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Transformações do desejo
Tornou-se lugar comum ouvir que o amor está em crise, que as relações afetivas estão sofrendo transformações, que o terreno do afeto é outro - as fantasias deslocaram-se do campo subjetivo para o objetivo. Um complexo poderoso distribui sentido e valores, visando a uma homogeneização no desejo. O sujeito vaga avulso como remessas de mercadorias, sem gosto e opinião própria. Suely Rolnik em Cartografia sentimental debate as transformações afetivas na era eletrônica: "Os territórios nada têm a ver com "minha família", "minha terra"..., a mídia está se tornando a terra natal de toda a humanidade". O pressuposto de que a vida urbana e industrial despersonaliza os indivíduos mascarando singularidades é antigo. Manoel Bandeira em A estrada nos alertava: "Nas cidades todas as pessoas se parecem/Todo o mundo é toda a gente/Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma/Cada criatura é única".
Sexualidade é um universo simbólico que gira em torno de uma realidade biológica que é o sexo. Trata-se de uma mescla de posturas, experiências e sentimentalizações resultantes de um contexto social. Há toda uma organização social engendrada a partir da sexualidade. A sexualidade é uma construção da inteligência humana que pode contribuir para a felicidade ou para a infelicidade dos indivíduos. Ela diz de como o sujeito escolhe viver - se de forma poética ou não. Podemos falar de uma poética da sexualidade, de uma reinvenção da forma de relacionar com o outro. A sexualidade está no centro da insatisfação humana. Se as transformações que ocorrem no campo do desejo não estão contribuindo para uma relação amorosa satisfatória, por que não recusá-las? Como reinventar uma ética, usar a inteligência para propor outras formas de viver os sentimentos, exigindo respeito, não aceitando a banalização do corpo, do toque, do beijo?
O campo do amor sempre foi conflituoso. Se hoje as relações afetivas estão frágeis, outrora também nunca circulou nos melhores dos mundos. A questão está mais na forma que escolhemos viver e amar. Se antes era ruim por causa da repressão, por que submetíamos às regras morais rígidas? E hoje por que submetemos a uma liberação excessiva? Cada época tem uma ética que orienta o desejo. Conquistamos e vivemos a liberação sexual, contudo, ao mesmo tempo em que ela facilitou o acesso ao desejo, ela tornou-se fonte de angústia. Nos angustiamos diante das múltiplas possibilidades de viver as pulsões sexuais. As mulheres sofrem com a insegurança nas relações afetivas. Com toda a liberação elas ainda sonham com um "eu te amo". Os homens também não estão sabendo administrar o excesso de oportunidades sexuais, muitos acabam escravos dos olhares cobiçosos, pressionados, submetem-se ao desejo do outro. O princípio da incerteza estende-se tanto à razão sexual quanto à razão científica, econômica. A lógica que conduz o desejo é a mesma que conduz planilhas econômicas, financeiras. A ciência a serviço do mercado implica em transformações do desejo - que talvez explique por que as garotas sonham em transar diante das câmaras, em exibir sua performance sexual. As transformações na forma de viver a intimidade é uma questão política, diz do conjunto de interesses que engendram o desejo. Sexo e poder sempre andaram juntos. A necessidade que os jovens têm de transar com várias garotas ao mesmo tempo é do campo do reconhecimento, da necessidade de ser reconhecido em sua virilidade. A poligamia é mais uma questão de poder, de status que de sexo.
O desejo amoroso vem sempre acompanhado de um amplo cortejo de sentimentos. São eles que conduzem a sexualidade, o que sentimentos diante da vida - inquietude, medo, alegria, ciúme, raiva, tristeza. O amor, mais que um sentimento, diz da maneira como fomos marcados pelo outro - primeira experiência de prazer e satisfação. Sexualidade é do campo da cultura. Cultura é quando surgem normas para regular uma função natural, instintiva. As leis, ao fracassarem, deflagram a falência das insígnias reguladoras, dos signos condutores da sexualidade - conjunto de significados pertencentes ao campo afetivo, político, ideológico. A capacidade de pensar, amar, criar e valorizar as coisas e as pessoas depende do sujeito e da forma como ele está sendo educado. "É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança" (aforismo africano). A educação é efeito de tempo e lugar. Como estamos educando nossas crianças, ensinando-as a amar? Na web, Big Brother, Yotube, Orkut? Não estaríamos sexualizando a infância? Como explicar a gravidez entre adolescentes?
Toda sociedade cria normas para regulamentar práticas sexuais, sem elas viveríamos no inferno, quando tudo se torna permitido. Ao prescindir delas, ao aspirar à liberdade desligada de um ritual simbólico, desvinculada de uma pletora de valores, sem leis e coações, encontramos-nos num mundo desterritorializado, sem mapas e instruções de uso. Perdidos, perambulamos à mercê do mercado. O que nos diferencia dos animais é que o nosso desejo deve estar submetido às regras - a cultura humana inicia-se com a lei do incesto. O sujeito, ao operar na cultura, ao submeter-se a projetos civilizatórios, se angustia por reprimir desejos - é o mal-estar na civilização. O contrário também é verdadeiro. Angustiamos diante do excesso de permissividade, das inúmeras ofertas de corpos disponíveis. Sabemos que o desejo advém da falta. Na ditadura do orgasmo, da cobrança de gozo, quando "beijar na boca a noite inteira" tornou-se palavra de ordem, o que reina é a venda de viágara entre jovens enfastiados. O desejo é da ordem da espontaneidade, da surpresa. Nada mais broxante que sermos obrigados a transar, beijar, amar.
A sexualidade inicia-se na fisiologia e segue pela religião, política, ética. Ao debater a forma como estamos conduzindo o desejo, ao navegar no inquietante oceano da sexualidade, precisamos aprender a nos defender de suas tormentas, tempestades. Ao elaborar nossa cartografia afetiva, devemos fixar rotas, interesses. Ela exige autenticidade e determinação. Apressados, obcecados pelo prazer imediato, acabamos sacrificando seus mistérios. O sexo trivial nos desvia do amor e suas magias. Se o que todos buscamos é ser reconhecido, valorizado, amado, por que embarcamos em modismos que mais nos desagradam que agradam? Desejar um amor é desejar ser tocado no mais íntimo - entranhas e subterrâneos. Nos porões da alma cochilam nichos que anseiam ser explorados.
O encontro amoroso é orientado pelo nosso passado, ele que nos conduz à rota da sedução. Sempre partimos do que vimos, ouvimos e sentimos ao longo de nossas vidas. Aprendemos a amar com aqueles que nos amaram e educaram. São eles que nos subjetivam, nos singularizam. Sem traços e atavismos, somos lugares vazios, sem autonomia e voz própria. Os mistérios que envolvem o encontro amoroso partem de nós, das marcas que carregamos e que em nós incendeiam. Amar implica nos haver com os nós, feridas que sangram. Cada qual carrega a sua fogueira - fonte de dor e êxtase. O desejo parte de dentro. O que demandamos, quando entramos numa loja, é outra coisa.
A modernidade e o apagamento das fronteiras subjetivas comprometem as experiências afetivas. O discurso da tecnociência, ao homogeneizar o desejo, subverte o discurso amoroso. Há uma narrativa do fracasso amoroso - vivemos homogeneizados na falta de esperança, desalento que paira sobre as práticas amorosas. Perdemos, aos poucos, a crença que nos embalava e diferenciava. Ansiávamos por um futuro construído junto, pedra sobre pedra. Cada um criava o seu futuro. Hoje, iguais e sem narrativa própria, embarcamos em repertórios alheios. Seguimos a cartografia que nos vendem como boa opção sexual - a melhor em custo/benefício. Sem saber mais de nosso desejo, das feridas narcísicas que sangram - como partir em busca da metáfora amorosa que nos fundou?
Como enfrentar a insatisfação humana? Se não é mais a histérica a mulher predominante em nós, se não desejamos mais um amor como outrora, quem é essa mulher que clama, quais seus dramas e interesses? Se não acreditamos nas relações sexuais duradouras como antes, e se as relações efêmeras também não nos satisfazem, onde buscar a felicidade? Não estaríamos buscando em lugar errado saídas para viver o encontro amoroso, valorizando o supérfluo e desvalorizando o essencial? Como nos responsabilizar pelo nosso desejo? A desordem amorosa é salutar desde que reorganize o território existencial, respeita interesses e zele pela intensidade das experiências afetivas. Ela deve ampliar os meios de auto-expressão. Sexualidade criativa demanda conversa. A conversa é metáfora de nossa existência. Devemos recusar modelos que nos tornem clientes cativos de um amor mercadoria, descartável, que não respeita idiossincrasias. Uma revolução sexual passaria pela ressignificação do ser humano - respeito ao outro, seu corpo, valores, fantasias.
Inez Lemos é psicanalista, ensaísta e autora de: Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).
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