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Filiação Socioafetiva: os novos paradigmas de filiação
1- DA FILIAÇÃO
A magia principal da existência humana reside no sopro da vida, advento natural decorrente da procriação, ou seja, da condição espontânea da fecundação, por meio da qual dois seres humanos podem gerar, produzir, ou dar origem a um descendente da sua própria espécie.
Segundo Eduardo dos Santos (1999, p.435) "a procriação é, assim, um facto natural. E, transplantada ela para o plano do direito, dá lugar ao instituto da filiação", que na mesma linha de pensamento, Silvio de Salvo Venosa (2003, p.265), completa ser, esta (filiação) "um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos".
Destarte, a Filiação, na condition ratio de fato jurídico, mesmo que, de forma natural decorra da procriação, como vários doutos didaticamente relacionam, atenta, de fato, aos inúmeros efeitos jurídicos que dela decorrem, não se restringindo a tal origem genética, mas, sim, transcendendo a tais limites, manifestando-se como fenômeno jurídico de origem legal (tendo nas presunções e na adoção espécies de filiações jurídicas), médico-científica (nas inseminações artificiais) e socioafetivas.
1.1 DO CONCEITO DE FILIAÇÃO
Segundo o ensinamento de Edmilson Villaron Franceschinelli (1997, p.13), "filiação, derivado do latim filiatio, é a relação de parentesco que se estabelece entre os pais e o filho, na linha reta, gerando o estado de filho, decorrente de vínculo consangüíneo ou civil, e criando inúmeras conseqüências jurídicas".
Destarte, Luiz Edson Fachin (1992, p.34) alerta que "para apreender a verdadeira paternidade, exige mais que a observação do vínculo biológico, emergindo daí a valorização da realidade sócio-afetiva que liga um filho a seu pai".
Por fim, cabe-nos acrescentar que, segundo Paulo Lôbo (2008, p.192), filiação "é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial".
Diante de tal amplitude conceitual atualmente adotada, uma coisa é certa, é que a filiação se manifesta de formas distintas, ou seja, por diversos vínculos, quais coexistem diante do ordenamento jurídico vigente.
1.2 DA FILIAÇÃO E SEUS VÍNCULOS
Hodiernamente, não se pode restringir a filiação sob o prisma da procriação, mas, em verdade, torna-se indispensável apreciar a amplitude da sua concepção, permitindo esmiuçar as facetas da sua origem, posto que, doravante, atentaremos à filiação e seus vínculos.
Como a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a igualdade entre os filhos, extirpando em absoluto preocupações acerca da legitimidade ou não da filiação, independentemente da sua origem, não há que se falar em qualquer espécie de distinção. Entretanto, muitos doutrinadores mais tradicionais - a exemplo de Silvio de Salvo Venosa (2003, p.266) e Maria Helena Diniz (1997, p. 310) - insistem ainda na classificação da filiação sob a égide da distinção acerca da legitimidade, tratando de temas como filiação legítima, ilegítima, natural, adulterina, espúria, ou até sobre legitimação, porém pedimos a Maxima Vênia para discordar que tais aspectos sejam didáticos, visto que não mais correspondem à realidade, como não podem mais subsistir por conta da vedação constitucional expressa, assim, acreditamos que tais enfoques apenas possam ser relatados como mera evolução histórica acerca do tema.
Ante a necessidade didática, Fábio Ulhoa Coelho (2006, p.146) assevera que "a finalidade da classificação é ilustrativa, destina-se unicamente a delimitar a extensão do conceito, porque, independente do tipo de filiação, os direitos e deveres associados à relação vertical são absolutamente idênticos".
Destarte, a concepção moderna acerca da família e suas relações verticais de parentesco atestam, didaticamente, à divisão da filiação em um binômio: a filiação biológica e a não biológica. Contudo, mais abrangente, parece-nos, atentarmos aos vínculos que norteiam a filiação, quais sejam: o vínculo jurídico, o vínculo biológico e o vínculo socioafetivo.
1.2.1 Do Vínculo Jurídico
No horizonte jurídico, a preocupação em relacionar pais aos filhos sob a égide dos efeitos na ordem jurídica vem se protraindo no tempo desde a antiguidade. Atualmente, encontram-se sedimentados três expoentes dos vínculos jurídicos: A Presunção legal; a Adoção e a Inseminação Artificial Heteróloga.
1.2.1.1 Da Presunção Legal pater is est
A ânsia jurídica de tutelar o parentesco da filiação criou a presunção legal de paternidade, calcada na preconização do direito romano, que em face da certeza da maternidade contraposta à incerteza da paternidade (mater is semper certus, pater incertus), sob a concepção de legitimidade da filiação decorrente da preexistência do casamento[1], instituiu a presunção legal do "pater is est quem justae nuptiae demonstrant", ou seja, a figura paterna subsumia-se à presunção de que o pai estaria resumido à mera condição de marido da mãe.
Portanto, elucida Maria Alice Zaratin Lotufo (2002, p. 187), que "Se o filho é da mulher casada, presume-se que seja do marido"[2], já que "a fidelidade é um dos deveres do casamento".
É neste contexto axiológico que, segundo Flávia Lages de Castro (2007, p.99), desde o Direito de Família Romano, fora instituída a presunção legal, onde "A filiação legítima era presumida se o parto acontecesse, no mínimo, cento e oitenta dias da data em que o matrimônio fosse contraído ou, no máximo, trezentos dias após a dissolução do mesmo." Foi calcado nesta baliza romana que o Código Civil Brasileiro[3], manteve nestes moldes a previsão da presunção legal calcada no tempo da gestação.
- 1.2.1.2 Da Presunção Legal nas Inseminações Artificiais
Outra faceta em que a presunção legal se manifesta no Novo Código Civil pátrio, adequando à modernidade e aos avanços científicos, alude às inseminações artificiais, ao que tange à expressão temporal da filiação gerada pelas técnicas de reprodução assistidas.
Como ponto de partida, Leila Donizetti (2007, p.93), de forma elucidativa esclarece que a inseminação artificial[4]: "é um processo através do qual se colhe o material genético do homem por meio de masturbação em laboratório, congelando-se o esperma colhido em solução de azoto líquido para posterior implantação na mulher".
Assim, faz-se necessário, a priori, traçar de forma sucinta a distinção entre as duas espécies de inseminação artificial: a homóloga e a heteróloga. A concepção homóloga diz respeito à técnica de fertilização artificial que utiliza o próprio material genético dos futuros pais; ao tempo em que a concepção heteróloga[5] alude à possibilidade da utilização do material genético doado por outrem, ou seja, distinto do casal (de um ou de ambos) de futuros pais.
Destarte, a disposição legal gera presunção no processo de fertilização artificial homóloga, visto que a contratação deste serviço médico por si só certifica a anuência de ambos os contratantes, assim, não há que se esquivar das responsabilidades futuras decorrentes da geração de um filho. É neste sentido, que o texto da lei determina que a vontade dos contratantes seja válida mesmo após o falecimento do marido.
Por outro lado, há também presunção[6] legal na paternidade heteróloga em face da "prévia autorização do marido", entendemos, porém, ser desnecessária tal previsão legal desta presunção, visto que a prévia autorização documenta a aquiescência dos propensos pais, servindo, assim, de prova pré-constituída do reconhecimento espontâneo desta paternidade.
1.2.1.3 Do Vínculo Jurídico por Adoção
Segundo a lição de Orlando Gomes (2001, p.369), "Adoção é o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente do fato natural da procriação, o vínculo da filiação. Trata-se de ficção legal, que permite a constituição, entre duas pessoas, do laço de parentesco do primeiro grau na linha reta".
Destarte, a adoção como instituto jurídico deságua na quebra da hegemonia biológica atendendo aos dispositivos legais que instituem uma filiação sob o prisma do vínculo civil, contudo, dependente de um ato solene de repercussão jurídica.
Neste sentido, Roberto Senise Lisboa (2004, p.336) esclarece que a "Adoção é o ato jurídico solene pelo qual um sujeito estranho é introduzido como filho na família do adotante, passando a ter os mesmos direitos decorrentes da filiação".
Assim, a adoção reflete no âmbito jurídico como um instituto legítimo, sedimentado pelo tempo, onde ratifica os vínculos afetivos e os valores do convívio social, estando, todavia, vinculada sua constituição às formalidades legais, pois não decorre de mera situação de fato, mas, sim, de um procedimento judicial.
1.2.2 Do Vínculo Biológico
O vinculo biológico consiste na identidade genética que une dois indivíduos pelos laços do parentesco, neste prisma, ao que diz respeito à filiação, trata-se de uma relação genética ou consangüínea entre os pais e os filhos.
Consonante a esta linha de pensamento, Maria Helena Diniz (1997, p. 308), assevera que "Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram vida".
Por incrível que pareça, os vínculos de filiação sedimentados no tempo não estiveram atrelados à realidade biológica, visto que não havia como ser provado, assim, o ordenamento jurídico buscava socorrer-se nas presunções legais. Ocorre que, com o passar do tempo, as coisas mudaram, a sociedade evoluiu, a ciência avançou de tal maneira que o vínculo consangüíneo tornou-se uma realidade submetida a critérios probatórios cientificamente garantidos [7], onde, por meio do exame de DNA[8] atesta-se a inequívoca existência de tal laço biológico, conseguindo provar quando um filho carrega a herança genética dos seus pais.
1.2.3 Do Vínculo Socioafetivo
Em contraposição aos avanços da biogenética, que tem no exame de DNA a condição de afirmar com 99% de certeza a verdadeira origem genética de um indivíduo, passou a ser tutelada uma verdade além da consangüinidade, pautada nas afinidades, na convivência, na troca de afeto e no exercício das responsabilidades típicas de um pai perante seu filho, emanando das relações fáticas o vínculo socioafetivo.
A concepção de uma filiação socioafetiva parte da idéia da construção da paternidade de fato, construída no convívio cotidiano com base no afeto, na garantia de uma criação digna, preocupada com a saúde e a educação típica das relações domésticas familiares inerentes ao vínculo entre pais e filhos.
Luiz Edson Fachin (1996, p. 36-37), entende que, "Se o liame biológico que liga um pai a um filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão de posse de estado de filho".
Assim, aquele que age como um pai perante seu filho, assumindo as responsabilidades inerentes à criação, educação, cuidados e amparo afetivo, mesmo desatrelado do liame genético, demonstra conviver diante da posse de estado de filiação, sendo, assim, por conta das circunstâncias fáticas, é tido como pai, pois o provérbio popular há muito já prenuncia que "pai é quem cria".
Nesta concepção sociológica de filiação decorrentes da função paterna na formação da sua personalidade, o pai desempenha sua função, sendo, pelo filho, reconhecido e identificado como tal. Neste sentido, Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p.387) afirma que:
a paternidade não é um fato de natureza, mas, antes, um fato cultural. Em outras palavras, paternidade é uma função exercida, ou um lugar ocupado por alguém, não necessariamente o pai biológico. Neste sentido, o lugar ocupado por outra pessoa como o irmão mais velho, o avô, o namorado, etc.
Finalmente, esclarecemos que a filiação socioafetiva, como um vínculo de fato, decorre da compreensão da "posse do estado de filho" em que se encontrará atrelada a relação familiar típica entre pais e filhos.
1.2.3.1 Posse do Estado de Filho
O lastro que ampara a existência da paternidade construída no convívio diário pelos laços afetivos repousa sobre a "Posse do Estado de Filho", uma temática oriunda da antiguidade, sustentada desde a Roma antiga, que agasalha a situação fática do convívio pela aparência[9] correspondente a relação entre os pais e seus filhos.
É cediço na doutrina a existência de circunstâncias que atestem a posse de estado de filho, qual sejam, o nome, o tratamento e a reputação. Assim, esclarece Luiz Edson Fachin (1992, p.54):
Por posse de estado de filho, entende-se a reunião de três elementos clássicos: a nominatio, que implica a utilização pelo suposto filho do patronímico, a tractatio, que se revela no tratamento a ele deferido pelo pai, assegurando-lhe manutenção, educação e instrução, e a reputatio, representando a fama ou notoriedade social de tal filiação.
Não obstante ser pacificamente sustentado na doutrina a idéia de "posse do estado de filho" nos moldes do direito romano, estando atrelado aos elementos clássicos de nome, tratamento e reputação (nominatio, tractatio e reputatio), cabe-nos esclarecer que tais elementos precisam ser interpretados em consonância com os prismas jurídicos da atualidade, sendo assim, compreendidos nos moldes em que vivemos, estando adequados à atual realidade, pois, com o passar dos tempos, diante do decurso da história e da evolução da sociedade, não se pode ficar vinculado a interpretá-los nos moldes de outrora, pois o mundo moderno não é (nem pode ser) mais o mesmo regulado pelo direito romano.
Neste diapasão, cabe-nos reportarmos à lição de Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2007, p.80), qual esclarece que:
[...] a distância entre o direito civil atual e o direito romano é de dois milênios. E a intrpretação do direito atual tendo como base o direito romano não tem lugar, pois as sociedades são diferentes, as épocas não têm ligação entre si e, apesar da coincidência terminológica de alguns institutos, os direitos são diferentes.
Desta forma, entendemos que para caracterização da "posse do estado de filho", exige-se, nos moldes jurídicos atuais, apenas e tão somente dois elementos, quais sejam, a reputação e o tratamento, cuja consolidação será manifestada perante o seio social de um relacionamento típico de um pai perante o seu filho, onde o pai trata-o como filho, ao tempo em que o filho assim o reconhece como pai.
Neste diapasão, José Bernardo Ramos Boeira (1999, p.60) entende a configuração da posse de estado de filho, como sendo "uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai."
Na conjuntura jurídica da atualidade não se pode exigir a contemplação do elemento nominatio, pois, uma vez registrado com o patronímico dos pais não biológicos, estar-se-ia diante, não de uma filiação socioafetiva pura, no que concerne à realidade sociológica de fato, mas, sim, da manifestação do vínculo de sócio-afetividade identificado numa filiação civil devidamente regularizada pelo registro, independentemente de se perfazer por meio da adoção judicial, adoção à brasileira ou do simples reconhecimento da filiação.
Ademais, o nome de família nos moldes romanos não tinha a mesma regularidade formal dos nossos tempos, visto que os nascimentos não eram lavrados obrigatoriamente no registro civil de forma oficial, mas, tão somente, atentava-se ao sobrenome como identificador da descendência das pessoas perante o seio social. Além do mais, cabe-nos acrescentar que o registro formal ocorria, em regra, diante da contagem demográfica censitária, momento onde as famílias eram registradas perante o Estado.
Atestando nossa assertiva, temos a incontestável referência bíblica acerca do nascimento de Cristo (Lucas cap. 2, versículo 1-7)[10], qual esclarece que:
Naquele tempo o imperador Augusto mandou uma ordem para todos os cidadãos do Império se registrarem, a fim de ser feita uma contagem da população. Quando foi feito esse primeiro recenseamento, Cirênio era governador da Síria. Então todos foram se registrar, cada um na sua própria cidade. Por isso José foi de Nazaré, na Galiléia, para a região da Judéia, a uma cidade chamada Belém, onde tinha nascido o rei Davi. José foi lá porque era descendente de Davi. Foi registrar-se com Maria, com quem tinha casamento contratado.
Assim, em que pese o registro histórico cediço na doutrina com base no direito romano, asseveramos que os requisitos não são cumulativos, destarte, entendemos como essencial à consolidação da posse do estado de filiação, que seja levado em conta o apreço dos elementos fáticos do tratamento e da reputação, indispensáveis à configuração deste vínculo de parentesco como corolário da teoria da aparência.
Outrossim, diante da não regularidade formal do assento registral do nome, pode-se conceber que o mesmo teria o condão apenas de reforçar a reputação da relação de parentesco, identificando no seio social de quem aquela pessoa era filho.
Assim, cabe-nos asseverar que a posse do estado de filho torna-se tema relevante, sempre que houver a constatação dos atributos funcionais dos pais que assumem suas responsabilidades concernentes aos cuidados, a educação, a preocupação com o desenvolvimento físico e psicológico de um filho, estando dissociado do vínculo biológico, ou da paternidade jurídica, para, assim, ser compreendido que a verdadeira paternidade transcende às limitações dos conceitos restritivos de filiação, para desembocar na construção fática de vínculo afetivo construído no cotidiano com de importância e repercussão social.
1.3 DA CONTASTAÇÃO DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO
Diante da necessidade de concretização da verdade socioafetiva na sociedade e sua repercussão no âmbito jurídico, faz-se mister atentarmos à manifestação do vínculo socioafetivo na configuração da filiação, qual identificamos claramente no filho de criação; na adoção à brasileira; na adoção judicial; bem como na inseminação artificial heteróloga.
A constatação mais flagrante do vínculo socioafetivo pode ser verificada nos casos dos filhos de criação, atentando àquela situação em que uma pessoa cria uma criança ou adolescente, educando, assistindo a sua formação, contribuindo com seu desenvolvimento físico e psíquico, sem que estejam vinculados pelos laços consangüíneos.
Ao que tange à adoção, é pacífica a idéia do laço socioafetivo no estabelecimento da filiação, pois se encontra nesta, a ausência da informação genética suplantada pela configuração de um vínculo civil, estabelecido por um processo formal e solene que determina e acarreta todos os efeitos jurídicos pertinentes a filiação.
Outra circunstância que merece destaque alude aos casos em que a pessoa, mesmo tendo consciência de não ser o pai (ou mãe) biológico, decide registrar a criança como seu filho e construir no convívio o vínculo afetivo de filiação. Esta circunstância ficou conhecida na doutrina como "adoção à brasileira", pois, mesmo desatrelado da verdade biológica, agasalha o aspecto registral dando status de filiação civil, o que, analogicamente, tem-se reportado à adoção[11] sem atender às suas solenidades legais do respectivo processo judicial.
Acrescentamos que tal conduta encontra-se tipificada como crime prescrito no artigo 242 do Código Penal brasileiro, entretanto, no parágrafo único deste artigo[12] está disposto a forma privilegiada do tipo, permitindo, não apenas a redução da pena, como a possibilidade da mesma não ser aplicada, sempre que decorrer de um motivo de reconhecida grandeza. Em regra, tem sido a postura adotada pela jurisprudência.
Nos casos de reprodução assistida, quais decorram da utilização de material genético de doadores anônimos, ou seja, material distinto dos pais contratantes da técnica fica translúcido o entendimento do desatrelamento genético que une pais e filhos. Assim, asseguramos que a verdadeira filiação, sob o prisma afetivo, será construída no dia-dia, ou seja, na convivência familiar (a fortiori, social).
1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao atentarmos à filiação como instituto jurídico que liga os pais e as mães aos seus filhos, chegamos a compreender que a filiação pode se materializar de diversas formas, todavia, filiamo-nos à idéia de que independentemente da gênese da filiação, todos são iguais perante a lei, quanto aos direitos e deveres, gozando das mesmas garantias, sem submeter-se a valorações hierárquicas discriminatórias entre os distintos tipos de vínculo, pois estes se manifestam em pé de igualdade.
Cientes das distinções entre o vínculo biológico - onde os filhos descendem geneticamente dos seus pais - e o vínculo socioafetivo - construído basicamente no convívio cotidiano, calcado nas amplas expressões da voz do amor, bem como no cuidado com a criação, sustento, educação e desenvolvimento físico e psicológico - entendemos, que a manifestação do afeto, eixo central das relações familiares, encontra-se enraizada em todas as espécies de filiação, sendo indiferente às distinções entre os vínculos, pois o papel dos pais desempenhado na sua função familiar é de contribuir com o bem-estar e desenvolvimento da sua prole, garantindo que os laços afetivos são a manifestação natural indispensável às relações familiares.
Finalmente, alerta Cristiano Chaves de Farias (2007, p.207), que apesar do exame de DNA permitir "com precisão, a determinação da paternidade, a partir das influências genéticas" [...] "não constitui prova única a ser utilizada na investigação de paternidade", uma vez que se trata apenas de prova pericial e em nosso sistema jurídico inexiste hierarquia entre os meios de prova.
Assim, entendemos ser necessário debruçarmos sobre o caso concreto para verificarmos qual o critério deve ser determinante à consolidação da filiação, pois uma coisa é certa, independente da espécie de vínculo, todos são originários da filiação e nenhum é mais importante que o outro, mas, sim, coexistem pacificamente na ordem constitucional vigente, sob o manto da isonomia da filiação, pois, atestamos que um filho pode surgir na vida das pessoas de várias formas, mas seu desenvolvimento e a formação da sua personalidade depende dos cuidados, carinho e amor indispensáveis às relações familiares.
2 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Clever Jatobá é advogado e Consultor Jurídico; Especialista em Direito do Estado e em Direito Civil e Consumidor pelo Juspodivm e Faculdade Baiana de Direito (Salvador-Ba); além de Professor de Direito do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE), da Faculdade APOIO, da MAURÍCIO DE NASSAU, do DEGRAU Curso Preparatório para Concurso e da Escola de Direito e Cidadania do CENAJUR, além de membro de IBDFAM.
[1] Sob a bússola anterior à dicção constitucional vigente, onde ainda se previa a legitimidade da filiação como fator discriminatório entre a origem dos filhos, cabe-nos reportar ao ensinamento de Orlando Gomes (2001, p.325), para chancelar tal entendimento: "Prova-se a paternidade legítima estabelecendo-se o casamento dos pais".
[2] Neste diapasão, arremata Silvio de Salvo Venosa (2003, p. 270) que a legislação presume "que o filho da mulher casada foi concebido pelo marido".
[3] A presunção legal abarca o aspecto temporal para a filiação advinda do casamento, além de agasalhar, também sob o prisma temporal, as fecundações por inseminação artificial (vide art. 1597 do CC-02).
[4] A própria Leila Donizetti (2007, p.94-95) distingue a inseminação artificial da fecundação artificial in vitro, esclarecendo que nesta técnica (in vitro) "a manipulação do óvulo e do espermatozóide é feita fora do útero, ou seja, a junção das duas células é realizada no tubo de ensaio e, só posteriormente, após a construção da fecundação, é feita a implantação do embrião no útero da mulher".
[5] Fábio Ulhoa Coelho (2006, p.147) chama a filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga de "filiação por substituição", atentando à substituição do material genético dos pais (um, ou ambos) pelo fornecimento de gametas por terceiros.
[6] Trata-se de presunção júris tantum, pois se ressalvam as hipóteses em que poderiam incidir em responsabilidade civil por erro médico na situação onde equivocadamente ocorresse a troca do material genético dos propensos pais pelos manipuladores geneticistas.
[7] O exame de DNA tem sido uma prova pericial de relevante importância na investigação da paternidade.
[8] Ácido desoxirribonucléico é traduzido para o português por meio da sigla ADN, contudo, a sigla internacionalmente auferida (DNA), terminou por ser a mais popularizada.
[9] Maria Berenice Dias (2006, p.306) sinaliza o empréstimo de juridicidade pela tutela da aparência.
[10] A Bíblia na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
[11] Belmiro Pedro Welter (2004, p.81) exemplifica: "o caso da gestante que entrega seu filho, voluntariamente, a um casal, o qual faz o registro de nascimento de recém-nascido em nome deles, como se fossem os pais genéticos".
[12] Há quem faça alusão ao tipo penal da "Falsidade ideológica", como o próprio Belmiro Pedro Welter (2003, p.150), aludindo ao artigo 299, parágrafo único do CP. Contudo, na esfera penal a adequação típica é requisito fundamental para imposição penal, de modo que, havendo tipo penal específico, não há que atentar aos reclames de outra prescrição mais genérica, assim, o mesmo se adéqua ao art. 242 do CP.
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