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Filhos dos Outros ?
"Amar não é olhar um para o outro,
é olhar juntos na mesma direção."
Antoine de Saint-Exupéry
A singular contribuição, deixada no limiar de sua trajetória, faz do deputado Clodovil Hernandez um destacado ser humano de rara sensibilidade ao ter transformado seu desejo na Lei nº 11.924, de 17.4.2009, sancionada na última sexta-feira, por ato do Presidente da República.
Evidente que a citação inicial, do poeta e piloto francês, estabelece uma metáfora do casal como paradigma da qual se realiza na estruturação e educação dos filhos; quando do significativo ato de amor ao nominar, dar nome aos filhos, sejam seus ou dos outros. Lembre-se: Clodovil foi acolhido como filho em adoção.
É desse afeto acolhedor nas funções paterna e materna exercidas com amor e responsabilidade que a mudança legal indica à possibilidade de aplicar o acréscimo do patronímico aos filhos advindos das relações de acolhimento, tanto do pai e/ou da mãe afetivos e efetivos.
Certa reflexão, com ressalvas, do texto legal se faz prudente ante às nomenclaturas de "madastra" e "padastro", os quais não são mais adotados no cotidiano contemporâneo, mas principalmente nos remeterem para um imaginário distante no passado, cuja utilização tinha contornos pejorativos; há de se evidenciar que tal fato não compromete o espírito da lei, mas é digno de nota, para não reproduzirmos esteriótipos indesejáveis.
Outra reflexão de maior, ou igual, magnitude merece ser destacada, sobre a existência de mais de um pai ou mãe, por ter o acréscimo do patrônimico ao nome do filho.
Na prática cotidiana com crianças, Françoise Dolto, psicanalista francesa (1908/1988), destaca, "... mais vale a criança dizer: 'Eu tenho três papais' do que 'Mamãe vive sozinha, eu não tenho pai.' Desde que ela sabia, por si mesma, que tem um pai, que talvez não o conheça e que ele é único, é preciso dar-lhe a liberdade de fala para dizer: 'Tenho três pais.' Isso é uma auto defesa em relação à curiosidade dos coleguinhas. Seja como for, a mãe deve dizer-lhe: 'Você tem pai como todo mundo, mesmo que não o conheça.' Mas, chamar três pessoas de 'papai' é melhor do que não ter nem 'papai' nem pai de nascimento, conhecido ou desconhecido. O papai não é necessariamente o pai genitor, o pai legal ou adotivo. Também é possível ter várias mamães..."(1)
Marcelo Cherto, relata que teve dois pais, "... com meu segundo pai, o meu irmão [muito mais velho] Carlos [Alberto Raposo Cherto], posso dizer que foi graças à sua visão de mundo que me tornei o que sou hoje" (2), face a perda prematura do pai de ambos; relatado no livro: "Aprendi Com Meu Pai"(2).
O acréscimo do patronímico está inserido nessa relação amorosa, a qual cumpri uma função estruturante, de formação da criança que é educá-la para a vida, no sentido mais lato do verbo.
Nessa direção, o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, citado por Jacqueline Filgueras Nogueira, no livro, "A filiação que se constrói: o afeto como valor jurídico", dá-nos "... uma abordagem psicanalítica das relações de família, afirma que, para a psicanálise, o que determina a constituição de família é sua estrutura psíquica, onde o que importa é o lugar em que cada membro da família ocupa, de filho, de pai ou de mãe. (...) esse pai e essa mãe não precisam ser necessariamente os biológicos. Qualquer pessoa poderá ocupar o lugar, desde que exerça tais funções, pois a paternidade e a maternidade são uma questão de função. 'O que é essencial para a formação do ser, para torná-lo sujeito e capaz de estabelecer laço social, é que alguém ocupe, em seu imaginário, o lugar simbólico de pai e de mãe"(3).
Por isso é com grande júbilo o recebimento da Lei 11.924, porque em larga medida deverá contribuir para ordenar e nominar "de quem são os filhos": não só dos genitores mas também de quem os acolhe cumprindo sua função simbólica de pai e de mãe, permeados pelo amor.
Augusto César Silva Santos Gandolfo é advogado em Campinas, atuante na área do direito de família, exerce peculiar escuta em sua atuação, e-mail: acgandolfo@uol.com.br
Citações:
(1) Dolto, Françoise, "Quando os pais se separam", Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 79.
(2) Colombini, Luís, "Aprendi com meu pai", São Paulo, Ed. Versar, p. 143.
(3) Noguiera, Jacqueline Filqueiras, "A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico", São Paulo, Memória Jurídica Editora, 2001, p. 87.
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