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Convenção 156 da OIT: trabalho e família em harmonia
Convenção 156 da OIT: trabalho e família em harmonia
Comba Marques Porto*
Notícias recentes relacionadas com a aplicação da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do seqüestro internacional de crianças sugerem reflexões sobre a importância do direito internacional na construção dos direitos pátrios. Tal importância não se restringe às normas que visam disciplinar conflitos, como é o caso da referida Convenção de Haia já integrada ao nosso ordenamento desde 1º de janeiro de 2000. Há também convenções internacionais que visam ao fortalecimento dos direitos de cidadania, muitas delas sugerindo diretrizes a serem adotadas internamente pelo Estado e também pelas iniciativas privadas. São normas voltadas para evitar conflitos. Exemplo disto é a Convenção 156, da Organização Internacional do Trabalho - OIT, relativa à igualdade de oportunidades e de tratamento para os trabalhadores com responsabilidades familiares.
A comemoração dos 90 anos da criação da OIT (49 anos de sua instalação no Brasil) é uma boa oportunidade para reconhecer e destacar a rica participação deste organismo internacional no nosso processo de construção dos direitos sociais, estes alçados à categoria de princípios e garantias fundamentais de cidadania na Constituição de 1988. A OIT vem nos apontando os caminhos que permitam efetivar práticas de igualdade no mercado de trabalho, com a eliminação de todos os entraves e de todas as formas de discriminação.
Das 188 Convenções da OIT, 80 foram ratificadas pelo Brasil. Das 8 consideradas fundamentais, 7 igualmente foram ratificadas[1]. Estes dados não deixam de indicar avanços no sentido de sintonizar o nosso direito com o olhar mais amplo e não raro inovador das normas internacionais sugeridas por este organismo internacional. Mas o Brasil deve ao seu povo a adesão à Convenção 156 aprovada pela OIT em 1981.
Esta norma se aplica "aos trabalhadores de ambos os sexos com responsabilidades para com os filhos a seu cargo, quando essas responsabilidades limitem as suas possibilidades de se prepararem para a atividade econômica, de ascenderem a ela, de nela participarem ou progredirem." (artigo 1º). O artigo 2º amplia tal aplicação para o caso das responsabilidades dos trabalhadores de ambos os sexos sobre "outros membros da família direta que suscitem necessidade manifesta dos cuidados e do amparo". O artigo 3º visa impedir quaisquer discriminações de trabalhadores e de trabalhadoras em razão de suas responsabilidades familiares, propondo medidas que venham a impedir o conflito entre as responsabilidades profissionais e os encargos familiares.
A adoção desta Convenção pelo Brasil, com a implementação das medidas práticas nela inspiradas, viria a aplacar o conflito emocional que afeta o íntimo de homens e mulheres aturdidos pela dificuldade de conciliar as responsabilidades profissionais (em muitos casos acumuladas com as tarefas da formação escolar), com as responsabilidades familiares, estas de maior ênfase no que concerne às crianças e não menos pesadas e onerosas quando se trata dos cuidados com familiares idosos.
No Brasil, é notória a ausência do Estado no apoio às famílias no que concerne às responsabilidades e aos afazeres domésticos. Mesmo para quem dispõe de recursos para contratar empregadas domésticas, o problema não está, em tese, resolvido. A mão de obra disponível é de baixa qualificação. O critério da confiança é fundamental quando se trata de serviços relacionados com o cuidado de crianças e de idosos. No mercado do trabalho doméstico, mesmo onde há fartura na oferta de mão de obra, não se tem a garantia do atendimento de tais qualificadores. A escolha de quem contratar é sempre um passo arriscado, pois está em jogo a responsabilidade de quem zela pela família. Nas atuais condições, pode-se afirmar que no Brasil é praticamente impossível se sentir livre para assumir compromissos profissionais quando se responde por família. Mais difícil ainda é conseguir conciliar em termos práticos as responsabilidades profissionais com as responsabilidades familiares.
Para o alcance dos seus objetivos, a Convenção 156 estabelece ainda que sejam tomadas todas as medidas que visem "desenvolver ou promover serviços comunitários, públicos ou privados, tais como os serviços de instalação de cuidados com a infância e de ajuda à família". Destaque-se o artigo 8º da norma em comento, com base no qual as responsabilidades familiares não podem, enquanto tais, constituir motivo válido para por fim à relação de trabalho. Autoriza-se ainda a possibilidade de aplicação das regras desta valiosa Convenção não só pela via legislativa, mas também pelas convenções coletivas de trabalho, pelos regulamentos de empresa, pelas sentenças arbitrais e pelas decisões judiciais. Ou seja, a incorporação da Convenção 156 da OIT no direito pátrio autorizaria o Juiz do Trabalho a tornar nula a dispensa e determinar a readmissão do empregado ou da empregada, uma vez que restasse provado que outra conduta não lhe seria exigível em razão de fato relacionado com sua responsabilidade familiar. Em tal circunstância, a despedida poderia ser considerada obstativa ao direito ao trabalho, este tido nos termos da Convenção 156 da OIT como um direito a ser exercido sem prejuízo das responsabilidades familiares.
Segundo dados da OIT[2], tensões entre trabalho e vida familiar geram um alto custo para mais de 100 milhões de mulheres inseridas no mercado de trabalho da América Latina e Caribe. O citado Relatório indica que "53% das mulheres da América Latina e do Caribe estão incorporadas ao mercado de trabalho". Diante da fragilidade do apoio do Estado no que toca aos afazeres vinculados à maternidade e demais responsabilidades domésticas, esta promissora inserção das mulheres no mercado de trabalho, por certo, ocorre à custa de muitos sacrifícios. Não bastasse a falta de aporte financeiro para a contratação de serviços domésticos, os resquícios da cultura machista fazem pesar mais sobre as mulheres os encargos gerais com a família, notadamente com crianças e idosos, mesmo quanto às mulheres que estejam em igualdade de posição no mercado de trabalho em relação aos seus cônjuges ou companheiros.
No citado Relatório OIT/PNUD apresentado à 98ª Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, em junho de 2009, a conciliação entre a vida familiar ou pessoal e a vida laboral constitui "um dos maiores desafios de nosso tempo", já que "se trata de uma dimensão fundamental para promover a igualdade e combater a pobreza a partir do mundo do trabalho."[3]
Mas não seria só no campo do Direito do Trabalho que os poderosos efeitos da Convenção 156 da OIT se fariam sentir, uma vez ratificada e tornada lei no Brasil. Também na esfera do Direito de Família a Convenção 156 poderia ser de grande instrumentalidade no sentido de evitar conflitos.
As dificuldades com a condução da família, a provação diária vivida por seus responsáveis em razão da acumulação dos encargos pessoais e profissionais dão causa a desentendimentos, problemas decorrentes da pouca disponibilidade de tempo para os filhos, desencontros quanto às decisões relativas à educação dos filhos, múltiplos conflitos que passam, enfim, a pautar o triste caminho de rupturas muitas vezes irreparáveis.
O ideal da cidadania é que a família siga seu propósito com leveza. Para tanto, é imperioso que esteja estruturada, sobretudo economicamente. A liberdade para o exercício das responsabilidades profissionais é, então, a garantia fundamental da harmonia e da prosperidade familiar. Mais que isso. A família, independentemente da forma como ela se constitua, está intimamente ligada à perpetuação da espécie, ao projeto de fortalecimento dos povos e das nações. Impõe-se, assim, que esteja amparada para bem sobreviver do ponto de vista afetivo, psicológico e material. A Convenção 156 da OIT contempla a percepção desta importância da família como base da sociedade, na medida em que vê na garantia das condições para o livre exercício profissional uma das chaves para a eliminação da pobreza e dos problemas que esta acarreta. É de se esperar que o Governo do Brasil se torne igualmente sensível a tão elevado propósito e que não tarde o seu ato de ratificação deste valioso instrumento do direito internacional.
* Juíza Titular do Trabalho aposentada (TRT/1ª Região), advogada.
Julho, 2009.
[1] Dados obtidos em artigo publicado na folha de São Paulo de 14/06/2009 de autoria de Celso Amorim, diplomata, Ministro das Relações Exteriores do Governo do Brasil - pesquisa realizada na internet, no blog "Cidadania & Política", em 23/07/2009.
[2] Relatório sobre "Trabalho e Família: rumo a novas formas de conciliação com co-responsabilidade social" - OIT/PNUD - documento apresentado em Genebra - 98ª Conferência Internacional do Trabalho - junho de 2009.
[3] Idem.
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