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De tanto amar
A felicidade não precisa de poesia. Jorge Luis Borges sempre soube que seu destino o levaria às palavras, sobretudo o que havia nele de tristezas. “A felicidade não precisa de transformações, a felicidade se basta”, disse em uma de suas confidências. Também à felicidade escapa a necessidade do direito. Onde há o amor, a regra some.
As palavras e a justiça, como criações humanas, começam onde acaba o amor. Mas não seriam o conhecimento e o direito outras formas de amar? Não falamos o tempo todo da necessidade de “conhecer o outro” como uma tarefa infindável do ato de amor, como se o outro, plenamente contido no meu saber, deixasse de ser objeto de desejo para se dar como certeza? E a sede de estrutura, que perpassa as relações humanas, mesmo as criadas no mais limpo campo do desejo, não seria também uma demanda a mais de afeto, que se torna comunicável por regras que valem antes e para além do amor?
Os textos reunidos a seguir são formas de desdobrar essas dúvidas. Mas não deixa de ser estranho que advogados se perguntem, nesta altura da trajetória da modernidade, pelo afeto e suas derivações. Quem fala em modernidade, ensinou Foucault, fala em superego.
A vida social está, para o filósofo, completamente ligada à ascensão de um poder disciplinar. Mas o que ele nos mostra é que este mesmo poder, que produz corpos dóceis (ao direito, à educação, à saúde e até mesmo às regras de sexualidade), pode ser instrumento de prazer. A sexualidade não é apenas algo a ser contido pelas forças sociais. Ela tem uma força própria que, independente do poder da norma, gera outra forma de poder.
O cruzamento entre os poderes e os discursos é o campo onde se movem os trabalhos realizados pelos autores desta publicação, interessados em entender em que o Direito contribui para mais liberdade, e não o contrário. O que a noção de afeto traz de novo, ao que parece, nas relações estudadas pelo Direito de Família, é a capacidade de se colocar em dúvida sobre as certezas, mesmo as consideradas mais dogmáticas e civilizatórias. A palavra surge onde manca a felicidade para fazê-la possível, não para julgá-la espúria.
Talvez o mais conhecido mito de amor seja o descrito por Platão em seu Banquete. Ao narrar a genealogia de Eros, Platão retoma a tradição que o descreve como um filho de Poros e Penia. Poros, ou Recurso, como o nome indica, é uma figura que tem seus encantos pela arte de servir de passagem, de via para a realização. Nos dá a idéia de que a paternidade é um projeto de tornar viável a continuidade de nossa descendência. Já Penia, de onde vem a palavra penúria, é uma mendiga que precisou aproveitar do sono de Poros para se unir a ele, esperando com isso diminuir suas dores. Tudo nela parece remeter a signos de falta: miséria, indigência, ignorância, ausência de lei. Como anti-Poros, Penia bem que poderia ganhar o nome de Aporia. O amor é filho e herdeiro destes portentos.
O amor ou Eros é inquieto e apaixonado, pobre em bens materiais, mas rico em possibilidades. Ele não tem nada. Mas quer tudo (uma definição de amor dada por Lacan fala do projeto impossível de se dar o que não se tem). A principal conclusão de Platão é a de que o amor é sempre intermediário, um meio-termo.
E talvez a melhor encruzilhada disposta ao amor seja a que o coloca entre a sabedoria e ignorância. Por isso, o amor é filósofo. Fosse sábio como um Deus, não precisaria de filosofia, fosse estúpido como um ignorante, não aspiraria a nada.
Eros está consciente de sua carência e quer, a todo custo, preenchê-la. É notável como o diálogo platônico em que figura este mito faz suceder discursos de várias pessoas, do poeta trágico e do comediógrafo, até a fala do filósofo Sócrates, que encontra todos embriagados pelo vinho e pelas belezas das palavras dos poetas.
A filosofia não contradiz a palavra do rapsodo, ela ganha sentido depois que esta é dita e adormece os homens. A palavra do filósofo só pode ser ouvida em estado de êxtase e sonho.
Se Platão e seu amor apontam para uma dimensão necessariamente relacional, Aristóteles vai trazer a ele uma preocupação classificatória (nisso ele é tão advogado quanto Platão é poeta) e ascensional. O amor parte dos desejos do corpo para chegar à plenitude da alma, começa na carne para ir ao espírito, parte da paixão para se realizar na amizade.
Aristóteles via na amizade uma realização superior do amor. Os momentos anteriores, que iam da constituição da família à sua representação na Polis, apenas preparam o homem para o exercício superior da amizade. Há uma função da amizade que, diferente da pátria ou mátria, que parece sugerir uma fratria ao mesmo tempo emocional e política. Guiada por relações de amizade, com seu impulso necessário dado pelo saber, a fraternidade se afigura como uma sociedade ideal. O dissolvimento do amor em amizade é um momento de civilização que, ao mesmo tempo, torna a civilização caudatária de uma realização pessoal. Tudo começa no indivíduo, para a ele retornar. O homem, como animal político, quer realizar na polis a perfeição da amizade.
A história da filosofia, com muitas e belas variações, é um comentário marginal a estas duas posições: o amor passagem de Platão e o amor meta de Aristóteles. Mesmo a contribuição cristã, com a dimensão da caridade (já tematizada de certa forma por Aristóteles em outro contexto e solo de crenças) não chega a mudar este quadro.
A idéia de um amor ao próximo, ainda que a mais bela das criações humanas, tem um sentido muito mais político que psicológico. Para compreensão dos nossos males de amor, que redundam em palavras e leis, nos deixam mais desnorteados os filósofos que os profetas.
Dois pensadores, Marx e Freud, são personagens que, de alguma forma, se colocam entre os profetas e os filósofos no romance da humanidade. A concepção de amor que nos deixaram podem nos ajudar de alguma forma. Antes e além da metafísica, perguntam os dois pelo homem na História e pelo homem gerado por sua própria história. Tudo que adivinham é profético, tudo de que duvidam é filosófico.
Para a Psicanálise, em seus conceitos-chaves, parece que o amor é um problema de conhecimento, como destacou Adam Phillips (O Flerte): transferência, repressão, fetichismo, narcisismo, tudo isso parece apontar para uma concepção de enamoramento que se constrói como uma história de detetives. Os amantes, em sua trajetória, partem do engano e precisam superar este engano, mesmo que o resultado seja mais pálido que a situação que o gerou. Conhecer o outro e a nós mesmos no enamoramento é uma das formas de desilusão. Há quem diga que essa operação é sinal de maturidade. Para outros, mais estetas, uma forma de desencantamento. Os amantes, parece sugerir Freud, são sempre grande epistemólogos. O conhecer do amor, por mais antierótico que pareça, é a única abertura ao outro.
Marx não foi apenas o crítico da alienação do capitalismo como gerador de um estranhamento no campo da produção. Para ele, a alienação solapa as próprias bases do encontro humano. A relação afetiva para Marx é sinal e sintoma das possibilidades e limites da realização do homem. É a prova mais potente de que somos seres sociais e, por isso mesmo, passíveis de não realização pela perda da dimensão do encontro promovida pela sociedade de classes. A concepção marxista de amor é fundamentalmente antropológica, é um modo por excelência de realização humana.
Filosofia, Psicologia, Sociologia e Política. As dimensões do amor e do afeto não se aprisonam em conceitos. Talvez por isso, na prática diária do Direito, o que são a princípio conceitos ganham uma outra forma de compreensão no jogo detalhado e rumoroso do dia-a-dia. No fundo, há uma operação circular: o Direito parte de uma base de consenso ético para propor acertos de rota. No entanto, na prática cotidiana de julgar e analisar, coloca aqueles princípios em xeque e faz rodar a roda da ética tocada pela urgência da moral. O Direito vem sempre depois, mas retorna ao fundamento. A emoção parece que vem depois, mas só tem sentido se nos diz de algo que percebemos como eterno e preexistente.
Os artigos de juízes, advogados, promotores, juristas e outros estudiosos do Direito, que se seguem, partem de problemas reais. A guarda de filhos, o nome da mulher casada, a partilha de bens, a intromissão do Estado na vida íntima, a proteção dos menores, o direito ao afeto, a constituição da paternidade. De modo geral são temas que deixam uma sensação de divisão e clivagem no coração da sociedade, entre a dimensão do público e do privado. Na defesa do público não pode faltar a sensibilidade para o que escapa ao partilhamento; na bandeira da intimidade não deixa de ter sentido, em todos os momentos, a realização humana como convivência.
O Direito tem um compromisso com o afeto, talvez a melhor definição desta complexidade que estende uma mão ao particular e outra ao coletivo. Entender o afeto, destituído de sua tradução moral ou material, é fazer do Direito uma ciência compreensiva antes de judicativa. Pode exigir uma humildade muito grande. Pode demandar uma sabedoria custosa. Mas traz como resultado o sentimento que partilhamos da mesma ascendência que um dia juntou Poros e Penia e criou, com o amor, seu filho mais incompleto e surpreendente. A nova família, os novos pais, filhos e advogados são herdeiros - ainda bem - desta falta que ama.
*Filósofo, jornalista e psicólogo. Convidado pelo IBDFAM para escrever um comentário a partir dos artigos apresentados na revista.
Referência: Revista Especial Del Rey IBDFAM - Maio 2002
As palavras e a justiça, como criações humanas, começam onde acaba o amor. Mas não seriam o conhecimento e o direito outras formas de amar? Não falamos o tempo todo da necessidade de “conhecer o outro” como uma tarefa infindável do ato de amor, como se o outro, plenamente contido no meu saber, deixasse de ser objeto de desejo para se dar como certeza? E a sede de estrutura, que perpassa as relações humanas, mesmo as criadas no mais limpo campo do desejo, não seria também uma demanda a mais de afeto, que se torna comunicável por regras que valem antes e para além do amor?
Os textos reunidos a seguir são formas de desdobrar essas dúvidas. Mas não deixa de ser estranho que advogados se perguntem, nesta altura da trajetória da modernidade, pelo afeto e suas derivações. Quem fala em modernidade, ensinou Foucault, fala em superego.
A vida social está, para o filósofo, completamente ligada à ascensão de um poder disciplinar. Mas o que ele nos mostra é que este mesmo poder, que produz corpos dóceis (ao direito, à educação, à saúde e até mesmo às regras de sexualidade), pode ser instrumento de prazer. A sexualidade não é apenas algo a ser contido pelas forças sociais. Ela tem uma força própria que, independente do poder da norma, gera outra forma de poder.
O cruzamento entre os poderes e os discursos é o campo onde se movem os trabalhos realizados pelos autores desta publicação, interessados em entender em que o Direito contribui para mais liberdade, e não o contrário. O que a noção de afeto traz de novo, ao que parece, nas relações estudadas pelo Direito de Família, é a capacidade de se colocar em dúvida sobre as certezas, mesmo as consideradas mais dogmáticas e civilizatórias. A palavra surge onde manca a felicidade para fazê-la possível, não para julgá-la espúria.
Talvez o mais conhecido mito de amor seja o descrito por Platão em seu Banquete. Ao narrar a genealogia de Eros, Platão retoma a tradição que o descreve como um filho de Poros e Penia. Poros, ou Recurso, como o nome indica, é uma figura que tem seus encantos pela arte de servir de passagem, de via para a realização. Nos dá a idéia de que a paternidade é um projeto de tornar viável a continuidade de nossa descendência. Já Penia, de onde vem a palavra penúria, é uma mendiga que precisou aproveitar do sono de Poros para se unir a ele, esperando com isso diminuir suas dores. Tudo nela parece remeter a signos de falta: miséria, indigência, ignorância, ausência de lei. Como anti-Poros, Penia bem que poderia ganhar o nome de Aporia. O amor é filho e herdeiro destes portentos.
O amor ou Eros é inquieto e apaixonado, pobre em bens materiais, mas rico em possibilidades. Ele não tem nada. Mas quer tudo (uma definição de amor dada por Lacan fala do projeto impossível de se dar o que não se tem). A principal conclusão de Platão é a de que o amor é sempre intermediário, um meio-termo.
E talvez a melhor encruzilhada disposta ao amor seja a que o coloca entre a sabedoria e ignorância. Por isso, o amor é filósofo. Fosse sábio como um Deus, não precisaria de filosofia, fosse estúpido como um ignorante, não aspiraria a nada.
Eros está consciente de sua carência e quer, a todo custo, preenchê-la. É notável como o diálogo platônico em que figura este mito faz suceder discursos de várias pessoas, do poeta trágico e do comediógrafo, até a fala do filósofo Sócrates, que encontra todos embriagados pelo vinho e pelas belezas das palavras dos poetas.
A filosofia não contradiz a palavra do rapsodo, ela ganha sentido depois que esta é dita e adormece os homens. A palavra do filósofo só pode ser ouvida em estado de êxtase e sonho.
Se Platão e seu amor apontam para uma dimensão necessariamente relacional, Aristóteles vai trazer a ele uma preocupação classificatória (nisso ele é tão advogado quanto Platão é poeta) e ascensional. O amor parte dos desejos do corpo para chegar à plenitude da alma, começa na carne para ir ao espírito, parte da paixão para se realizar na amizade.
Aristóteles via na amizade uma realização superior do amor. Os momentos anteriores, que iam da constituição da família à sua representação na Polis, apenas preparam o homem para o exercício superior da amizade. Há uma função da amizade que, diferente da pátria ou mátria, que parece sugerir uma fratria ao mesmo tempo emocional e política. Guiada por relações de amizade, com seu impulso necessário dado pelo saber, a fraternidade se afigura como uma sociedade ideal. O dissolvimento do amor em amizade é um momento de civilização que, ao mesmo tempo, torna a civilização caudatária de uma realização pessoal. Tudo começa no indivíduo, para a ele retornar. O homem, como animal político, quer realizar na polis a perfeição da amizade.
A história da filosofia, com muitas e belas variações, é um comentário marginal a estas duas posições: o amor passagem de Platão e o amor meta de Aristóteles. Mesmo a contribuição cristã, com a dimensão da caridade (já tematizada de certa forma por Aristóteles em outro contexto e solo de crenças) não chega a mudar este quadro.
A idéia de um amor ao próximo, ainda que a mais bela das criações humanas, tem um sentido muito mais político que psicológico. Para compreensão dos nossos males de amor, que redundam em palavras e leis, nos deixam mais desnorteados os filósofos que os profetas.
Dois pensadores, Marx e Freud, são personagens que, de alguma forma, se colocam entre os profetas e os filósofos no romance da humanidade. A concepção de amor que nos deixaram podem nos ajudar de alguma forma. Antes e além da metafísica, perguntam os dois pelo homem na História e pelo homem gerado por sua própria história. Tudo que adivinham é profético, tudo de que duvidam é filosófico.
Para a Psicanálise, em seus conceitos-chaves, parece que o amor é um problema de conhecimento, como destacou Adam Phillips (O Flerte): transferência, repressão, fetichismo, narcisismo, tudo isso parece apontar para uma concepção de enamoramento que se constrói como uma história de detetives. Os amantes, em sua trajetória, partem do engano e precisam superar este engano, mesmo que o resultado seja mais pálido que a situação que o gerou. Conhecer o outro e a nós mesmos no enamoramento é uma das formas de desilusão. Há quem diga que essa operação é sinal de maturidade. Para outros, mais estetas, uma forma de desencantamento. Os amantes, parece sugerir Freud, são sempre grande epistemólogos. O conhecer do amor, por mais antierótico que pareça, é a única abertura ao outro.
Marx não foi apenas o crítico da alienação do capitalismo como gerador de um estranhamento no campo da produção. Para ele, a alienação solapa as próprias bases do encontro humano. A relação afetiva para Marx é sinal e sintoma das possibilidades e limites da realização do homem. É a prova mais potente de que somos seres sociais e, por isso mesmo, passíveis de não realização pela perda da dimensão do encontro promovida pela sociedade de classes. A concepção marxista de amor é fundamentalmente antropológica, é um modo por excelência de realização humana.
Filosofia, Psicologia, Sociologia e Política. As dimensões do amor e do afeto não se aprisonam em conceitos. Talvez por isso, na prática diária do Direito, o que são a princípio conceitos ganham uma outra forma de compreensão no jogo detalhado e rumoroso do dia-a-dia. No fundo, há uma operação circular: o Direito parte de uma base de consenso ético para propor acertos de rota. No entanto, na prática cotidiana de julgar e analisar, coloca aqueles princípios em xeque e faz rodar a roda da ética tocada pela urgência da moral. O Direito vem sempre depois, mas retorna ao fundamento. A emoção parece que vem depois, mas só tem sentido se nos diz de algo que percebemos como eterno e preexistente.
Os artigos de juízes, advogados, promotores, juristas e outros estudiosos do Direito, que se seguem, partem de problemas reais. A guarda de filhos, o nome da mulher casada, a partilha de bens, a intromissão do Estado na vida íntima, a proteção dos menores, o direito ao afeto, a constituição da paternidade. De modo geral são temas que deixam uma sensação de divisão e clivagem no coração da sociedade, entre a dimensão do público e do privado. Na defesa do público não pode faltar a sensibilidade para o que escapa ao partilhamento; na bandeira da intimidade não deixa de ter sentido, em todos os momentos, a realização humana como convivência.
O Direito tem um compromisso com o afeto, talvez a melhor definição desta complexidade que estende uma mão ao particular e outra ao coletivo. Entender o afeto, destituído de sua tradução moral ou material, é fazer do Direito uma ciência compreensiva antes de judicativa. Pode exigir uma humildade muito grande. Pode demandar uma sabedoria custosa. Mas traz como resultado o sentimento que partilhamos da mesma ascendência que um dia juntou Poros e Penia e criou, com o amor, seu filho mais incompleto e surpreendente. A nova família, os novos pais, filhos e advogados são herdeiros - ainda bem - desta falta que ama.
*Filósofo, jornalista e psicólogo. Convidado pelo IBDFAM para escrever um comentário a partir dos artigos apresentados na revista.
Referência: Revista Especial Del Rey IBDFAM - Maio 2002
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