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Como o Leão da Montanha...
I - Do personagem título:
Durante a minha infância, havia um personagem - o Leão da Montanha - que me impressionava muito, pela maneira como lidava com situações que lhe traziam, de algum modo, um tipo qualquer de desconforto, conflito, risco ou impasse: ele simplesmente evitava a todo custo a situação aflitiva, se retirando do ambiente, dizendo sempre sua frase-chavão: "saída estratégica pela direita (ou esquerda)". Talvez alguns de vocês, leitores, se lembrem deste personagem que, ao menos para mim, era tão marcante...
No último mês de outubro, tive a oportunidade de participar, como Técnica do Ministério Público do Rio de Janeiro, de dois eventos sensacionais: o Congresso Internacional Psicossocial Jurídico, em Brasília, organizado pelo TJ-DFT, e o VII Congresso Nacional do IBDFAM, em Belo Horizonte, organizado por este Instituto que nos é tão caro a todos, pela importância fundamental que teve e que continua tendo para o desenvolvimento do Direito das Famílias. Ambos os eventos foram, como disse, sensacionais, e me proporcionaram rico aprendizado e importantes reflexões que certamente muito contribuirão para a qualidade de meu trabalho como psicóloga perita do MP/RJ.
Apesar disto, voltei das duas viagens com certo incômodo, certa indignação, que até há poucos instantes não sabia explicar ou definir, até que vi, em um site da Internet, a figura do Leão da Montanha, e tive um insight sobre o que exatamente estava me causando tanta angústia, um mal-estar inominado que me gerava profunda aflição, que crescia á medida que o tempo passava e os dois eventos se desenvolviam.
Ao ver o desenho do Leão da Montanha, compreendi tudo: está aí o problema, o xis da questão: estamos todos, muitas vezes sem sequer nos darmos conta, agindo como aquele personagem e tomando uma saída estratégica pela direita (ou esquerda, se preferirem), evitando o enfrentamento das verdadeiras questões, que geralmente são situações que geram desconforto e uma sensação de impotência ou incapacidade de solucioná-las. Explico-me melhor, através dos exemplos que fui colhendo nos dias que passei assistindo e participando dos dois eventos.
II - Das situações vivenciadas:
Logo no primeiro evento, em Brasília, ouvi comentários a respeito de um parecer feito por uma Promotora de Justiça do Paraná que se manifestou contrariamente à adoção de uma criança de quatro anos por um rapaz que vivia uma relação homossexual (ou homoafetiva, como prefere denominar a sempre admirável Dra. Maria Berenice). Segundo me contaram, este rapaz já havia se submetido e sido aprovado em todas as avaliações feitas pela equipe técnica interdisciplinar responsável pelas adoções do lugar. A alegação da Promotora, ao opinar contra a adoção, teria sido a falta de discernimento daquela criança para aceitar viver em uma situação familiar em que seria certamente alvo de grande preconceito social. Declarou ela, em sua manifestação, que aquele rapaz poderia adotar sim, desde que a pessoa adotada tivesse mais de doze anos de idade, podendo assim ter suficiente entendimento a respeito da questão, para decidir, por ela mesma, enfrentar todo aquele preconceito.
No mesmo evento, em Brasília, e também alguns dias depois, em Belo Horizonte, ouvi diversos palestrantes - juristas, psicólogos e assistentes sociais - discorrerem sobre a Guarda Compartilhada. Alguns deles, porém, repetiam, como um mantra: "se os pais não se entendem, se sequer se comunicam, então não estão em condições de exercer a guarda compartilhada. Neste caso, a guarda exclusiva deve continuar sendo a aplicada".
Antes mesmo de viajar para os dois Congressos, quando estava ainda na fase de produção do livro "Psicologia na Prática Jurídica: a Criança em Foco", do qual sou coordenadora e coautora, vivi uma grande decepção ao ver uma das pessoas que convidara para nele escrever e que muito me honrara com a aceitação do convite, declinar dele por ter descoberto que haveria outras pessoas que escreveriam no livro e tratariam do tema "Alienação Parental". Este meu convidado, que desistiu de participar da obra na última hora, tem um trabalho maravilhoso na luta contra o abuso sexual infanto-juvenil, sendo um dos expoentes do seu país de origem no tratamento do tema, e alegou, ao declinar do convite, que não poderia jamais ter seu nome associado a uma obra que tratava do tema "Alienação Parental", que, segundo ele, era algo que não existia e que os pais abusadores haviam inventado para escaparem da punição legal.
Em Belo Horizonte, durante o Congresso do IBDFAM, tive a oportunidade de conversar com outra pessoa que muito admiro, pelo trabalho que desenvolve em prol dos direitos das crianças à convivência com seus pais. Ao lhe contar sobre o episódio vivido, sem revelar a identidade do personagem principal, é claro, fui surpreendida pela seguinte resposta: "Uma criança ser abusada sexualmente pelo pai não é tão grave assim: tem tratamento!"
Situações como estas acima narradas foram me deixando com uma sensação esquisita de incômodo que não sabia definir, e que se tornou extremamente clara assim que vi a figura do Leão da Montanha, naquele site da Internet: em todas elas, existe alguém - jurista, psicólogo, assistente social ou qualquer pessoa envolvida com questões afetas às nossas crianças e adolescentes -, que, diante de uma situação incômoda, que não sabe talvez como resolver, faz uma "saída estratégica pela direita", negando o problema, ao invés de enfrentá-lo!
III - Do indeferimento da adoção homoparental:
Lógico que a Promotora de Justiça está provavelmente certa quando prevê que a criança adotada por um casal homoafetivo sofrerá muitos preconceitos sociais. Não resta a menor dúvida disso: o preconceito de fato existe! Eu diria que é praticamente impossível vivermos imunes a ele: seja por sermos altos, baixos, magros, gordos, feios, bonitos, burros ou inteligentes... Todos nós temos que lidar, diariamente, com uma cota do preconceito existente nessa sociedade de humanos! Entre crianças, principalmente, isto é facilmente constatado, pois elas são bem mais transparentes que nós adultos, em relação às suas opiniões e aos seus afetos! Homossexuais, mais especificamente, são rotineiramente tratados de forma desrespeitosa e discriminatória. Mesmo por representantes do Estado, que muitas vezes lidam com eles como se fossem "cidadãos de segunda classe", procurando pretextos para lhes negar direitos que obviamente mereceriam, e que só não lhe são conferidos por um bem ou mal disfarçado preconceito daquele a quem cabe analisar sua situação.
Preconceito contra homossexuais existe de fato! Como também existiam preconceitos contra divorciados e contra mães solteiras, até bem pouco tempo atrás, na História. Nem por isso adoções unilaterais deixaram de ser dadas para pessoas que portavam estes estados civis, sem que fosse jamais perguntado às crianças se estariam dispostas a enfrentá-los, em seu novo lar. Como também enfrentam preconceito as crianças adotadas por pais de raça diferente da sua; as adotadas por pais mais idosos; as adotadas por pessoas portadoras de algum tipo de deficiência, etc... Também não me lembro, entretanto, de jamais ter lido em algum lugar que alguém achasse necessário perguntar a estas crianças se estavam dispostas a enfrentar o preconceito de que seriam vítimas após esta adoção... Provavelmente porque parecia evidente, até agora, que enfrentar qualquer preconceito - inclusive o da própria adoção por si mesma, seja lá quem for o pai ou mãe adotivo - era um mal menor que a criança crescer em um abrigo, sem ninguém que se ocupe de forma mais constante dela, incluindo-a em um projeto comum de vida...
Mesmo porque, é preciso que se lembre, também existe um imenso preconceito contra crianças institucionalizadas, filhas de pais e mães desconhecidos ou de pais e mães que as abandonaram ou fizeram algo tão grave que tiveram destituído o seu Poder Familiar... Quando esta criança, além de institucionalizada, também é portadora do Vírus da AIDS, como a menina que o rapaz queria adotar, então... o preconceito surge ainda mais forte e terrível! É, por isso, realmente lamentável que a Justiça não possa viajar no tempo para perguntar a esta menina, já adolescente ou adulta, qual dos preconceitos ela preferia enfrentar, em sua vida, já que, como demonstrado, a algum deles está irremediavelmente condenada!
Diante desta impossibilidade, resta à Justiça decidir em seu lugar! Talvez sem sequer ter percebido, posto que suas concepções só lhe permitiram ver, naquele momento, o preconceito que, de algum modo, lhe tocava mais de perto... Provavelmente pensando, com sinceridade, que estava apenas evitando que a dita menina tivesse que enfrentar no futuro as situações constrangedoras e dolorosas que a homofobia, com qualquer outro preconceito, em geral causa, a Promotora de Justiça, ao elaborar seu parecer, fez uma escolha para a vida daquela criança. Buscando livrá-la do preconceito gerado pela configuração familiar pouco tradicional, ela possivelmente a empurrou, no mesmo ato, para o preconceito criado pela institucionalização e pelo crescimento com uma ausência total de qualquer tipo de família!
Mas triste mesmo é pensar que, querendo evitar a situação-problema (preconceito social contra famílias homoafetivas), esta Promotora decidiu muito mais que o tipo de preconceito enfrentado pela criança. Ela também decidiu, de certa forma, com que tipos de recursos internos e externos a menina poderia contar para o enfrentamento dos preconceitos que vai encontrar em seu caminho... Todos nós, como já afirmado, enfrentamos preconceitos, em alguma medida. É durante o desenvolvimento de nossa personalidade, na construção de nossa subjetividade, que obtemos recursos psíquicos para lidar com tais situações. Grande parte desses recursos advém justamente de nossa família -aquelas pessoas a quem nos vinculamos por laços afetivos e sensação de pertencimento, que nos servem de referência na construção de nossa personalidade e a quem supomos que poderemos recorrer, em caso de necessidade material ou emocional. É geralmente nela, também, que encontramos certo suporte emocional para lidarmos com situações que não nos são favoráveis ou agradáveis...
Considerando que obstar a adoção de uma criança que já está fora da faixa etária mais procurada pelos candidatos a pais adotivos e que, ainda por cima, é portadora do vírus da AIDS, talvez seja também condená-la a crescer "depositada" em uma instituição de acolhimento, sem ninguém que possa desempenhar perante ela funções tão cruciais em seu desenvolvimento, isto pode significar também fazê-la crescer sem os recursos que poderiam advir de uma família sua, mesmo que configurada de forma diferente da tradicional, mas que poderia lhe dar, com maior facilidade, uma base segura de afeto, acolhendo suas dúvidas e incertezas e a orientando na melhor forma de enfrentar as questões advindas do estranhamento social.
A "saída estratégica pela direita", portanto, neste caso, a meu ver, dá em um despenhadeiro... Espero e confio, assim, que o parecer não seja acolhido pelo Juiz que for julgar a causa, ou que, sendo acolhido e havendo recurso, a decisão desfavorável à adoção possa ser revista em segunda instância, para que não apenas a criança e os adotantes, mas principalmente a Promotora que elaborou o parecer possam ser libertos do peso dessa escolha ali feita, ao tentar evitar um problema sócio-cultural. Problema este que, para ser modificado, não pode mais admitir "saídas estratégicas pela direita"! Ao contrário: precisa, entre outros fatores, que a Justiça tenha coragem de enfrentá-lo, se posicionando contra o preconceito, ao invés de se render a ele, e passando a tratar de forma mais natural, com real isonomia, todos os cidadãos, independente de sua orientação sexual.
IV - Da dita impossibilidade de casais com difícil relacionamento exercerem a guarda Compartilhada
Da mesma forma, penso que também agem como o Leão da Montanha todos os especialistas, de todas as áreas, que repetem o discurso fácil de que "um casal que não se entende não tem condições de exercer a Guarda Compartilhada!" Em primeiro lugar, como todos já sabemos, a Guarda Compartilhada surgiu no cenário jurídico nacional, pelo menos em grande parte, como proposta de grupos de genitores que, separados de seus ex-cônjuges ou companheiros, se encontravam impedidos por eles de conviver com os próprios filhos, sendo portanto vítimas da chamada Alienação Parental. A Guarda Compartilhada surgiu, portanto, como uma esperança ou uma tentativa de impedir o distanciamento que normalmente ocorre entre a criança e o genitor que não fica com a guarda, mesmo quando o guardião não é um alienador. Ela surgiu como um meio de tentarmos garantir às crianças, filhas de pais separados, a observação a seu direito fundamental de conviver com ambos e de ter os dois participando ativamente de suas vidas e acompanhando de perto o seu desenvolvimento. Em verdade, crianças filhas de pais que se entendem bem, que mantêm um relacionamento saudável, sequer precisam de que seja estabelecida judicialmente a guarda compartilhada, pois ela acontece naturalmente: ainda que seja determinado pelo Juiz que a criança ficará sob a guarda de um dos genitores, o outro tem livre acesso a ela, participando e sendo participado de tudo que acontece de importante em sua vida.
O problema a ser enfrentado ocorre justamente quando os referidos pais não se entendem! O estabelecimento da guarda compartilhada como regra constitui uma tentativa do legislador de lidar com o problema, "desempoderando" o genitor guardião e sinalizando para ambos que o Poder Familiar dos dois permanece inalterado e que ambos têm igual importância na vida daquele filho, precisando dividir, por isso, responsabilidades, direitos e deveres. O estabelecimento desse tipo de guarda colaboraria, segundo esperamos, para impedir ou ao menos dificultar a alienação parental. Parece-me, portanto, que, quando os especialistas das diversas áreas defendem a idéia de que "se os pais não se entendem, não têm condições de exercer esse tipo de guarda", estão, em verdade, deixando de enfrentar o problema, lançando novamente mão da "saída estratégica pela direita".
Ora, eu pergunto: se esses pais não têm condições de exercer a guarda compartilhada, teriam condições de exercer a exclusiva? É óbvio que não! Se não são capazes nem de dialogar, como farão para, com a guarda exclusiva estipulada, assegurar a ampla convivência daquele filho ou filha com ambos os genitores??? Além do mais, a estipulação deste tipo de guarda, neste caso, não facilitaria - e muito - e tornaria extremamente provável, a execução da alienação parental pelo genitor detentor da guarda? Mais uma vez, me parece, que a "saída estratégica pela direita", ao evitar enfrentar a questão problema (relacionamento de pais que não conseguem sequer dialogar), conduz a um abismo, pois propicia a alienação parental e o afastamento de um dos genitores do filho, em um total descumprimento do preceito constitucional que garante a todas as crianças a convivência familiar, o que significa a convivência com ambos os genitores e suas famílias!
Ao invés disso, novamente, talvez devêssemos assumir uma postura oposta, de enfrentamento do verdadeiro problema, que é a incapacidade daqueles genitores de manterem uma relação ao menos cordial o suficiente para continuarem ambos exercendo suas funções parentais! Para tanto, a meu ver, só há um caminho: reforçar cada vez mais a Guarda Compartilhada! Só o estabelecimento desse tipo de guarda torna menos cômoda a situação do genitor guardião, forçando ambos a buscarem a solução para o conflito. Paralelamente, é claro, considerando que é dever do Estado dar suporte e apoio às famílias, para que elas consigam, assim, garantir a observância dos direitos de suas crianças, deveria haver um maior investimento na mediação, na conciliação, na terapia familiar e em todas as formas conhecidas de auxílio àquelas famílias, de modo que aqueles pais, hoje incapazes, pudessem desenvolver uma capacidade mínima necessária para manterem um relacionamento que assegurasse a seus filhos o direito de crescerem com a presença de ambos em suas vidas.
V - Das quatro possíveis realidades envolvendo alienação parental e/ou abuso sexual incestogênico:
O mesmo mecanismo usado pelo Leão da Montanha pode ser percebido nas outras duas situações acima relatadas... Nós, que lidamos diariamente com situações jurídicas que envolvem crianças e adolescentes, conhecemos bem quatro realidades, com que nos deparamos infelizmente bastante amiúde em nosso trabalho cotidiano:
A primeira realidade é a de que existem pais (e mães) - biológicos ou socioafetivos - que abusam sexualmente de seus filhos! Por mais que isto nos choque, sabemos que as estatísticas mostram que a maior parte dos abusos sexuais infanto-juvenis são intrafamiliares, praticados por pais ou padrastos - pessoas que ocupam o espaço psicopaternal da pequena vítima. Sabemos também que as conseqüências do abuso vivido são devastadoras: segundo demonstram diversas pesquisas, as perspectivas a longo prazo para crianças abusadas sexualmente não são nada boas, em especial em casos onde o abuso acontece de forma mais grave ou frequente: é muito mais provável que abusem de substâncias tóxicas na adolescência e na idade adulta, tentem suicídio, tenham problemas emocionais, como ansiedade, depressão ou formas mais sérias de doença emocional, e apresentem QI mais baixo e pior desempenho escolar. Essas crianças terão, provavelmente, mais dificuldade para estabelecer amizades íntimas na idade escolar e na adolescência, e também tenderão a apresentar grande variedade de perturbações, incluindo medos, problemas de comportamento, promiscuidade ou agressões sexuais na adolescência e na idade adulta, baixa auto-estima e transtorno de estresse pós-traumático - um padrão de perturbação que inclui pesadelos, flashbacks do evento traumático, um esforço constante para não pensar nem se lembrar dele e sinais de vigilância aumentada como hipervigilância, reações de susto exageradas, perturbações do sono e interferência na concentração e na atenção. É certo que nem sempre as crianças que sofreram abuso sexual apresentam todos esses sintomas, mas é muito provável que manifestem alguma forma de perturbação significativa. Quanto mais prolongado e mais grave o abuso, maior a probabilidade de surgirem problemas como os acima descritos. Esta é, portanto, uma realidade concreta, que bate todos os dias às portas dos tribunais, para que com ela lidemos.
A segunda realidade é a de que existem pais (e mães) que praticam a alienação parental contra o outro genitor da criança - e, é claro, contra a própria criança! Acredito que todos nós conheçamos pelo menos um caso em que, após o fim do relacionamento amoroso, homens ou mulheres ressentidos, magoados, feridos em seu amor próprio e bastante rancorosos, buscam um "ajuste de contas", uma forma pessoal de vingança ou a punição de seu ex-cônjuge ou ex-companheiro, utilizando para isto a criança, filha de ambos, como instrumento. Eles(as), deixando que o amor próprio ferido extrapole - e muito! - o amor de pai ou de mãe por aquela criança, iniciam uma campanha diária de desmoralização e desqualificação do outro genitor da criança; fazem o possível para evitar, de todas as formas o contato do filho ou filha com ele; e agem de forma tal que logo a criança percebe o que seu guardião ou guardiã espera dela e se sente em um conflito de lealdade que lhe faz muito mal, vendo-se obrigada a escolher entre seus dois principais afetos, abrindo mão, geralmente, daquele com quem tem menor convívio... Esta é também uma realidade triste, que afronta diretamente o direito dessa criança à convivência com ambos os pais, à presença dos dois genitores em sua vida, e que bate todos os dias às portas dos tribunais, buscando solução.
As outras duas realidades acontecem quando estas duas primeiras se cruzam, e tornam os desafios propostos muito mais difíceis e complexos. A terceira diz respeito a pais ou mães que, no auge do seu transtorno, causado pela separação do casal, fazem falsas acusações contra o genitor que desejam punir e afastar, imputando-lhes falsamente condutas criminosas que não foram por eles cometidas, como, por exemplo, o abuso sexual do filho ou filha. Esses genitores tanto repetem e reconstrõem a história por eles inventada, recontando-a em diversos locais e para diferentes pessoas, e, principalmente, diante da própria criança, supostamente vítima, que acabam criando a chamada "falsa memória" em seu filho ou filha, geralmente bem pequeno, que termina se acreditando realmente vítima de um ato imperdoável praticado pelo outro genitor e desenvolvendo um verdadeiro terror dele, totalmente justificado pelo que julga ter vivido.
Todas as vezes em que me deparo com uma acusação desse tipo, feita por um genitor contra outro, invade-me um grande pesar pela criança, que já é vítima de abuso, independente de a acusação feita ser verdadeira ou não! Caso sejam verdadeiros os fatos, ela foi vítima de abuso sexual, e sofrerá, com grande probabilidade, alguma das terríveis conseqüências acima enumeradas. Caso sejam falsos, ela também foi vítima: do abuso emocional perpetrado pelo genitor alienador, e também terá grande probabilidade de sofrer todas aquelas conseqüências, tendo em vista que, para ela, em seu íntimo, o abuso sexual inventado foi real. Ela se acredita abusada - e o foi realmente, só que pelo genitor alienador, que utilizou a imagem do genitor alienado como instrumento daquele abuso - e terá, conseqüentemente, a mesma probabilidade de desenvolver os problemas e sintomas deixados pelo abuso sexual incestogênico real.
Certa vez atendi a um caso, em uma das Promotorias de Infância da Capital do Rio de Janeiro, em que uma mãe havia levado a filha bem pequena, logo cedo pela manhã até um órgão de revelação de abuso, acusando o pai da menina de tê-la estuprado, e exigindo que medidas fossem tomadas para manter a criança protegida. A equipe que a atendeu, ao ver a menina, percebeu que havia indícios reais de abuso, já que a genitália da criança parecia ter sido de fato "arrombada", e fez os encaminhamentos devidos, orientando a genitora a comparecer ao Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, IML, etc... O caso acabou chegando à Promotoria de Infância, é claro. No dia em que a mãe ia conversar comigo e com a Promotora, que, pela situação bárbara e delicada, havia pedido que eu estivesse junto no momento de ouvir aquela mãe, recebemos um FAX com o laudo do IML e, qual não foi a nossa surpresa ao constatar que, segundo o laudo, haviam sido encontrados, na vagina da menina, vestígios de cenoura e de pepino. Intrigada com o fato - já que pais que abusam, em geral, usam instrumento próprio -, a Promotora fez muitas perguntas à genitora da criança, buscando entender melhor o que havia realmente acontecido. A mãe da criança não resistiu às perguntas feitas e acabou nos contando, aos prantos, que havia sido ela própria quem havia introduzido aqueles legumes na vagina da filha, depois de dopá-la com tranqüilizantes, para colocar a culpa em cima do pai da criança e, desta forma, conseguir seu intento: tirar-lhe o direito de conviver com a filha! Essa mãe repetia, de forma febril, que não era justo ele continuar a ter direito à filha depois de tê-la abandonado e trocado por outra...
O caso narrado acima foi extremamente chocante para todos que nele atuaram e certamente também o é para todos que dele tomam ciência. Entretanto, é imperior entender que esse abuso sofrido pela criança e praticado pela mãe - que, neste caso concreto, é muito fácil de se perceber - ocorre todas as vezes em que o genitor alienador inventa histórias semelhantes sobre o outro, mesmo quando não chega ao ponto de transformar a idéia em ato. Para essas crianças, cujos genitores são falsamente acusados de crimes sexuais contra elas, o abuso sexual torna-se verdade em sua psiquê, sofrendo elas, assim, conseqüências tão graves quanto às que de fato foram abusadas! Esta também é uma realidade que, infelizmente, bate todos os dias nos tribunais, exigindo Justiça!
A quarta realidade, por fim, é de que existem pais/mães que abusam sexualmente de seus filhos e que, quando o abuso é denunciado, aproveitam-se do desespero do outro genitor, que deseja, acima de qualquer coisa, proteger seu filho ou filha dos abusos praticados pelo outro e acaba, por isso, agindo de forma muito semelhante à dos genitores alienadores, por entender que o modo mais seguro de proteger a criança é mantendo o ex-cônjuge ou ex-companheiro longe dela, sem qualquer contato. Os pais/mães abusadores então, buscam tirar proveito dessa semelhança de conduta e, visando a escapar incólumes da acusação criminal, além de permanecerem com livre acesso à criança, alegam a ocorrência da Alienação Parental, com criação de acusações falsas de abuso, cientes de que Juízes e Tibunais estão prontos a acolher o argumento, pela constância que o tema vem sendo discutido em todas as arenas que debatem relações familiares e os direitos delas advindo. Mais uma vez, esta é também uma realidade que bate todos os dias nos tribunais, passando muitas vezes desapercebida por julgadores menos atentos ou ainda pouco cientes dela.
VI - Do desafio de diferenciá-las:
O fato de que essas quatro realidades existem - as duas últimas principalmente - nos coloca um problema enorme: como detectá-las e diferenciá-las? Isto é, em geral, bastante difícil e delicado! É claro que a existência de genitores abusadores que usam como estratégia de defesa o contra-ataque, acusando o outro de estar praticando a Alienação Parental, criando "falsas memórias" nos filhos e os programando para repetir a história inventada como se verdadeira fosse, sem dúvida atrapalha - e muito! - a ação daqueles que lutam contra o abuso sexual infanto-juvenil, posto que, mais uma vez, a palavra da criança é colocada em questão, desacreditada. Mas não podemos, por isso, negar a existência do problema, como quer o quase-coautor do meu livro... Não resolve dizermos simplesmente que a Alienação Parental não existe, é invenção! É fato que ela existe! Negar isto para, novamente, evitar o problema principal - fazer a distinção das duas situações, para de fato conseguirmos assegurar os direitos da criança - é também buscar uma "saída estratégica pela direita", que, mais uma vez, nos conduzirá a um precipício, pois crianças continuarão sendo vítimas desse afastamento compulsório de seus pais e perdendo tudo aquilo que eles acrescentariam em suas vidas.
Por outro lado, também não me parece solução apropriada a sugerida pela fala de meu último interlocutor, ao reduzir a importância dos danos causados pelo abuso sexual incestogênico! É claro que as falsas denúncias de crimes sexuais praticados por genitores contra os filhos atrapalham - e muito! - a luta desses pais e mães pelo direito a conviver com sua prole... Mas a desvalorização das conseqüências de um abuso sexual infanto-juvenil também é uma forma de fuga da situação problema, outra "saída estratégica" que nada resolve, e que, mais uma vez, nos coloca frente a um precipício! Afinal, se é verdade que crianças abusadas sexualmente podem receber tratamento e, assim, pelo menos reduzir os danos provocados pela experiência, como defendeu o nobre advogado da convivência entre pais e filhos, também é verdade que crianças vítimas de alienação parental o podem igualmente! Felizmente, nós, seres humanos, somos dotados de certa capacidade de resiliência, que nos permite superar experiências desastrosas por que passamos e possibilita que nos reconstruamos a cada momento... Esta capacidade, entretanto, não pode servir de justificativa para que nada mais seja considerado grave ou para que não procuremos mais proteger nossas crianças e nossos adolescentes do que lhes possa fazer mal. Quero crer que este meu colega não refletiu o suficiente antes de fazer aquela colocação e que, se o tivesse feito, jamais repetiria tais palavras...
VII - A guisa de conclusão provisória:
Infelizmente, não tenho respostas ou soluções prontas para nenhum dos desafios aqui lembrados. Penso, entretanto, que tais dificuldades - ou qualquer outra com que nos deparemos em nossa atividade profissional - não devem nos servir de desculpas para adotarmos uma "saída estratégica pela direita", descartando a solução mais justa, ainda que mais difícil. Torço para que chegue o dia em que, retornando de encontros tão fecundos como estes dos quais participei, traga comigo um sentimento de entusiasmo e esperança, por perceber que todos - juristas, psicólogos, assistentes sociais e etc. - estão enfrentando de fato os problemas, desafiando-os com suas práticas concretas, ao invés de tentarem fugir deles, atirando-se por própria escolha em tristes despenhadeiros!
Beatrice Marinho Paulo - Psicóloga-Perita do Grupo de Apoio Técnico Especializado do Ministério Público/RJ; Autora e Coordenadora do livro "Psicologia na Prática Jurídica: a Criança em Foco"; Doutoranda e Mestre em Psicologia pela PUC-Rio e Mestre em Direito pela UGF; Professora de Psicologia Aplicada ao Direito, na Universidade Estácio de Sá; Especializanda em Psicologia Jurídica, pela Universidade Estácio de Sá e em Direito Especial da Criança e do Adolescente, pela UERJ e Associada do IBDFAM.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM