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O lar que não chegou
Recebida com euforia, a Lei 12.010/2009 - chamada de Lei da Adoção - que busca reduzir o tempo de crianças e adolescentes institucionalizados, está cheia de propósitos, mas poucos são os avanços e quase nulas as chances de se esvaziarem os abrigos onde se encontram depositados mais de 80 mil seres humanos à espera de um lar.
A Lei tem oito artigos. O primeiro dispositivo confessa que a intervenção do Estado é prioritariamente voltada à orientação, apoio, promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer. Somente em caso de absoluta impossibilidade, reconhecida por decisão judicial fundamentada, serão colocadas em família substituta, adoção, tutela ou guarda. O artigo segundo introduz 227 modificações no ECA. Com a alteração de dois artigos do Código Civil (1.618 e 1.619) e a revogação de todos os demais que tratavam da adoção, acabou antigo impasse. Agora a adoção de crianças e adolescentes é toda regulada pelo ECA. A adoção de maiores de 18 anos deve seguir os mesmos princípios, e depende de sentença judicial. Também é alterada a lei que regula a investigação de paternidade (L 8.560/92) para dispensar a ação investigatória quando o genitor não assume o filho e a mãe deseja encaminhá-lo à adoção. E, talvez a medida mais salutar: são eliminados os prazos diferenciados da licença-maternidade a depender da idade do adotado (CLT 392-A §§ 1º, 2º e 3º).
Ninguém questiona que o ideal é crianças e adolescentes crescerem junto a quem lhes trouxe ao mundo. Mas há uma realidade que precisa ser arrostada sem medo. Quando a convivência com a família natural se revela impossível ou é desaconselhável, melhor atende ao interesse de quem os pais não desejam ou não podem ter consigo, ser entregue aos cuidados de quem sonha reconhecê-lo como filho. A celeridade deste processo é o que garante a convivência familiar, direito constitucionalmente preservado com absoluta prioridade (CF 227).
Para esse fim - e infelizmente - não se presta a nova legislação, que nada mais fez do que burocratizar e emperrar o direito à adoção de quem teve a desdita de não ser acolhido no seio de sua família biológica. Aliás, a lei traz um novo conceito, o de família extensa ou ampliada (ECA 25, parágrafo único): é a que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Para preservar o convívio da criança dentro da sua família original, esta tem a preferência na adoção, devendo ser incluída em programa de orientação e auxílio (ECA 19, § 3º).
Talvez o primeiro percalço da Lei esteja em impor à gestante ou à mãe, que deseje entregar o filho à adoção, a necessidade de ser encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude (ECA 13, parágrafo único). O consentimento para a adoção deve ser precedido de esclarecimento prestado por equipe interprofissional, em especial, sobre a irrevogabilidade da medida (ECA 166, § 2º). A manifestação precisa ser colhida em audiência pelo juiz, com a presença do Minsitério Público, e isso depois de esgotados os esforços para a manutenção do filho junto à família natural ou extensa (ECA 166, § 3º). Ainda assim, até a data da publicação da sentença de adoção, o consentimento é retratável (ECA 166, § 5º) e não pode ser prestado por escrito (ECA 166, § 4º) e nem antes do nascimento da criança (ECA 166, § 6º).
Mas há outros entraves. Não é mais possível a dispensa do estágio de convivência, a não ser que o adotando esteja sob a tutela ou guarda legal do adotante (ECA 46, § 1º). Nem a guarda de fato autoriza a dispensa (ECA 46, § 2º), sendo que o estágio precisa ser acompanhado por equipe interprofissional, preferencialmente com apoio de técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, os quais deverão apresentar relatório minucioso (ECA 46, § 4º).
Além disso, a habilitação à adoção transformou-se em um processo (ECA 197-A), inclusive com petição inicial que deve ser acompanhada de uma série de documentos, entre eles: comprovante de renda e de domicílio; atestado de sanidade física e mental; certidão de antecedentes criminais; e negativa de distribuição cível. O Minsitério Público pode requerer a designação de audiência para a ouvida dos postulantes e de testemunhas (ECA 197-B, II). Com todas essas cautelas se afigura uma demasia condicionar a inscrição dos candidatos a um período de preparação psicossocial e jurídica (ECA 50, § 3º), mediante frequência obrigatória a programa de preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências, e de grupos de irmãos (ECA 197-C, § 1º). Aliás, a título de disposições transitórias, é imposta a todos os figurantes no cadastro, no prazo máximo de um ano, a obrigação de sujeitarem-se à preparação psicossocial e jurídica, sob pena de cassação da inscrição (6º). Pelo jeito, a partir da 3/11/2010, nenhuma adoção poderá ser deferida enquanto não se submeterem as pessoas já habilitadas ao indigitado procedimento preparatório. E, caso não seja disponibilizado dito programa pela justiça, no prazo legal, simplesmente todas as inscrições estarão automaticamente canceladas.
Mas há uma exigência que se afigura particularmente perversa. Incentivar, de forma obrigatória, o contato dos candidatos com crianças e adolescentes que se encontram institucionalizados e em condições de serem adotados (ECA 50, § 4º). Além de expô-los à visitação, certamente tal irá gerar neles, e em quem os quer adotar, falsas expectativas. Afinal, a visita é tão-só para candidatar-se à adoção, sendo que, depois da habilitação, terá que ser cadastrado em uma lista a ser obedecida quase que cegamente (ECA 197-E, § 1º). Porém, uma das exceções acaba por admitir a adoção intuitu personae: quando o adotante detém a guarda legal de criança maior de três anos ou adolescente, pode adotar mesmo que não esteja cadastrado à adoção. Basta haver laços de afinidade e afetividade e não exista má-fé, (ECA 50 § 13, III) e ficar comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.
Falando em habilitação, perdeu o legislador uma bela chance de explicitamente admitir - como já vem fazendo a jurisprudência - a adoção homoparental. Nada, absolutamente nada, justifica a omissão. Para conceder a adoção conjunta, de modo pouco técnico, fala a lei em "casados civilmente" (ECA 42, § 2º). Ora, quem não é legalmente casado, casado não é! Também é confrontado o preceito constitucional ao ser exigida a comprovação documental da união estável (ECA 197-A, III). Trata-se de situação fática que se caracteriza pela convivência entre pessoas que têm o desejo de, entre si, constituir família. É o que basta. Não requer prova escrita. De qualquer modo, apesar da aparente limitação, tais dispositivos não impedem que casais homoafetivos continuem constituindo família com filhos por meio da adoção.
Diante de todos esses tropeços, de nada, ou de muito pouco adianta impor aos dirigentes das entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional que, a cada seis meses, encaminhem a juízo relatório (ECA 92, §2º), elaborado por equipe interprofissional ou interdisciplinar, para a reavaliação judicial das crianças e adolescentes que estão sob sua guarda (ECA 19, § 1º). Também sem chance de se tornar efetiva a limitação da permanência institucional em dois anos (ECA 19, § 2º). Às claras que não haverá como o juiz fundamentar que atende ao melhor interesse de algum jovem permanecer institucionalizado por prazo superior. A justificativa só será uma: não há onde colocá-los.
Do mesmo modo, de nenhuma eficácia garantir a tramitação prioritária dos processos, sob pena de responsabilidade (ECA 152, parágrafo único), mas não prever sanção outra. Não tem qualquer efeito prático impor a conclusão das ações de suspensão e perda do poder familiar no prazo máximo de 120 dias (ECA 163). Também de pouco significado prático assegurar prioridade absoluta no julgamento dos recursos, que deve ocorrer no prazo de 60 dias (ECA 199-D). Para isso é dispensada a revisão (ECA 199-C) e admitido parecer oral do Minsitério Público (ECA 199-D, parágrafo único).
A adoção internacional, de fato, carecia de regulamentação. Mas está tão exaustivamente disciplinada, há tantos entraves e exigências que, dificilmente, conseguirá alguém obtê-la. Até porque, o laudo de habilitação tem validade de, no máximo, um ano (ECA 52, VII) e só se dará a adoção internacional depois de esgotadas todas as possibilidades de colocação em família substituta brasileira, após consulta aos cadastros nacionais (ECA 51, II). Depois a preferência é de brasileiros residentes no exterior (ECA 51, § 2º). Assim, os labirintos que foram impostos transformaram-se em barreira intransponível para que desafortunados brasileirinhos tenham a chance de encontrarem um futuro melhor fora do país.
Claro que a lei tem méritos. Assegurar ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e acesso ao processo de adoção (ECA 48), é um deles. Aliás, tal já vinha sendo garantido judicialmente. A manutenção de cadastros estaduais e um cadastro nacional, tanto de adotantes, como de crianças aptas à adoção (ECA 50, 5º), é outro mecanismo que visa agilizar a adoção. A providência, aliás, tinha sido determinada há um ano pelo Conselho Nacional da Justiça (Res. 54/08). Inclusive a inscrição nos cadastros deve ocorrer em 48 horas (50, § 8º), cabendo ao Ministério Público fiscalizá-los (ECA 50, § 12). Também é salutar assegurar preferência ao acolhimento familiar do que ao institucional (ECA 34, § 1º), bem como garantir aos pais o direito de visitas e manter o dever de prestar alimentos aos filhos quando colocados sob a guarda de terceiros (ECA 33, § 4º).
O fato é que a adoção transformou-se em medida excepcional, a qual deve se recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa (ECA 39, § 1º). Assim, a chamada Lei da Adoção não consegue alcançar os seus propósitos. Em vez de agilizar a adoção, acaba por impor mais entraves para sua concessão, tanto que onze vezes faz referência à prioridade da família natural.
Portanto, para milhares de crianças e adolescentes que não têm um lar, continuará sendo apenas um sonho o direito assegurado constitucionalmente à convivência familiar.
Maria Berenice Dias é Vice-Presidente Nacional do IBDFAM, Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, Advogada
http://www.mariaberenice.com.br/
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