrai do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Porém, é necessário que haja muita cautela no caso concreto, tendo em vista que trata-se de conflito familiar de natureza afetiva no âmbito da responsabilidade civil, sendo que o binômio afetividade/indenização pode ser extremamente perigoso.
Ainda que o Estado tenha interesse na preservação da família, deve ser observado o limite de sua atuação, para que as normas estabelecidas não gerem prejuízos irreversíveis. Enfim, ressalta-se que:
"Quando se trata das relações afetivas - afinal é disso que trata o direito das famílias -, a missão é muito mais delicada em face de seus reflexos comportamentais que interferem na própria estrutura da sociedade. É o direito que diz com a vida das pessoas, seus sentimentos, enfim, com a alma do ser humano".[15]
Importa que a análise os danos morais na seara do direito de família é no mínimo polêmico, até mesmo pela contrariedade exposta da industrialização dos danos morais, principalmente ao invadir os direitos pessoais.
Assim, percebe-se quão árduo é o trabalho do operador do direito quando está diante do tema relacionado com a indenização derivada da relação afetiva, tendo em vista que não há como negar a proteção dada aos direitos da personalidade, sendo, inclusive, como já abordado, punido com a perda do poder familiar aquele que deixar o filho em abandono.
Parte dos doutrinadores reconhece a possibilidade da indenização pelo abandono afetivo, enquanto outros são contrários ao seu cabimento. Sobre este aspecto comento Flávio Tartuce: ), afirma:
Na doutrina brasileira, a tese do abandono paterno-filial também divide os pareceres dos estudiosos do Direito Privado. Exemplificando, são favoráveis à indenização Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Paulo Lôbo. No entanto, são contrárias ao pagamento de uma indenização por abandono afetivo Regina Beatriz Tavares da Silva e Judith Martins-Costa. [16]
Maria Berenice Dias, nas linhas abaixo, revela ser favorável à indenização por dano afetivo:
A indenização por abandono afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares.[17]
Não há dúvida quanto à ofensa à dignidade, à integridade psicofísica e ao dano à personalidade do filho que deve ser, sim, reparado pelo pai, quando for o causador. Os menores, sobretudo, têm a salvo todos os seus interesses e são priorizados no âmbito de todas as relações, inclusive as familiares. Ou seja, devem ser protegidos inclusive dos atos lesivos de seus próprios genitores. Perfeitamente cabível, portanto, a reparação do dano quando a necessidade afetiva do autor não foi suprida.
4.2 DIALÓGOS ENTRE O AFETO, O ABANDONO E A POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Não obstante o reconhecimento do cabimento de indenização por grande parte da doutrina, há ainda os doutrinadores que discordam dessa idéia, sustentando que há uma perigosa abertura para as possibilidades de indenização do dano moral decorrentes dessas relações, preocupando-se com o que chamam de monetarização do Direito de Família, e principalmente com os exageros que poderiam ocorrer.
Para que tais exageros não passem a integrar o cotidiano do Direito de Família é necessária a utilização da técnica de ponderação para o arbitramento dos danos morais nos casos de abandono afetivo.
Em ótimo artigo doutrinário Leonardo Castro e Isabel Elaine, preocupam-se com tal elemento e afirmam que:
Temos o dever de afeto como suposta parcela da educação prevista em Lei, em oposição à chamada "monetarização do amor", fundamentada na cautela. O temor surge a partir do prelúdio de uma enxurrada de ações indenizatórias munidas de interesses mercenários, não havendo como exigir do julgador a faculdade sobrenatural do discernimento entre a real angústia do abandono e a ganância inescrupulosa.[18]
Assim, quando se entra na esfera da responsabilidade civil, análises devem ser feitas criteriosamente, a fim de evitar que se crie uma indústria indenizatória pela ausência do afeto. Verifica-se que embora possível a indenização, a mesma deve ser limitada. Limitada não no sentido de restrição, de imposição de um regramento geral, que consubstancia o fato em semelhança a uma "camisa de força". Limitada sim no sentido de refletida, considerada, prudente, com juízo, de bom senso, muito bem pensada e alegada em seus termos. Esta é a doutrina do dano moral por abandono afetivo a ser propagada e discutida. Afinal, o que hoje se discute não mais é a influência da Constituição no Direito Civil, mas sim a amplitude e o modo como se dá essa incidência, especialmente dos princípios constitucionais e conceitos abertos.
Existem fundamentos jurídicos embasadores da responsabilidade civil no abandono afetivo, encontrando-se na Constituição Federal e no Código Civil os postulados que autorizam a sua aplicação.
Porém, recomenda-se cuidado na análise de procedência do pedido, evitando que se transforme o Judiciário num instrumento tão-somente de vingança pessoal, disfarçado sob o manto da necessidade de punir a falta de assistência moral à criança. Como realça Rodrigo da Cunha Pereira que "na verdade, do erro de não querer indenizar dano moral, está se partindo para o erro oposto, constituído pelo exagero, pelo excesso, pela demasia de exigir dano moral por tudo e por qualquer motivo. Com isto, algo sublime está sendo distorcido e amesquinhado por interesses patrimoniais, monetários, materiais, puramente financeiros, com muitos tentando ganhar dinheiro a custa dos outros".
Tal é também a repreensão de Giselda Hironaka, embora favorável à indenização, alerta que "os casos de indenização por abandono afetivo não devem se disponibilizar de forma desarrazoada ou desapegada da realidade".
Imperioso reconhecer, por outro lado ainda, que em certos lares, apesar da convivência física, muitos pais nunca se relacionaram com os filhos.
Questionamos recentemente nossa preocupação com os desdobramentos do dano moral por abandono afetivo:
Existem pais biológicos que residem no mesmo lar com os filhos e nunca conseguiram abraçar os seus filhos, nunca participaram dos seus aniversários ou formaturas, nem tampouco lembraram de questionar acerca do dia-a-dia do filho ou suas necessidades, inexistindo, portanto, qualquer laço afetivo com o filho. Caso o STF considere legítima tal decisão, abriríamos precedentes para estes filhos biológicos e residentes no âmbito familiar? Seria possível monetarizar tal relação de afeto? Poderia o judiciário, em outras linhas, impor afeto? Tem tal ação caráter reparatório?[19]
Realmente, seria um grande problema se todos os filhos que se enquadram nesse contexto resolvessem acionar o Judiciário pelo abandono afetivo.
Por outro lado, não bastasse a discussão acerca desses aspectos, têm-se ainda que a indenização não assegura o recebimento do afeto. Possivelmente, um litígio desta dimensão pode ensejar, ainda mais, o afastamento entre as partes, uma vez que é impossível obrigar alguém a amar. Fica, contudo, o caráter educativo, reparador, garantidor da pessoa humana, da eficaz proteção aos filhos.
Por tais motivos observa-se que quando se trata de direito de família, não basta amoldar a vida à norma; é necessário humanizar o direito e não apenas ver aplicadas as leis, por lidar com a vida das pessoas, seus afetos e suas mágoas, elementos tão íntimos e subjetivos. Como afirma Paulo Luiz Netto Lobo:
A força determinante da afetividade, como elemento nuclear de efetiva estabilidade das relações familiares de qualquer natureza, nos dias atuais, torna relativa e, às vezes, desnecessária a intervenção do legislador. A afetividade é o indicador das melhores soluções para os conflitos familiares.[20]
Se o amor está para o Direito de Família assim como a autonomia privada está para o Direito das Obrigações, como é a acertada afirmação de João Baptista Vilela, deve então este elemento nuclear, o amor, está cercado das proteções jurídicas, inclusive indenização quando este for cercado de ilicitude.
Em diálogos paralelos o afeto reclama do abandono, onde está situado o acompanhamento e o completo desenvolvimento dos filhos, uma vez que o laço afetivo está relacionado com a auto-estima, senso de moralidade, responsabilidade, atenção, entre outros. Características quais quando negligenciadas ensejam prejuízos para o desenvolvimento da pessoa humana e suas capacidades básicas.
Por outro lado, o abandono, como lhe é peculiar, volta as costas para o afeto e o sujeito receptor deste amor. Não quer ser responsabilizado, nem conhecido como opressor ou indiferente, afinal garante-se a liberdade individual, pensa ele - esquecendo, contudo que aquele não é a razão do ordenamento jurídico, a pessoa.
A responsabilidade já consagrada, e por vezes inflamada, está disposta a socorrer o ser humano. Não pensa em nenhum momento que será a grande salvadora de uma lavoura, mas argumenta que pode espantar alguns pássaros mal intencionados. Sabe também da menção ao seu nome em vão, por vezes, inclinam-se os homens na sua utilização de forma indiscriminada.
Grande responsabilidade, no entanto, cabe ao limite. Não obstante, este mesmo ser dependente de terceiros. Por ele mesmo, tenta aborda até onde é o seu verdadeiro alcance. Pensa também que o seu campo de atuação está localizado em determinados perímetros. Perímetros estes que não podem ser ofendidos ou menosprezados, sob pena da efetivação de sua volumosa responsabilidade.
Com tais diálogos estes quatro elementos tão diferentes entre si, abordam a inovação do Direito de Família contemporâneo. Tem-se no afeto o elemento essencial sem o qual o Direito de Família, por si, perde o seu artifício caracterizador, norteador, o seu eixo elementar. Se o afeto é inerente à pessoa humana, o abandono, ao contrário, nunca é desejado por uma pessoa com médio senso, está afastado da concepção e desejo humano.
Com dois elementos tão díspares se confrontando, inevitável é socorre-se a artifícios jurídicos criados pelos próprios humanos para dirimir os seus conflitos existenciais. Entre eles a responsabilidade civil e o alcance desta em determinada infração ou ato subversivo, comumente apelidado de limite. Para tanto, necessário se faz preencher de ponderação, arrazoamento e análise imperiosa do fato social, sob pena de desprezo da sua função própria.
Atentos a este contínuo diálogo que apenas começou a despertar a curiosidade dos transeuntes que por ali vêem estes quatro indivíduos conversando - às vezes discutindo -, urge considerar que os casos de indenização por abandono afetivo não devem se disponibilizar de forma desarrazoada ou desapegada da realidade, sob pena de transformar tal diálogo em um monólogo sem vida.
5 CONCLUSÃO
Não há dúvida quanto à ofensa à dignidade, à integridade psicofísica e ao dano à personalidade do filho que deve ser, sim, reparado pelo pai, quando for o causador. Os menores, sobretudo, têm a salvo todos os seus interesses e são priorizados no âmbito de todas as relações, inclusive as familiares. Ou seja, devem ser protegidos inclusive dos atos lesivos de seus próprios genitores. Perfeitamente cabível, portanto, a reparação do dano quando a necessidade afetiva do autor não foi suprida.
Com muito critério deve ser deferido o dano moral por abando afetivo, para evitar os indivíduos ávidos a percepção de dinheiro fácil, afastando, assim, os ilícitos enriquecedores da doutrina da monetarização do amor desordenada. Não é esta a intenção do Direito de Família.
Os casos de indenização por abandono afetivo não devem se disponibilizar de forma desarrazoada ou desapegada da realidade. Ao contrário, deve o operador do direito moderno preocupar-se com um efetivo e fluente diálogo da importância do afeto como característica integrante do ser humano, e o seu elemento negativo, ou seja, o abandono.
Verifica-se que embora possível a indenização, a mesma deve ser limitada. Limitada não no sentido de restrição, de imposição de um regramento geral, que consubstancia o fato em semelhança a uma "camisa de força". Limitada sim no sentido de refletida, considerada, prudente, com juízo, de bom senso, muito bem pensada e alegada em seus termos. Esta é a doutrina do dano moral por abandono afetivo a ser propagada e discutida.
Afinal, o que hoje se discute não mais é a influência da Constituição no Direito Civil, mas sim a amplitude e o modo como se dá essa incidência, especialmente dos princípios constitucionais e conceitos abertos.
6 REFERÊNCIAS
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TARTUCE, Flávio. Danos Morais por Abandono Moral. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. vol. 7, Porto Alegre : Magister. dez./jan. 2009.
[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 65.
[2] REZENDE, Joubert R. Direito à visita ou poder-dever de visitar: o princípio da afetividade como orientação dignificante no direito de família humanizado. In: Revista Brasileira de Direito de Família. vol. 28, Porto Alegre, 2005, p. 155.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 63.
[4] LOBO, Paulo Luiz Netto. Socioafetividade no Direito de Família: a Persistente Trajetória de um Conceito Fundamental. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. vol. 5, Porto Alegre: Magister, ago./set. 2008, p. 06.
[5] DIAS, Maria Berenice. op. cit., p. 68-69.
[6] PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro : Forense, 2008.
[7] ROSSOT, Rafael Bucco. O afeto nas Relações Familiares e a Faceta Substancial do Princípio da Convivência Familiar. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. vol. 9, Porto Alegre: Magister, abr./mai. 2009, p. 18.
[8] SILVA, Claudia Maria da. Indenização ao filho. In: Revista Brasileira de Direito de Família. vol. 25, Porto Alegre, ago./set. 2004, p. 125.
[9] DIAS, Maria Berenice. op. cit., p. 65.
[10] DIAS, Maria Berenice. op. cit., p. 407.
[11] PARODI, Ana Cecília de Paula Soares. Responsabilidade civil nos relacionamentos afetivos pós-modernos. Campinas: Russell Editores, 2007.
[12] CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Editora Lumen Júris. 2008 , p. 75.
[13] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressupostos, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=288. Acesso em: 13 de julho de 2009.
[14] DIAS, Maria Berenice. op. cit., p. 407.
[15] DIAS, Maria Berenice. op.cit., p. 29.
[16] TARTUCE, Flávio. Danos Morais por Abandono Moral. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. vol. 7, Porto Alegre : Magister. dez./jan. 2009, p. 107.
[17] DIAS, Maria Berenice. op.cit., p. 409.
[18] CASTRO, Leonardo; ELAINE, Isabel. Preço do amor: punir abandono afetivo não aproxima pais e filhos. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?noticias¬icia=2008. Acesso em: 26 de dezembro de 2007.
[19] LOMEU, Leandro Soares. Direito Civil: Atualidades na perspectiva civil-constitucional. Pará de Minas: Virtual Books, 2008, p. 87.
[20] LOBO, Paulo Luiz Netto. op. cit.
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