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Direito Civil Brasileiro: de Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale.
Cento e dois anos separam Clóvis Bevilaqua de Miguel Reale, e desenham a trajetória do direito civil brasileiro legislado por meio de um caminho de progressos e conquistas, no mais das vezes, de retornos e reconsiderações, em algumas vezes, e de retrocesso e involução, em outras mais raras vezes.
No final do século passado, mormente por volta da derradeira década (1990-2000), vigoroso segmento de juristas e pensadores do Direito ergueu voz em desfavor à aprovação de um novo Código Civil para os brasileiros, em substituição ao Código em vigor, promulgado em 1916 e vigente desde 1917.
Expandia-se já entre nós – e de modo cada vez mais veemente – a revolta contra a codificação e a defesa do novo rumo (ou viés) legislativo, próprio da era pós-moderna, de regular a vida do cidadão e as suas relações privadas. O fenômeno da descodificação inaugurava-se implantado para os jusfilósofos do século XX , às portas do século XXI.
A justificar este novo sentir – ou este novo intuir(1) – alinham-se profundas mudanças paradigmáticas ocorridas no decorrer da segunda metade do século findo, mormente depois de verificada a insuficiência dos paradigmas anteriormente levantados e considerados aptos à promoção da ultrapassagem da era pré-moderna para a era moderna. Quer dizer, os paradigmas fundamentais que erigiram a modernidade foram paradigmas que precisaram se impor, primeiro, à face do absolutismo que marcou a finalização do período medievo e, depois, paradigmas que precisaram superar os horrores de uma Primeira Grande Guerra. Tempos de alterações profundas e de busca de superação de injustiças e desigualdades enormes, esses tempos foram aqueles em que a prioridade era a conquista da segurança jurídica, da preservação dos direitos, do estabelecimento das igualdades e da consideração máxima ao indivíduo.
Por tudo isso e por isso mesmo, os paradigmas deste tempo pretérito foram os paradigmas da lei e da jurisdição, a significar que a segurança pretendida e ansiada devesse resultar de uma construção normativa que fosse suficientemente abstrata para ser universal, e que fosse suficientemente clara para ser abrangente de todas as hipóteses realizáveis. A preocupação de caráter nitidamente lógico-formal dominou o anseio de então e resultou na produção de grandes sistemas codificados, verdadeiras caixas-de-Pandora – no sentido de algo que não se deve alterar, com o risco de desencadear uma série incontrolável de desastres – e que se entendiam aptos a regular fatos e atos, impondo-se a revestir toda e qualquer hipótese fática que pudesse ocorrer, enfim, na trajetória privada dos comuns. E, para coroar toda esta fenomenal estrutura milimetricamente construída, o paradigma da lei era corroborado pelo outro paradigma co-irmão, referente à fase do dizer o direito – quer dizer à fase do dizer a lei, já que a lei era o direito – expressando-se por meio da figura do juiz que, de modo inerentemente sofismático, reproduzia o comando hipotético e abstrato da norma jurídica.(2)
Certamente este vislumbrar de construção jurídica teve o seu momento de glória, logrando atingir os efeitos imediatamente esperados. Contudo, estruturado assim o direito, apenas para combater os malefícios do medievo e realçar – por fazer emergir – a centralização de toda a atenção no indivíduo, não estava definido pelo dom da eternidade, mostrando-se, então, insuficiente para seguir fundando as expectativas, os anseios, os fatos e a vida que se desenvolveu especialmente após as Grandes Guerras.
Junqueira de Azevedo demonstra claramente as tendências da pós-modernidade, tendências estas que gritaram por uma vigorosa alteração de paradigmas, exigidos e imprescindíveis para o redesenhar da nova era. Ele menciona três tendências caracterizadoras deste reclamo, desta urgência, desta exigência, quais sejam: a crise da razão, a hipercomplexidade e a interação.(3)
Por força da característica que denomina crise da razão, o jurista refere à jusfilosofia que já não suporta mais a consideração do justo e do seguro como fruto incondicional da razão. Desconstruindo esta arquitetura que fundamentou a moldura jurídica da modernidade, a característica da pós-modernidade neutraliza a razão com a própria razão e revela que a ambiência legislada é, por vezes, estreita demais, ou insuficiente, ou inoportuna, ou mesmo inútil, para a realidade intrínseca e essencialmente mutável da vida dos homens.
Por força da característica que denomina hipercomplexidade, o jurista demonstra outro engessamento do sistema novecentista, já ultrapassado, fazendo ver que as relações e as hipóteses capazes de produzir inquietações na esfera do direito são por demais complexas, com justaposição das diversidades, para serem tratadas sob um molde único, ainda que abstrato e pretensamente abrangente.
Por força, enfim, da terceira característica que denomina de interação, o jurista descreve a curiosa tendência de desapego ao sistema, na atualidade, assim entendido o círculo infindável do input e do output, por meio do qual, como numa roda eterna e sem fim, o conflito de interesses gerado entre os indivíduos ingressasse no sistema jurisdicional à busca de uma solução, solução esta que encontra sua viabilidade na lei, lei esta que por sua vez admite a subsunção do conflito, conflito este que se adstringe à solução normativa, solução esta que se expressa por meio da decisão judicial, a qual, por sua vez nada mais é do que o velho dizer o direito... o círculo se fecha dentro dos limites exclusivos do sistema. Certamente hoje, tempo em que as soluções podem ser buscadas pessoalmente, por meio de modos alternativos de solução de conflitos, como a mediação ou como a arbitragem, sem recurso à tutela jurisdicional propriamente dita, o círculo parece esvaziado, perdendo a sua posição de império exclusivo.
À face destas revisões, desta releitura de meios e modos, destas características do tempo atual que não foram características de tempo pretérito, parece mesmo imprescindível a urgência de reorganização dos paradigmas jurídicos.
O paradigma da lei é estreito. E já se critica o paradigma do juiz, mesmo em sua evolução modernizada, isto é, mesmo sob esta sua nova postura e atuação, advindas de uma ampliação de seus poderes, pela autorização que lhe é concedida de decidir com base em noções vagas que são ilações de conceitos jurídicos indeterminados, como por exemplo, a função social, a boa-fé e as demais cláusulas gerais. Esse fenômeno que foi visto como o fenômeno da fuga das leis para o juiz, embora conveniente em certo momento, parece já não ter como se manter atuando, enquanto paradigma da pós-modernidade.
Se o percurso inicial foi o do império da lei, e depois o percurso foi da lei para o juiz, bem pode ser que agora, o percurso busque a saída do juiz para o caso. Reconhece-se o retorno? Simples retorno, cíclico como de resto quase todas as coisas ou situações do mundo e da realidade dos homens. Vale dizer, a ênfase quanto à ambiência de centralização dos dados conducentes à solução dos enigmas jurídicos volta a ser posta nas ordens do direito privado, estabelecendo este importantíssimo paradigma da percuciência pós-moderna.
É o Direito Civil que, atualmente, por ter como objeto a vida e, em especial, a vida e a dignidade da pessoa humana, dá sentido e conteúdo ao sistema.(4)
Pois é sobre este Direito Civil, nesta era da pós-modernidade, neste tempo de tendências à descodificação e de implantação de novíssimos paradigmas, que o país aprova um novo Código, resultado de um Projeto de Lei que já tem vinte e seis anos.
Teria sido melhor a distribuição, em diversos setores, do grande sistema codificado? Teria sido melhor uma reconstrução sob a modelagem de micro-sistemas? Pessoalmente, defendi que sim. Não foi esta, contudo e então, a decisão do legislador do segundo Código Civil brasileiro, como se sabe.
Convido-os a rever, em curto vôo, o que se deu, no nosso país, nestes últimos cento e dois anos, sob a égide da legislação civil.
No Brasil, o primeiro Código Civil nos chegou em 1916 e entrou em vigor em 1917. Até então – embora o Brasil já fosse República há bons anos – os brasileiros se encontravam sob a égide da legislação portuguesa. Neste nosso Código (o único que tivemos até agora), cujo construtor foi o arquifamoso jurista brasileiro, Clóvis Bevilaqua, encontra-se o conjunto de regras sobre a pessoa, a família e o patrimônio, descrevendo os direitos a estas categorias atinentes, como o direito de família, o direito das obrigações, o direito dos contratos, a responsabilidade civil, o direito das coisas e o direito das heranças. Tudo isso se encontra precedido por um corpo de regras de caráter genérico, acerca das pessoas, dos bens em geral e dos atos jurídicos, corpo este denominado Parte Geral, e que tem por escopo a fixação dos conceitos primordiais que estarão a serviço das demais fases destacadas, em especial.
Trata-se de um Código que tem já mais de oitenta anos de vigência, mas que tem mais de cem anos, se considerarmos o período no qual o projeto de lei, de Clóvis Bevilaqua, ficou em discussão, à face da sociedade brasileira do começo do século XX.
Centenário, não podia ser diferente: ele pedia reforma ou substituição. A mais recente tentativa de reformulação do corpo positivo do Direito Civil data de 1975, ano em que ficou concluído o trabalho de uma Comissão de ilustres juristas nacionais, constituída pelo governo federal em 1967. Esta Comissão, presidida pelo filósofo e jurista Miguel Reale, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, era composta pelos ilustres Professores José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro.
Este foi o Projeto de Código Civil Brasileiro que logrou ser aprovado, recentemente, pela nossa Casa Legislativa de Deputados Federais, depois de decorridos vinte e seis anos de seu encaminhamento inicial à Presidência da República; o Brasil passa a ter, agora, o texto aprovado da lei que, depois de sancionada e publicada, passará a ser o segundo Código Civil desta ainda jovem nação.
O Código Civil em vigor(5), promulgado em 1916 e vigente a partir de 1917, fruto da inteligência incontestável de Clóvis Bevilaqua, pedia reforma, posto ser um corpo legislativo elaborado nos estertores do século XIX e promulgado no início do século passado, gigante e bem construído para o seu tempo, mas em franco compasso de desatualização, em tantos dos seus segmentos.
A sociedade brasileira e a comunidade dos juristas, por um lado, reverenciavam a majestade inconteste de seu primeiro Código, razão de justo orgulho que foi sempre, para todos os brasileiros, mas, por outro lado, pressentiam que os fatos e a vida dos homens na sociedade contemporânea encontravam-se – em tantos vieses – em descompasso com a Lei Civil que tinha por escopo fundamental exatamente a regulação destes fatos e destas relações da vida privada.
A reforma se impunha, tendo em vista o significativo aumento, entre nós, de normas dispersas, margeantes e até mesmo conflitantes, que foram se acumulando na tentativa de adaptar, ou de afeiçoar, o direito legislado às gigantescas transformações operadas na estrutura da sociedade brasileira. Nem sempre, contudo, este método de revisão e de adaptação legislativa foi seguro e prosperou eficientemente, tendo em vista, especialmente, o fato de que o Código vigente houvera sido elaborado para um país diferente, para um povo de costumes distintos, em diversa época e à face de outros anseios e de outros valores.
Não se tratava, contudo, na visão da Comissão encarregada de elaborar o Projeto de novo Código Civil, de simplesmente fazer com que se desintegrasse um monumento legislativo de altíssima qualidade, como o é o Código Bevilaqua. Mas tratava-se – como sempre repetido pelo Professor Miguel Reale – de buscar aproveitar, na maior amplitude possível, o arcabouço de 1916, dando-lhe as cores e imprimindo-lhe os traços consentâneos com a realidade deste momento histórico vivenciado pela sociedade brasileira, já nos albores do século XXI.
Um novo Código Civil...
Conservar o possível; inovar, sempre que necessário: esta foi, ao que se verificou, a intenção primordial da Comissão de juristas que teve a seu cargo a construção do Código novo, inspirados, os seus ilustres membros, na previsão do próprio legislador de cem anos antes, Clóvis Bevilaqua: Mas por isso mesmo que o Direito evolui, o legislador tem necessidade de harmonizar os dois princípios divergentes (o que se amarra ao passado e o que propende para o futuro), para acomodar a lei e as novas formas de relações e para assumir discretamente a atitude de educador de sua nação, guiando cautelosamente a evolução que se acusa no horizonte.(6) ’ (7)
De qualquer modo, este Código Civil aprovado certamente se tornará o próximo Código Civil Brasileiro, de sorte a que a comunidade jurídica deve, com a rapidez possível e a seriedade de sempre, buscar entendê-lo, conhecê-lo verdadeiramente, deslizar sobre todos os seus meandros e analisar toda a sua arquitetura, pois somente assim a sociedade poderá agora – já que não participou antes – criar suas opiniões, debater os pontos negativos ou falhos, demarcar os aspectos positivos e inovadores, e exigir as alterações que se registrarem como necessárias, como urgentes e como imprescindíveis, conforme o caso, de molde a que o Código possa ser modificado e alterado na medida da conveniência do cidadão brasileiro e de sua especialíssima realidade, neste início de milênio.
De minha parte creio que este momento atual, à face da legislação já aprovada, supera a discussão tão antiga como importante acerca de ser este instrumento legislativo um corpo que já nasce velho. Bem como pressinto que seja necessária a superação, neste ponto da vida jurídica brasileira, da discussão acerca da preferência por sistemas codificados ou por sistemas fragmentados em menores estruturas legislativas.
Para que não reste dúvida acerca de minha pessoal posição sobre temas tão instigantes, registro que participo da corrente daqueles que entendem que melhor estaria a situação em discussão se tivesse a sociedade brasileira tido uma maior participação na construção da nova Lei Civil, bem como acredito que melhor seria se o legislador brasileiro houvesse feito a opção por um método fragmentário de legislar, a partir de um núcleo centralizador das normas de caráter geral, à volta do qual pudessem mesmo gravitar outros núcleos legislativos específicos, como um Código de Família, por exemplo, e entre outros.
Não foi assim que se deu.
Contudo, e antes de passar a desdobrar uma apreciação horizontal sobre os diversos momentos de concreção do Código aprovado, registro também a minha antevisão ou presciência sobre aquilo que imagino serem as tendências do Direito Civil e seu perfil legislado, para o século que apenas se descortina. Já tive ocasião de escrever que ‘de modo globalizado, se tem anotado que a tendência do que há de mais atual em sede de legislação é a preferência por sistema que prevê a adoção de mini-codificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do Direito Civil.(8) Mantê-los todos no arcabouço de um Código, equivaleria assumir a má vontade quanto ao atendimento das constantes urgências de atualização, com a agilidade que os reclamos da justiça exige, porque a pretensão napoleônica de um direito codificado que seja eterno e imutável se destrói com o mero evolver da vida.’(9) Acredito então que, em futuro nem tão distante, a tendência legislativa brasileira se alinhará aos mais consentâneos e contemporâneos métodos de agrupar as normas jurídicas, seguindo a linha de moderníssimas legislações que não só discutem bem os seus projetos com a sociedade, mas que tendem mesmo a desaglutinar ou descodificar as matérias fundamentais de regência da vida humana, retirando do arcabouço nuclear principal os temas que são, em espaços de tempo mais curtos, mais suscetíveis de alterações graças às suas próprias características intrínsecas.
Assim – e num compasso de ousadia completamente sujeito a toda a sorte de críticas – imagino que o Direito Civil, ou o Direito Privado, que ainda está por vir se matizará por tendências que já se prenunciam, formatando-se como um Direito mais ético, mais composto com o sentir do que com a razão, mais digno, mais socializado, mais corajoso e fiel, mais permeável ao afeto, mais despojado de arcabouços meramente patrimoniais.(10)
A travessia do século inspira, enfim, um direito mais humanizado, segundo o meu sentir. E este novo direito, quando legislado, poderia ser tal que, em sede de teoria geral, por exemplo, tendesse à ampliação sempre crescente da tutela ao nascituro; que operasse uma inversão da eterna precedência, em importância, dos bens móveis sobre os bens imóveis; que pudesse proceder a um reconhecimento cada vez mais enfático da autonomia da vontade, com o conseqüente enfraquecimento de figuras que a restrinjam, como por exemplo, a lesão; que valorizasse o consentimento informado (informed consent) na manifestação da vontade humana.
E poderia ser tal esse direito, quando legislado, em sede do direito das obrigações, que sem mais tardar incorporasse novas figuras contratuais que acomodassem o e-commerce e que acomodasse as novas faces da economia; que propendesse a uma crescente objetivação da obrigação – incluindo aquela que resulta do dever de indenizar o dano – de modo a distinguir e separar, cada vez mais, os conceitos de pessoa e de obrigação, preocupando-se antes com o direito da vítima que sofre os danos que com as excludentes do dever de indenizá-los; que fosse um direito de tal sorte legislado que compreendesse a expansão de elementos securitários nas obrigações em geral, de tal forma a limitar os efeitos-surpresa na vida dos contratos, quer para credores, quer para devedores.
E se ambiência fosse a do direito das coisas, que o direito do futuro, ao legislar-se, pudesse se preocupar em ampliar o rol dos efeitos decorrentes da situação fática da posse, valorizando-a como tal; que pudesse estender o elenco fechado das figuras de direito real, para contemplar outras que pudessem atender a realidade fundiária de país com tão ampla superfície territorial, como é o caso do Brasil; que considerasse uma simplificação do sistema de transferência da propriedade, em virtude do aperfeiçoamento das matrizes registrais, com base em plataformas digitais.
E no que respeita ao direito das sucessões, que a forma legislada do direito futuro pudesse contemplar uma significativa simplificação das modalidades testamentárias, ampliando a liberdade de testar e reduzindo, proporcionalmente e em contrapartida, a limitação da cota legitimaria; que buscasse dar mais ênfase ao aspecto patrimonial da partilha, dando preferência a quinhões hereditários de igual valor, ainda que desiguais os bens que os constituem; e que favorecesse atribuições hereditárias preferências que tivessem por escopo evitar o esfarelamento improdutivo da propriedade agrária pela repetição de partilhas, e a inviabilização de empresas familiais.
E mais, ainda, que o direito (de cujas tendências se fala) fosse um tal direito que, quando legislado, em sede do direito de família, se mostrasse avesso à intervenção estatal no âmago das relações familiais, com a conseqüente ampliação da autonomia dos cônjuges; que flexibilizasse o regime patrimonial da família; que afirmasse a inegável realidade de que a família é um núcleo fundado no afeto e não na consangüinidade.(11)
Realizada esta apreciação, de cunho e natureza totalmente pessoal, à guisa de uma prospecção do Direito Civil de amanhã, talvez conviesse, então, e por último, verificar a interface do direito legislado hoje – como sendo o Código Civil de amanhã – com estas eventuais tendências do direito da pós-modernidade, se este raciocínio não se revelar, antes, como uma inconseqüente, temerária e simples ilusão visionária de quem pretende e espera por um direito mais humanizado, mais parecido com cada um de nós.
Uma consideração em primeira mão há de ser obrigatoriamente referida, então, por quem quer que pressinta o reclamo de crise e de transformação do direito privado, neste alvorecer de um outro século, qual seja, a menção de que o direito pós-moderno perpassa o indivíduo, ultrapassa o sujeito de direito e se faz presente por meio de seu verdadeiro centro epistemológico: o ser humano e a sua dignidade, em prol da realização de sua condição de cidadão solidário. O individualismo liberal que triunfara no século anterior, por influência, ainda, do evolver oitocentista, cede lugar ao personalismo ético como valor político-social fundante e legitimador,(12) e a pessoa humana passa a ser o ponto central do direito.
Já o núcleo familiar que se descortina contemporaneamente, nota-se que se mostra desintoxicado do ancestral rigor da legitimidade. O modelo do legislador já não suporta se ofertar como único ou melhor, mesmo porque o descompasso gravado entre ele e a multiplicidade de modelos apresentados na vida como ela é, de tão enorme, já não admitia a sobrevivência de outra saída que não esta, adotada, enfim, pelo legislador pátrio, de constitucionalizar relevantes inovações, entre elas: a) a desmistificação de que a família só se constituísse a partir do casamento civilmente celebrado; b) a elevação da união livre, dita estável pelo constituinte, à categoria de entidade familiar; c) a conseqüência lógica de que, por isso, a união estável passou a realizar, definitivamente, o papel de geratriz de relações familiares, ela também; d) a verificação de que efeitos distintos, além dos meramente patrimoniais, estão plasmados nestas outras – e constitucionalmente regulamentadas – formas de constituição da família, hoje. (13)
Quanto à propriedade, outro dos três mais significativos pilares estruturais do Direito Civil – ao lado da família e do contrato – não parece restar mais dúvida, na atualidade, a respeito de que ela não é uma função social, mas que – isso sim – tem uma função social que lhe é inerente, significando que se encontrará o proprietário obrigado a dar uma determinada destinação social aos seus bens, concorrendo, assim, para a harmonização do uso da propriedade privada ao interesse social, mas sem o exagero da coletivização dos bens, modus próprio de outro regime ou sistema político-econômico, de natureza socialista.(14)
De toda a sorte, o que se passa pelo cenário da pós-modernidade, enfim, é mesmo este excepcional e indiscutivelmente real fenômeno que restringe e limita o exercício do direito de propriedade, pela faceta de suas diversas faculdades jurídicas, aparando arestas do individualismo tradicional, como diria Caio Mário da Silva Pereira(15), e bombardeando, de todos os ângulos, o absolutismo do direito de propriedade [...].(16)
O reconhecimento de uma nova ordem – acima e além da manière plus absolue de jouir e disposer des choses (17) – instalou-se com a superação do princípio pré-revolucionário do laisser faire, laisser passer (18), com a superação da atribuição de poder absoluto ao titular do direito de propriedade.
Finalmente, quanto ao contrato – conformação derradeira da triangulação básica do Direito Civil – seria possível referir, prioritariamente, às cláusulas gerais que constituem uma técnica legislativa característica da segunda metade deste século, época na qual o modo de legislar casuisticamente, tão caro ao movimento codificatório do século passado – que queria a lei clara, uniforme e precisa [...] – foi radicalmente transformado, por forma a assumir a lei características de concreção e individualidade que, até então, eram peculiares aos negócios privados.(19)
A mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a da boa-fé objetiva nos contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e de desvantagens que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de direito, provavelmente a cláusula da boa-fé objetiva, nos contratos, seja mais útil que deficiente, uma vez que, por boa-fé, se entende que é um fato (que é psicológico) e uma virtude (que é moral).
Por força desta simbiose – fato e virtude – a boa fé se apresenta como a conformidade dos atos e das palavras com a vida interior, ao mesmo tempo que se revela como o amor ou o respeito à verdade. Contudo, observe-se, através da formidável lição de André Comte-Sponville, que a boa-fé não pode valer como certeza, sequer como verdade, já que ela exclui a mentira, não o erro.(20)
O homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do termo. Vale dizer, é uma crença ao mesmo tempo que é uma fidelidade. É crença fiel, e fidelidade no que se crê. É também o que se chama de sinceridade, ou veracidade, ou franqueza, é o contrário da mentira, da hipocrisia, da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé. (21)
Esta é a interessante visão da boa-fé pela sua angulação subjetiva; contudo, enquanto princípio informador da validade e eficácia contratual, a principiologia deve orientar-se pelo viés objetivo do conceito de boa-fé, pois visa garantir a estabilidade e a segurança dos negócios jurídicos, tutelando a justa expectativa do contraente que acredita e espera que a outra parte aja em conformidade com o avençado, cumprindo as obrigações assumidas. Trata-se de um parâmetro de caráter genérico, objetivo, em consonância com as tendências do direito contratual contemporâneo, e que significa bem mais que simplesmente a alegação da ausência de má-fé, ou da ausência da intenção de prejudicar, mas que significa, antes, uma verdadeira ostentação de lealdade contratual, comportamento comum ao homem médio, o padrão jurídico standard.
Em todas as fases contratuais deve estar presente o princípio vigilante do aperfeiçoamento do contrato, não apenas em seu patamar de existência, senão também em seus planos de validade e de eficácia. Quer dizer: a boa-fé deve se consagrar nas negociações que antecedem a conclusão do negócio, na sua execução, na produção continuada de seus efeitos, na sua conclusão e na sua interpretação. Deve prolongar-se até mesmo para depois de concluído o negócio contratual, se necessário.
Da consagração da boa-fé objetiva, nas relações contratuais, decorrem principalmente os deveres de informação, de colaboração e de cuidado, somatória que realiza a insofismável verdade que, em sede contratual, se lida com algo bem maior que o simples sinalagma, mas se lida com pressupostos imprescindíveis e socialmente recomendáveis, como a fidelidade, a honestidade, a lealdade, o zelo e a colaboração. Enfim, está presente, também na ambiência contratual, o sentido ético, a tendência socializante e a garantia de dignidade que são, por assim dizer, as marcas ou os marcos deste direito que perpassando os séculos, se apresenta modificado aos primórdios do milênio novo.’(22)
Senhores.
Estas são, enfim, algumas das considerações de caráter geral e horizontal que gostaria de lhes ter feito, acerca da visão contemporânea do Direito Civil brasileiro nesta era da pós-modernidade, da sua fase de transição legislativa e das tendências para o século que apenas se inicia.
Muito obrigada pelo convite e pela elevada atenção.
São Paulo, 03 de outubro de 2001.
01. A respeito, leia-se Questões fundamentais de hermenêutica, Emerich Coreth (trad. Carlos Lopes de Matos), São Paulo: Edusp, 1973.
02. A respeito, leia-se O direito pós-moderno e a codificação, Antonio Junqueira de Azevedo, in Revista da Faculdade de Direito (Universidade de São Paulo), vol. 94 – ano 1999, ps. 3-12
03. Idem, ibdem, p. 5, principalmente.
04. Idem, ibdem,p. 9.
05. Lei n. 3.071, de 1o de janeiro de 1916, em vigor desde 1o de janeiro de 1917.
06. Conf. Miguel Reale, Lacunas e Arcaísmos do Código Civil Vigente, in O Projeto do Novo Código Civil, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1999, p.28.
07. Estas considerações encerradas entre aspas simples são as mesmas que a autora já despendeu em outra recente palestra acerca das Tendências do Direito Civil no século XXI, proferida em 21.09.2001, no Seminário Internacional de Direito Civil, promovido pelo NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa da Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG
08. Paulo Luiz Netto Lobo, Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, ano 36, nº. 141, Brasília, 1999.
09. Idem à nota nº 7.
10. Idem à nota nº 7.
11. Este parágrafo da presente palestra, assim como os quatro anteriores, nos quais traço um idealizado percurso do Direito Civil do futuro e da eventual possibilidade de sua regulação, espelham aspectos que foram originalmente levantados pelo ilustre Professor João Baptista Villela (UFMG), em conversas pessoais e virtuais que tivemos durante o mês de setembro de 2001, e que são muito mais, como ele próprio afirma, pontos de partida para uma reflexão, que visões antecipatórias de tendências, em razão de que, o avanço sobre tais considerações deve ser sempre cauteloso.
12. A respeito, leia-se Francisco Amaral, Direito Constitucional: a eficácia do Código Civil Brasileiro após a Constituição Federal de 1988, e ainda, Direito Civil – Introdução, cit.
13. Para aprofundar este assunto, v. Silvana Maria Carbonera, “O papel jurídico do afeto nas relações de família”, in “Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo”, coord. Luiz Edson Fachin, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1998, p.273 e seguintes.
14. Conf. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida
15. Caio Mário da Silva Pereira, Direito Civil – alguns aspectos de sua evolução, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, p. 70.
16. Idem, ibdem, p. 71.
17. Conforme a famosa consagração do art. 544 do Código Civil francês (1804).
18. Laisser faire, laiser passer, le monde va de lui-même: Deixar fazer, deixar passar, o mundo caminha por si só.
19. Judith Martins-Costa, O Direito Privado como um sistema em construção:as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro (www.jusnavigandi.com.br).
20. André Comte-Sponville, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes, 1999, citado por Régis Fichtner Pereira, “A responsabilidade civil pré-contratual”, Renovar, 2001.
21. Idem, ibdem.
22. Estas considerações que se encontram entre aspas simples, entre as ps. 09 e 13 são as mesmas – com breves alterações ou supressões – que já haviam sido expendidas em anterior palestra, conforme já referido à nota nº 07.
* Palestra de abertura do Ciclo de palestras sobre o novo Código Civil promovido pelo Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, proferida no dia 03.10.2001.
** Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Professora Doutora do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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