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O direito ao afeto
O direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um indivíduo a outro. O afeto ou afeição constitui, pois, um direito individual: uma liberdade que o Estado deve assegurar a cada indivíduo, sem discriminações, senão as mínimas necessárias ao bem comum de todos.
A liberdade de afeiçoar-se um a outro é muito semelhante à liberdade de contratar um com outro. Daí, não raro, confundir-se afeição com contrato, ensejando a patrimonialização contratual do afeto. Não se deve reduzir o afeto ao contrato, para o fim imediato e ora até exclusivo de retirar dessa redução e impor às “partes contratantes” efeitos patrimoniais, às vezes nem sequer desejados por ambas. Mas a analogia entre afeição e contrato serve para um fim justo: mostrar que, como a liberdade de contratar, também a liberdade de afeto é um direito individual implícito na Constituição brasileira de 1988, cujo § 2o do art. 5o não exclui direitos que, mesmo não declarados, decorram do regime e dos princípios por ela adotados. É o que ocorre com a liberdade de contrato e a liberdade de afeto.
Ambas são inerentes ao relacionamento social. Se negadas – ou tolhidas fora do bem comum – implicam a desfiguração do Estado Democrático de Direito e das liberdades a ele fundamentais. Sonegar essas duas liberdades – ainda que não declaradas expressamente – é renegar ao regime e aos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito exigido pelo art. 1o da Constituição. É negar a Constituição jurídica do Estado brasileiro desde o princípio. Inegável, pois, que – embora afeto não seja contrato – o direito ao afeto, como o direito ao contrato, é liberdade individual implícita na Constituição.
Reforça essa conclusão o fato de ser o afeto conatural à sociedade humana, desde a mais primitiva ordem tribal. Entre as tribos, na origem do povo romano, a atração natural de um indivíduo a outro se dizia affectio ou affectus, palavras compostas da preposição ad (= para) e de uma forma nominal do verbo facere (= fazer). Literalmente, affectio e affectus traduzem a idéia de ser feito um para o outro.
O afeto está presente nas mais diversas relações humanas. Destacadamente, nos relacionamentos de natureza sexual, nos quais, atualmente, o Estado brasileiro deixou de respeitar a vontade dos indivíduos, quanto à definição do alcance do afeto nascido entre eles. Para celebrar ou criar uma relação, inclusive para fins patrimoniais, pode-se casar ou tornar evidente uma união estável. Mas ninguém pode optar por simplesmente viver um vínculo afetivo independente da intervenção estatal, vale dizer, sem seqüelas de ordem patrimonial. A patrimonialização da união estável é forçada – e reforçada – pela legislação estatal. O que solapa o vínculo afetivo. Amedronta os que só querem se amar. Gera expedientes – como: “fazer um contrato”, “não morar juntos”, “evitar manifestações de afeto por escrito”, etc. – para não tipificar união estável.
Essa patrimonialização veio historicamente para proteger a mulher. Do mesmo modo que protege outras partes mais fracas em outras relações específicas, também o Estado protege a mulher na entidade familiar, a fim de promover uma igualdade real, não só formal, pois a história ensinou que a justiça não consiste em tratar os desiguais igualmente, mas desigualmente, na exata proporção em que se desigualam.
Esse fim social, porém, se atendido sem cautela, pode gerar efeitos perversos. Exemplo: benefícios a terceiros estranhos à união estável, pois não só filhos ou descendentes de outras relações afetivas, mas também credores das mais corriqueiras dívidas de negócio poderão pleitear em juízo contra uma pessoa (ou até contra o seu espólio) o reconhecimento de sua união estável com outra pessoa, a fim de buscar o quinhão hereditário ou cobrar um crédito insatisfeito. Assim, pelo Direito brasileiro vigente, ninguém que mantenha com alguma habitualidade uma relação de afeto de base sexual (ex.: um namoro persistente) está a salvo de – para espanto mesmo dos enlaçados pelo amor – ver-se no banco dos réus de uma ação que, para ambos, estava fora de qualquer cogitação ou previsão.
A matrimonialização e a patrimonialização da união estável resultaram numa disciplina automática, que leva a emprestar do Direito Penal um qualificativo adequado para qualificá-la: a união estável brasileira é preterintencional, pois vai além da intenção do agente. Mas, no caso, se amar não é crime, por que “punir” os que se amam?
Ao direito constitucional da família impõe-se uma conclusão: se é preciso proteger a família e a mulher, também é evidente que o Estado brasileiro deve a seus cidadãos e cidadãs, e a todo indivíduo, uma providência urgente: garantir o direito individual ao afeto sexual mediante a figura jurídica de uma simples união de afeto que – heteroafetiva ou homoafetiva – não seja desvirtuada ex vi legis, como a união estável o foi.
Em suma: a tradicional ideologia da família, que matrimonializa e patrimonializa a afeição, não pode valer-se do Estado social para tolher o direito individual ao afeto sexual, cobrindo com as vestes de mercadoria toda e qualquer figura jurídica ligada à união de natureza sexual entre duas pessoas. Sob pena de negar o Estado Democrático de Direito e seus princípios constitucionais.
Referência: Revista Especial Del Rey IBDFAM - Maio 2002
O autor é mestre, Doutor e Livre-docente em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), onde leciona nos cursos de Bacharelado e Pós-Graduação. É Professor contratado da Faculdade de Direito da Universidade dos Estudos de Udine, Itália. |
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