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Adoção Homoafetiva e Inconstitucionalidade
Em face de recente polêmica quanto ao Projeto da Nova Lei de Adoção (Projeto de Lei 6222/2005) para que fosse retirada, do seu texto, a autorização expressa à adoção por casais homossexuais, e pelo histórico de preconceitos (ainda, infelizmente, alimentados quanto à homoafetividade), é sempre possível o surgimento de tentativas de vedar a adoção por pessoas de orientação homossexual - ou por casais homoafetivos -, através, por exemplo, de emendas ou proposições legislativas de ordem infraconstitucional nesta direção restritiva de direitos.
Caso um eventual projeto de lei venha, por exemplo, tomar a orientação afetivo-sexual das pessoas como critério para vedar o exercício de um direito (o de adotar), isso acarretaria inevitável inconstitucionalidade, vez que esse traço da personalidade (a orientação afetivo-sexual, qualquer que seja ela: heterossexual, bissexual ou homossexual) é considerado - pela melhor doutrina constitucionalista e pela jurisprudência pátria - um direito fundamental, personalíssimo de todo indivíduo, extraído da leitura e da interpretação sistemática do art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, do art. 3º, incisos I e IV, com o caput do art. 5º da Lei Maior.
De fato, tendo estabelecido a dignidade da pessoa humana como fundamento-base da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, CF/88), diante dos dois objetivos fundamentais do Estado de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, incisos I, CF/88) e de "promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, inciso IV), um hipotético critério diferenciador - consubstanciado em uma disposição legal restringindo direitos com base na orientação sexual - feriria normas-princípio da Constituição Federal de 1988; dentre as quais, os princípios da dignidade humana e da isonomia (art. 5º, caput), pois criaria uma discriminação / distinção de natureza negativa (restritiva de direitos), sem a necessária e rigorosa fundamentação jurídica, capaz de autorizar o ente estatal a tratar, de modo diferenciado, os(as) cidadãos(ãs).
Justamente por conta da vedação constitucional a "quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, inciso IV, CF/88) e sintonizado com o próprio espírito do constituinte, o legislador infraconstitucional, através do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), não tocou na orientação afetivo-sexual de requerentes para efeito de colocação de crianças e adolescentes em famílias substitutas, apenas exigindo, em caso de um só adotante por exemplo, que esse seja maior, independente do estado civil (art. 42, caput, ECA). Para a adoção por duas pessoas, também não se toca neste traço da personalidade dos requerentes (art. 42, § 2º, ECA) e assim também não poderia caminhar diferente o legislador quando da elaboração do Código Civil (Lei 10.406/2002). O Projeto da Nova Lei de Adoção, por exemplo, está bem sintonizado com tal necessidade de não gerar discriminação injustificada, mantendo (ainda com a retirada da referida autorização expressa), a mesma possibilidade interpretativa de adoção em favor de pessoas de orientação homossexual, seja enquanto solteiras, seja mediante a consideração da solidez da união (analogia com a união estável), para efeito de adoção em conjunto.
Os trabalhos científicos que existem a respeito da inserção e do desenvolvimento de crianças/adolescentes em lares homoafetivos (que, dada a limitação de espaço, há como mencionar com profundidade neste ensaio) dão conta de que não foram percebidos danos à formação da prole e nem distúrbios a justificarem que pessoas homossexuais sejam menos preparadas para o bom exercício da paternidade/maternidade. Os filhos oriundos de tais relações (homoafetivas) apresentaram formação da personalidade com os mesmos desafios e nuanças daqueles educados por heterossexuais.
Realmente, em se tratando de adoção de crianças e adolescentes, importante é que a medida funde-se em motivos legítimos e apresente reais vantagens ao(s) adotando(s) - art. 43, ECA. E, neste particular, a suposta heterossexualidade de requerentes não é garantia de absolutamente nada e quem labora em Varas da Infância de da Juventude tem consciência disso, vez que não é a orientação de desejos de uma pessoa que a desqualifica para o exercício da maternidade/paternidade responsáveis. Felizmente, a perceptível maioria dos(as) magistrados(as) tem se orientado neste sentido e em sintonia com outro aspecto crucial: na caracterização de família, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (famílias natural e substituta), quanto no Código Civil e, bem assim, dentro do texto constitucional, não há referência a orientação afetivo-sexual das pessoas. A Constituição Federal, ao contrário, no conceito aberto de família constante no caput do art. 226, não dá azo para restrição de direitos - de ordem infraconstitucional - no que tange à caracterização de entidade familiar. Tentar vedar, simplesmente, a adoção por homossexuais - sejam solteiros, sejam em convivências afetivo-familiares estáveis - gera, pois, outra inconstitucionalidade, por obstar o exercício de um direito, também fundamental das pessoas, qual seja: o de formar família pelos laços do afeto. No delineamento legal da família monoparental, por exemplo, no § 4º do art. 226 da CF/88, o constituinte, demonstrando abertura para uma exegese ampla, apenas previu, acertadamente: "Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". A partir de tal dispositivo, geraria afronta à norma constitucional vedação ao exercício da paternidade/maternidade por homossexuais solteiros, pois a família que eles compõem, neste particular, é monoparental e encontra amparo de ordem constitucional, podendo ser, a descendência, biológica ou por adoção (até porque, ante o espírito protetor da Lei Maior, também não mais se admitem distintivos injustificados quanto à filiação).
O magistrado da Infância e da Juventude de Recife, Dr. Luiz Carlos de Barros Figuerêdo, ratifica o nosso posicionamento de modo veemente: "Qualquer interpretação impeditiva de que alguém possa adotar fundada apenas em sua opção sexual é, grosseiramente, inconstitucional". O Prof. Paulo Luiz Netto Lôbo assim sintetiza o ponto nodal ora aqui discutido: "A discriminação é apenas admitida quando expressamente prevista na Constituição. Se ela não discrimina, o intérprete ou o legislador infraconstitucional não o podem fazer."
Família não se trata de um dado biológico/natural, mas de uma realidade afetiva (teia intersubjetiva) cultural e plural - com variadas formas de composição, dentro das quais não existe padrão de "regularidade" ou de "normalidade"; muito menos que esse possa estar associado, direta ou indiretamente, com as orientações afetivo-sexuais dos seus membros. E sendo vedado a qualquer pessoa (física ou jurídica) interferir na constituição e na dinâmica das famílias, a legislação, como um todo, deve caminhar na mesma direção: o pleno respeito a todas as pessoas que desejam, por amar, compor um lócus familiar, com ou sem o exercício da maternidade/paternidade, independente de qualquer traço subjetivo dos membros que o integram. Isso é respeito, também, à dignidade humana, fora de cuja noção fundamental, o Direito pode chancelar injustiças.
Enézio de Deus - Advogado; Membro do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família); Gestor Governamental (servidor público EPPGG); Professor de Direitos Humanos; Autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais (3ª edição, Juruá Editora). Contato: eneziodedeus@hotmail.com
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