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A paternidade socioafetiva e a formação da personalidade
A paternidade no Direito de Família contemporâneo apresenta distintas faces que, nem sempre, se encontram interligadas em uma mesma relação jurídica: a paternidade jurídica ou presumida (dado legal - imposto pela ordem jurídica), a paternidade científica ou biológica ou genética (dado revelado ou conquistado pela medicina genética) e a paternidade socioafetiva (dado cultural ou histórico, construído em conformidade à ordem axiológica de uma determinada época).
Pode-se ter uma paternidade jurídica sem ter a biológica, mas tendo a socioafetiva; pode existir a paternidade biológica sem existir a jurídica e a socioafetiva; pode-se, ainda, ter a paternidade socioafetiva, sem possuir a paternidade jurídica e a biológica.
Diante de tantas possibilidades, a grande indagação, fruto desta interligação de vínculos, é a seguinte: qual a verdadeira paternidade? É possível chegar-se a uma verdade real na revelação da paternidade? Se sim, qual é esta realidade que torna verdadeira a paternidade?
As tentativas de resposta a estas indagações estão, aos poucos, sendo delineadas no Direito de Família brasileiro, voltado que está para a família constitucionalizada, diversamente da encartada no sistema codificado de 1916. A paternidade passa a receber um conceito flexível e instrumental, tendo em mira o elo substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos, que poderá ter origem não apenas no casamento. Mas, sim, inteiramente atenta à qualidade da entidade familiar como núcleo voltado, precipuamente, à realização espiritual e ao desenvolvimento da personalidade de seus membros.(1)
A Constituição Federal de 1988 foi, efetivamente, um divisor de águas no que concerne aos valores da família contemporânea brasileira. A iniciar pelo art. 1º, III, que traduz o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, somado ao art. 3º, I, do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da solidariedade, parte-se rumo ao fenômeno da repersonalização das relações entre pais e filhos, deixando para trás o ranço da patrimonialização que sempre os ligou, para dar espaço a uma nova ordem axiológica, a um novo sujeito de direito nas relações familiares e, até mesmo, a uma nova face da paternidade: o vínculo socioafetivo que une pais e filhos, independentemente de vínculos biológicos.
João Batista Villela, em 1979, já estava a repensar o vínculo da paternidade biológica. Seu pensamento foi sábio e, já naquele ano, produziu uma reflexão a que chamou de Desbiologização da Paternidade.(2) A partir daí, o elo biológico da paternidade começou a ser repensado, chegando a bater às portas do Poder Judiciário para ecoar dele a força da paternidade socioafetiva e deixar, em segundo plano, a paternidade biológica.
Em uma Ação Negatória de Paternidade, cuja prova maior da inexistência do elo biológico entre pai e filho inscritos em certidão de nascimento era um teste de paternidade em DNA, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,(3) em sede de recurso de apelação, julgou a ação improcedente para fazer valer a paternidade socioafetiva, a qual, baseada na tendência de personificação do direito, vê a família como instrumento de realização do ser humano.
O suporte fático era uma “adoção à brasileira”, feita há 40 anos. O filho do casal foi criado e educado como “fulano de tal”, sendo que em torno deste nome construiu sua pessoa, sua imagem, sua personalidade, sua história de vida.
Decorridos 40 anos, o pai socioafetivo e jurídico entendeu por bem em negar, judicialmente, a paternidade mediante a comprovação da inexistência do elo biológico (exame em DNA) entre ele e seu filho. O Tribunal de Justiça do Paraná, em decisão inédita no Estado, voltando-se para os valores contemporâneos do Direito de Família, negou a pretensão do pai, autor da demanda, por entender que aniquilar a pessoa de “fulano de tal”, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, não tutelaria a dignidade humana.
Neste diapasão, prevaleceu a relação jurídica estabelecida, mesmo na inexistência de ligação genética entre o pai e o filho. Isto porque os julgadores, diante do fato, refletiram e concluíram que toda a história de vida do filho foi estruturada sobre o nome e o estado que possui. Do acórdão extrai-se interessante passagem que aduz o seguinte: “documentos, histórico escolar, profissão, cursos de graduação, propriedades, registros médicos, dentários, previdenciários, hospitalares, herança patrimonial advinda da falecida mãe formal, sua condição perante a sociedade curitibana, relacionamentos sociais de amizade e profissionais advindos de Clubes como Graciosa Country Club onde há notoriedade, enfim, tudo o que o apelante possui carrega o nome e a condição dada pelo autor/apelado”.
Vê-se, pois, que a formação da personalidade do filho deu-se, também e talvez principalmente, por influência de fatores sociais, advindos da estrutura familiar em que sempre se encontrou. Tirá-lo desta condição é, efetivamente, destruir o que ele é enquanto pessoa humana no ambiente em que vive.
É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico, ainda que seja da natureza do homem o ato de procriar. Em muitas das vezes, a filiação e a paternidade derivam de uma ligação genética, mas esta não é o bastante para a formação e afirmação do vínculo; é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo elo, dia após dia.
Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade seja, antes de tudo, biológica.
No entanto, o elo que une pais e filhos é, acima de tudo, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico.
*Advogada; Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR; Presidente da Seccional Paraná do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; Professora de Direito Civil da Faculdades do Brasil - UNIBRASIL
Pode-se ter uma paternidade jurídica sem ter a biológica, mas tendo a socioafetiva; pode existir a paternidade biológica sem existir a jurídica e a socioafetiva; pode-se, ainda, ter a paternidade socioafetiva, sem possuir a paternidade jurídica e a biológica.
Diante de tantas possibilidades, a grande indagação, fruto desta interligação de vínculos, é a seguinte: qual a verdadeira paternidade? É possível chegar-se a uma verdade real na revelação da paternidade? Se sim, qual é esta realidade que torna verdadeira a paternidade?
As tentativas de resposta a estas indagações estão, aos poucos, sendo delineadas no Direito de Família brasileiro, voltado que está para a família constitucionalizada, diversamente da encartada no sistema codificado de 1916. A paternidade passa a receber um conceito flexível e instrumental, tendo em mira o elo substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos, que poderá ter origem não apenas no casamento. Mas, sim, inteiramente atenta à qualidade da entidade familiar como núcleo voltado, precipuamente, à realização espiritual e ao desenvolvimento da personalidade de seus membros.(1)
A Constituição Federal de 1988 foi, efetivamente, um divisor de águas no que concerne aos valores da família contemporânea brasileira. A iniciar pelo art. 1º, III, que traduz o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, somado ao art. 3º, I, do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da solidariedade, parte-se rumo ao fenômeno da repersonalização das relações entre pais e filhos, deixando para trás o ranço da patrimonialização que sempre os ligou, para dar espaço a uma nova ordem axiológica, a um novo sujeito de direito nas relações familiares e, até mesmo, a uma nova face da paternidade: o vínculo socioafetivo que une pais e filhos, independentemente de vínculos biológicos.
João Batista Villela, em 1979, já estava a repensar o vínculo da paternidade biológica. Seu pensamento foi sábio e, já naquele ano, produziu uma reflexão a que chamou de Desbiologização da Paternidade.(2) A partir daí, o elo biológico da paternidade começou a ser repensado, chegando a bater às portas do Poder Judiciário para ecoar dele a força da paternidade socioafetiva e deixar, em segundo plano, a paternidade biológica.
Em uma Ação Negatória de Paternidade, cuja prova maior da inexistência do elo biológico entre pai e filho inscritos em certidão de nascimento era um teste de paternidade em DNA, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,(3) em sede de recurso de apelação, julgou a ação improcedente para fazer valer a paternidade socioafetiva, a qual, baseada na tendência de personificação do direito, vê a família como instrumento de realização do ser humano.
O suporte fático era uma “adoção à brasileira”, feita há 40 anos. O filho do casal foi criado e educado como “fulano de tal”, sendo que em torno deste nome construiu sua pessoa, sua imagem, sua personalidade, sua história de vida.
Decorridos 40 anos, o pai socioafetivo e jurídico entendeu por bem em negar, judicialmente, a paternidade mediante a comprovação da inexistência do elo biológico (exame em DNA) entre ele e seu filho. O Tribunal de Justiça do Paraná, em decisão inédita no Estado, voltando-se para os valores contemporâneos do Direito de Família, negou a pretensão do pai, autor da demanda, por entender que aniquilar a pessoa de “fulano de tal”, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, não tutelaria a dignidade humana.
Neste diapasão, prevaleceu a relação jurídica estabelecida, mesmo na inexistência de ligação genética entre o pai e o filho. Isto porque os julgadores, diante do fato, refletiram e concluíram que toda a história de vida do filho foi estruturada sobre o nome e o estado que possui. Do acórdão extrai-se interessante passagem que aduz o seguinte: “documentos, histórico escolar, profissão, cursos de graduação, propriedades, registros médicos, dentários, previdenciários, hospitalares, herança patrimonial advinda da falecida mãe formal, sua condição perante a sociedade curitibana, relacionamentos sociais de amizade e profissionais advindos de Clubes como Graciosa Country Club onde há notoriedade, enfim, tudo o que o apelante possui carrega o nome e a condição dada pelo autor/apelado”.
Vê-se, pois, que a formação da personalidade do filho deu-se, também e talvez principalmente, por influência de fatores sociais, advindos da estrutura familiar em que sempre se encontrou. Tirá-lo desta condição é, efetivamente, destruir o que ele é enquanto pessoa humana no ambiente em que vive.
É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico, ainda que seja da natureza do homem o ato de procriar. Em muitas das vezes, a filiação e a paternidade derivam de uma ligação genética, mas esta não é o bastante para a formação e afirmação do vínculo; é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo elo, dia após dia.
Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade seja, antes de tudo, biológica.
No entanto, o elo que une pais e filhos é, acima de tudo, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico.
*Advogada; Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR; Presidente da Seccional Paraná do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; Professora de Direito Civil da Faculdades do Brasil - UNIBRASIL
1. TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil constitucional das relações familiares. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 50.
2. REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Belo Horizonte, n. 21, p. 412, maio/1979.
3. Apelação Cível n. 108417-9, Relator Desembargador Accacio Cambi, j. em 12/12/2001. Decisão unânime.
Referência: Revista Especial Del Rey IBDFAM - Maio 2002
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