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O princípio da boa-fé objetiva no direito de família
1.INTRODUÇÃO. A BOA-FÉ OBJETIVA E O NOVO CÓDIGO CIVIL
Ensina Miguel Reale que três são os princípios basilares do novo Código Civil: a socialidade, a eticidade e a operabilidade. [01] Tais princípios têm sido muito discutidos pelos doutrinadores que abordam os temas disciplinados pela nova codificação, de modo a orientar conclusões interessantes sobre os institutos de Direito Privado.
Pelo princípio da socialidade, rompe-se com o caráter individualista e egoístico do Código Civil de 1916. Nesse sentido, todos os institutos de Direito Privado passam a ser analisados dentro de uma concepção social importante, indeclinável e inafastável: a obrigação, a responsabilidade civil, o contrato, a empresa, a posse, a propriedade, a família, o testamento. Para facilitar sua visualização social, os institutos de Direito Privado devem ser analisados tendo como parâmetro o Texto Maior: a Constituição Federal de 1988 e seus preceitos fundamentais, particularmente aqueles que protegem a pessoa humana.
De acordo com o princípio da eticidade, a ética e a boa-fé ganham um novo dimensionamento, uma nova valorização. A boa-fé deixa o campo das idéias, da intenção - boa-fé subjetiva -, e ingressa no campo dos atos, das práticas de lealdade - boa-fé objetiva. Essa boa-fé objetiva é concebida como uma forma de integração dos negócios jurídicos em geral, como ferramenta auxiliar do aplicador do Direito para preenchimento de lacunas, de espaços vazios deixados pela lei.
Por seu turno, o princípio da operabilidade, que para nós apresenta maiores dificuldades de compreensão, tem dois enfoques. Em um primeiro sentido, a operabilidade é responsável pela facilitação do Direito Privado, ao deixar-se de lado o rigor técnico, que era muito valorizado pela codificação anterior, e ao buscar-se a simplicidade de um Direito Civil que realmente tenha relevância prática, material e real. Desse ponto, nasce o segundo enfoque do princípio: a efetividade, que está relacionada com o sistema de cláusulas gerais, adotado pela nova codificação. Essas cláusulas gerais são janelas abertas deixadas pelo legislador para preenchimento pelo aplicador do Direito. [02]
No presente trabalho, abordaremos especificamente o segundo princípio, a eticidade, particularmente a relação da boa-fé objetiva com o Direito de Família. De qualquer modo, entendemos que a eticidade mantém íntima conexão com a socialidade e a operabilidade, em uma espécie de simbiose.
A relação entre eticidade e socialidade é flagrante. Ora, se os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (art. 113, CC), fica claro que, nessa interpretação, será levado em conta o meio social, particularmente as suas interferências no âmbito jurídico. Sendo a boa-fé um das mais importantes cláusulas gerais do novo Código Civil brasileiro, a relação com a operabilidade é percebida de imediato. Em alguns pontos, podemos dizer que eticidade e operabilidade até se confundem. [03]
Pois bem, o que constituiria a boa-fé, particularmente com a nova feição que lhe é dada pelo novo Código Civil? Para Francesco Carnelutti, no seu sentido jurídico, a boa-fé seria a
vontade conforme ao direito, ou, em termos mais sintéticos, vontade do direito e não apenas, portanto, opinio iuris. Assim se explica que não constitua boa-fé a convicção de direito devida a uma vontade deficiente, de onde procede a conhecida equiparação de má-fé com culpa grave. [04]
Essa boa-fé referenciada pelo Mestre de Milão é a boa-fé subjetiva, intencional. É interessante deixar claro que a subjetivação da boa-fé ocorreu na Europa com a recepção de conceitos advindos do Direito Romano. [05] Com o jusnaturalismo, a boa-fé ganhou, no Direito Comparado, uma nova faceta, relacionada com a conduta dos negociantes, sendo denominada boa-fé objetiva. Nessa fase, foi fundamental o pensamento de Hugo Grotius, que deu uma nova dimensão à boa-fé, ao atrelá-la à interpretação dos negócios jurídicos, particularmente no campo contratual. [06] No Direito Comparado, outros autores, como Pufendorf, procuraram trazer a boa-fé para o campo da conduta, relacionando-a com uma "regra histórica de comportamento". [07] Da subjetivação saltou-se para a objetivação, o que é consolidado pelas codificações privadas européias.
Assim sendo, alguns códigos da era pós-moderna fazem menção à boa-fé objetiva, caso do Código Civil português, do Código italiano de 1942 e do BGB alemão. Nosso novo Código Civil, ao seguir essa tendência, adota a dimensão pós-moderna da boa-fé. Entre nós, a exemplo do que ocorreu anteriormente no Direito Comparado, tornou-se comum afirmar que a boa-fé objetiva está relacionada com os deveres anexos, que são íncitos a qualquer negócio jurídico, não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento negocial. [08] A quebra desses deveres anexos gera a responsabilização civil daquele que desrespeita a boa-fé objetiva. [09]
Como deveres anexos, podemos citar, entre outros: a) o dever de cuidado em relação à outra parte negocial; b) o dever de respeito; c) o dever de informar a outra parte quanto ao conteúdo do negócio; c) o dever de agir conforme a confiança depositada; d) o dever de lealdade e probidade; e) o dever de colaboração ou cooperação; f) o dever de agir conforme a razoabilidade e a eqüidade.
Além da relação com esses deveres anexos, o que é construção doutrinária, o novo Código Civil, em três dos seus dispositivos, apresenta funções importantes para a boa-fé objetiva. A primeira é a função de interpretação do negócio jurídico, conforme consta do art. 113 do atual Código Civil, outrora já mencionado. [10] A segunda é a denominada função de controle, conforme art. 187 do novo Código Civil, segundo o qual aquele que contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito. [11] A terceira função é a função de integração do contrato, conforme art. 422 do novo Código Civil. [12] Apesar desse dispositivo legal prever que a boa-fé deve integrar todas as fases contratuais, entendemos que, na verdade, ela deve constar em todas as fases dos negócios jurídicos em geral.
Pois bem, o que pretendemos no presente trabalho é justamente aplicar essas três funções da boa-fé objetiva, e, logicamente, o próprio instituto jurídico para os conceitos ligados ao Direito de Família. Não encontramos qualquer óbice legal em aplicar os arts. 113 e 187 do novo Código Civil já que se tratam de dispositivos genéricos, constantes da Parte Geral da codificação, no capítulo que regulamenta os negócios jurídicos. A única ressalva poderia ser feita em relação ao art. 422 do novo Código Civil, cuja aplicação estaria restrita aos contratos.
O problema é solucionado se considerarmos o casamento e a união estável como sendo contratos, assim como faz parte da doutrina. [13] Entretanto, temos defendido que tais institutos, particularmente o casamento, não constituem um contrato, na melhor acepção do termo. Isso porque o contrato é por nós conceituado como sendo um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial. [14] Pois bem, entendemos, pelo menos aparentemente, que não há no casamento um intuito patrimonial, o mesmo valendo para os demais institutos de Direito de Família, nos quais se buscam o afeto, o amor, ou a própria perpetuação da vida humana.
Mas, se percorrermos outro caminho por três premissas ou justificativas, também podemos afirmar que o art. 422 do novo Código Civil pode ser perfeitamente aplicável aos institutos familiares, particularmente ao casamento e à união estável. Primeiro, porque, como vimos, os baluartes do novo Código Civil são a eticidade, a socialidade e a
operabilidade, princípios com os quais a boa-fé objetiva mantém relação.
Dessa forma, a referida cláusula geral deveria ser aplicada a todos os institutos de Direito Privado. Segundo, porque seria inconcebível aplicar os arts. 113 e 187 da atual codificação aos institutos de Direito de Família, afastando a aplicação do art. 422 diante de um óbice formal. Vale repetir que a nova codificação privada não se apega ao formalismo, sendo essa a melhor expressão do princípio da operabilidade, da simplicidade. Entender que, no Direito de Família, a boa-fé teria dupla e não tripla função é, para nós, totalmente inconcebível. Terceiro
, por fim, lembramos que a principal função da boa-fé é justamente suprir e corrigir os negócios jurídicos em geral. [15]
Como o Direito Civil deve buscar a justiça social, a boa-fé também há de exercer esse papel nos casos que envolvem os institutos do Direito de Família. É justamente essa aplicação que pretendemos demonstrar neste trabalho. Abordaremos a relação da boa-fé objetiva com institutos de Direito de Família. Falaremos da sua aplicação ao casamento, à união estável, aos alimentos e ao reconhecimento de filhos. Por último, demonstraremos as nossas considerações finais. Partimos, então, para tal desafio.
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2.A BOA-FÉ OBJETIVA E O CASAMENTO
O casamento pode ser conceituado como sendo a união de pessoas de sexos distintos reconhecida pelo Estado e regulamentada pela lei. O casamento é reconhecido como entidade familiar, conforme art. 226, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal de 1988, e é tratado ainda pelo novo Código Civil, a partir do seu art. 1.511.
Muito se discute sobre a natureza jurídica do casamento. Como já deixamos claro, entendemos que o casamento não constitui um contrato na sua melhor acepção. Nesse sentido, somos filiados à corrente doutrinária mista ou eclética, segundo a qual o casamento seria uma instituição quanto ao conteúdo, e estaria presente a natureza contratual apenas na sua formação. De qualquer forma, diante de regras especiais para a sua constituição, o casamento seria um negócio jurídico sui generis, especial. [16]
Superada essa ressalva doutrinária, torna-se imperioso verificar que o art. 1.566 do novo Código Civil, a exemplo do art. 233 do Código Civil de 1916, prevê os deveres de ambos os cônjuges no casamento.
O primeiro dever é o de fidelidade (art. 1.566, inc. I), que mantém relação direta com a boa-fé objetiva, entendida como uma conduta leal que deve existir entre as partes de um negócio jurídico, caso inclusive do casamento.
O segundo dever trata-se da mútua assistência (art. 1.566, inc. II), que também decorre da boa-fé, sendo entendida não só como assistência econômica, mas também assistência afetiva e moral. [17]
Mas, sem dúvida, o dever que mais mantém relação com o dever de lealdade é o de respeito e consideração mútuos (art. 1.566, inc. V).
A vida em comum, no domicílio conjugal, antigo dever de coabitação, também constitui um dever decorrente do casamento (art. 1.566, inc. II), o que inclui o débito conjugal, de acordo com a doutrina tradicional. [18] Atualmente, o conceito de coabitação tem sido analisado tendo em vista a realidade social, de modo a admitir-se a coabitação fracionada, sem que haja quebra dos deveres do matrimônio. Assim sendo, é possível que cônjuges mantenham-se distantes por boa parte do tempo, sem que haja o rompimento do afeto, do amor existente entre eles, vínculo mais forte a manter a união. [19] Ainda quanto à coabitação, diante do regime democrático que deve imperar nas relações familiares, o art. 1.569 do novo Código Civil prevê que o domicílio conjugal será escolhido por ambos os cônjuges.
Por fim, constitui dever decorrente do matrimônio o sustento, guarda e educação dos filhos (art. 1.566, inc. IV). Essa previsão mantém relação direta com a solidariedade social prevista na Constituição Federal (art. 3º, inc. I), que também deve estar presente nas relações familiares, até mais do que em qualquer outra relação. Vale lembrar que a família é a celula mater da sociedade e, se a solidariedade não for atendida em relações dessa natureza, o que dizer quanto ao restante das relações privadas?
Pois bem, de imediato percebe-se que a boa-fé objetiva deve estar presente na fase casamentária, ou seja, durante o casamento. Há ainda um dever de colaboração entre os cônjuges quanto à direção da sociedade conjugal, sem distinção entre marido ou mulher, conforme art. 1.567 do novo Código Civil. [20] Em complemento, o art. 1.568 do mesmo Código prevê que cada cônjuge será obrigado a concorrer, na proporção dos seus bens e dos seus rendimentos, para o sustento da família e para a educação dos filhos, qualquer que seja o regime matrimonial adotado entre eles. Trata-se de outro dispositivo que consagra o dever anexo de cooperação ou colaboração, relacionado com a boa-fé objetiva.
Superado esse ponto, recordamos que, quanto ao casamento, a boa-fé está tratada especificamente no art. 1.561 do novo Código Civil, cuja redação destacada nos interessa para aprofundamentos necessários:
Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.
1o Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão.
2o Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento,os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.
O dispositivo em questão, como já previa o art. 221 do Código Civil de 1916, apresenta o conceito de casamento putativo, aquele que, embora nulo ou anulável, gera efeitos em relação a terceiros de boa-fé. A expressão destacada tornou-se comum no Direito Civil Brasileiro, diante da relação com o termo putare, que significa crer, pensar, imaginar. Pela própria etimologia da expressão, percebe-se que a boa-fé constante do art. 1.561 do atual Código Civil não é a boa-fé objetiva - relacionada com conduta -, mas a subjetiva, intencional, relacionada com a crença, com o poder imaginativo da pessoa humana. [21]
Diante dessa constatação, o art. 1.561 não será o nosso objeto do estudo, pois pretendemos discorrer sobre a nova dimensão dessa boa-fé. Na verdade, pretendemos aqui defender a aplicação dos arts. 113, 187 e 422 do novo Código Civil para todas as fases do casamento, a gerar a responsabilização civil daquele que desrespeitar a boa-fé objetiva.
A questão a ser por nós discutida refere-se à quebra de promessa de casamento como fato gerador do dever de indenizar, inclusive por danos morais. A quebra dessa promessa ocorre, muitas vezes, quando se estabelece um compromisso de noivado, de modo a fazer surgir o dever de indenizar nos esponsais. A possibilidade de reparação nesse caso vem sendo tratada pela doutrina, na qual há posicionamentos em ambos os sentidos.
Entre os que estão favoráveis à indenização, podemos citar Inácio de Carvalho Neto, que lembra o fato do nosso "Código, ao contrário dos Códigos alemão, italiano, espanhol, peruano e canônico, não regula sequer os efeitos do descumprimento da promessa". Mas, para esse autor "isto não impede que se possa falar em obrigação de indenizar nestes casos, com base na regra geral da responsabilidade civil. Como afirma Yussef Cahali, optou-se por deixar a responsabilidade civil pelo rompimento da promessa sujeita à regra geral do ato ilícito". [22] Assim sendo, seria possível a indenização de danos morais em decorrência da quebra da promessa de casamento futuro por um dos noivos.
Ao contrário, Maria Berenice Dias entende que, em casos tais, seriam indenizáveis somente os danos emergentes, os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso. Assim, não há que se falar em danos morais ou mesmo em lucros cessantes. [23] Entre os membros do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), há forte corrente doutrinária que entende não se poder falar em responsabilidade civil por danos morais nas relações familiares.
Concordamos integralmente que o casamento não é fonte de lucro, conforme aduz a doutrinadora por último citada, portanto não há como ressarcir lucros cessantes. Mas, ao contrário, entendemos ser possível a reparação dos danos morais nos casos que envolvem as relações de família, particularmente no caso aqui estudado. Opinamos que a complexidade das relações pessoais recomenda a análise caso a caso.
Especificamente quanto à quebra de promessa de casamento futuro, entendemos que, no novo Código Civil, o dever de indenizar surge não com base no art. 186, que trata do ato ilícito, mas com fundamento no art. 187, que disciplina o abuso de direito. Esse o ponto de divergência entre nosso posicionamento e o da maioria da doutrina, que reconhece o dever de indenizar nessas situações em decorrência do ato ilícito propriamente dito.
Na jurisprudência, encontramos julgados que apontam para a reparabilidade dos danos morais em casos tais. [24] Foram encontradas também decisões que afastam totalmente a possibilidade de reparação dos danos morais por quebra de noivado. [25] Por fim, há ementas que afastam o dever de indenizar em casos determinados, mas reconhecem a reparabilidade dos danos morais por quebra de promessa de noivado. [26] Na verdade, diante da casuística, é preciso conciliar todos esses entendimentos jurisprudenciais para chegar a uma conclusão plausível dentro do caso concreto a ser analisado.
Repetimos que, para nós, é possível a reparação de danos morais se a não celebração do casamento prometido causar lesão psicológica ao(à) noivo(a) ou ao(à) namorado(a). De qualquer forma, também concordamos que a mera quebra da promessa não gera, por si só, o dano moral. Não há de se confundir o dano moral com os meros aborrecimentos que a pessoa sofre no seu dia-a-dia.
Em alguns casos, contudo, os danos morais podem estar configurados, principalmente naqueles em que a pessoa é enganada pela outra parte envolvida, a qual desrespeita toda a confiança depositada sobre si. Podemos citar o caso em que a noiva celibatária foi deflorada, enganada por aquele que ela acreditava ser seu futuro marido. Devemos lembrar que, para algumas pessoas, a virgindade ainda é tabu e deve ser mantida até a noite de núpcias, o que pode parecer um absurdo, mas não é, principalmente em cidades do interior desse imenso Brasil.
Também, pode gerar dano moral a situação em que a noiva descobre que o seu noivo que descumpriu a promessa é bissexual, sendo tal fato notório em pequena cidade do interior. Isso gera repercussões sobre a honra da pessoa, de modo a caraterizar o dano imaterial. E o que dizer de um caso em que o noivo transmite à noiva uma doença sexualmente transmissível, sendo esse o motivo da ruptura? Sem dúvida, estará presente o seu dever de indenizar.
Imaginemos uma outra situação: em uma pacata cidade do interior de Minas Gerais, Tício namora Madalena há cerca de dez anos, típico namoro longo de uma cidade do interior. Depois de muito tempo, Tício resolve fazer a promessa de casamento. As famílias fazem uma grande festa de noivado, em que Tício pede oficialmente a mão da namorada e marca o casamento para um ano depois. Todos os preparativos são feitos: o pai da noiva paga todas as despesas da festa e da celebração do casamento, os convites são distribuídos para todos os amigos das famílias, os padrinhos são convocados, os presentes são entregues. No dia e no local marcado para a celebração das núpcias, toda a comunidade local comparece: autoridades, familiares, padrinhos, imprensa, colunistas sociais. A igreja matriz da cidade está toda decorada. Na iminência do casamento, no mesmo dia, o noivo manda um mensageiro com um bilhete assinado dizendo que não irá mais casar, pois não ama a noiva, mas uma outra mulher. Nessa situação, não haveria o noivo não terá dever de indenizar? Não estará caracterizado o dano moral à noiva, além dos danos materiais suportados por seu pai? Acreditamos que sim.
Além desses exemplos, muitos outros poderiam surgir. Por isso é que recomendamos a análise caso a caso, à luz da boa-fé objetiva, da eticidade. De qualquer forma, gostaríamos de aprofundar a nossa ressalva quanto ao fundamento jurídico da reparação moral em casos tais. Com todo o respeito, não seguimos o entendimento pelo qual a reparação está motivada no art. 186 do atual Código Civil, dispositivo que conceitua o ato ilícito. [27] Isso porque não há de se falar em lesão ou violação de direitos quando alguém não celebra o casamento prometido, pois a promessa de casamento não vincula a sua celebração futura. Desse modo, não há ato ilícito propriamente dito.
O dever de indenizar, em casos tais, decorre do abuso de direito, pelo desrespeito à boa-fé objetiva ou, dependendo do caso, aos bons costumes. Desse modo, o dever de indenizar, nos moldes do art. 927, caput, do novo Código Civil, tem por fundamento o art. 187 da codificação. [28] Em nosso entendimento, isso geraria uma responsabilidade pré-negocial casamentária em decorrência do desrespeito aos deveres anexos na fase anterior ao casamento. Aliás, se fôssemos adeptos da corrente que aponta ser o casamento um contrato, falaríamos que a quebra da promessa de noivado gera uma espécie de responsabilidade pré-contratual.
Lembramos que o abuso de direito é lícito pelo conteúdo e ilícito pelas conseqüências, conforme já conceituava a doutrina. [29] No caso em questão, percebemos que a promessa de um casamento futuro é perfeitamente lícita. Mas, se a parte promitente abusar desse direito, ao desrespeitar os deveres que decorrem da boa-fé, presente estará o seu dever de indenizar.
Isso gera, sem dúvida, uma mudança de paradigma. Vale lembrar que a regra quanto ao dever de indenizar o ato ilícito continua sendo a responsabilização mediante culpa em sentido amplo, que engloba o dolo e a culpa estrita. Mas, como vimos, em caso de abuso de direito ou de quebra dos deveres anexos, a responsabilidade não depende de culpa, pelo que consta dos Enunciados n. 24 e n. 37 do Conselho da Justiça Federa, aprovados na I Jornada de Direito Civil. É justamente isso que ocorre na quebra da promessa de noivado ou de casamento futuro. Desse modo, entendemos que a boa-fé objetiva dá um novo tratamento à matéria, pois a quebra de promessa de casamento futuro dever ser encarada como uma quebra do dever de lealdade, que é inerente a qualquer negócio jurídico celebrado.
Ao superar-se essa abordagem, passamos à análise da relação entre a boa-fé objetiva e a união estável.
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3.A BOA-FÉ OBJETIVA E A UNIÃO ESTÁVEL PLÚRIMA OU MÚLTIPLA
A união estável é reconhecida como entidade familiar no art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988. Tal instituto jurídico é tratado também pelo novo Código Civil, que consolida a matéria (arts. 1.723 a 1.727).
De acordo com o art. 1.723 da atual codificação, é "reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". O comando legal em questão apresenta os requisitos para a caracterização da união estável.
O primeiro requisito é que a união seja entre pessoas de sexos distintos, assim como consta do Texto Maior. Apesar dos esforços de parte da doutrina, não há como entender, no atual estágio da legislação brasileira, que a união entre pessoas do mesmo sexo, denominada união homoafetiva, é instituto similar à união estável. Isso somente seria possível com a alteração da própria Constituição.
O segundo requisito é que a relação seja pública, no sentido de notoriedade social. Não constitui união estável a relação às escondidas, principalmente em relação aos familiares dos supostos companheiros.
O terceiro requisito é que a união seja duradoura, o que comporta análise caso a caso. A lei não apresenta qualquer parâmetro temporal para a sua caracterização, nem determina a necessidade de coabitação, de modo que continua em vigor a Súmula n. 382 do Supremo Tribunal Federal, que a dispensa.
Por fim, deve estar configurada a intenção dos companheiros de constituição de família. Nesse sentido, essa intenção está relacionada com a boa-fé subjetiva. De qualquer forma, a própria atuação dos conviventes pode presumir a existência da união estável. Se o comportamento dos companheiros indicar tal intenção, no tratamento entre eles (tractatus), haverá a presunção de existir a referida entidade familiar.
Já a exclusividade, apesar de não constar expressamente no art. 1.723 do novo Código Civil, constitui para nós um dos requisitos para a união estável, relacionada com a intenção de constituição de família - boa-fé subjetiva - e decorrente dos seus deveres, constantes do art. 1.724 da atual codificação - boa-fé objetiva. [30]
Quanto a essa exclusividade, pretendemos analisar a denominada união estável plúrima ou múltipla, situação em que a pessoa mantém relações amorosas, enquadradas no art. 1.723 do novo Código Civil, com várias pessoas e ao mesmo tempo. [31]
Vamos imaginar um caso prático, a fim de facilitar a visualização concreta do que estamos propondo, à luz da boa-fé objetiva. Tício, residente na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, vive em união estável, nessa cidade, com Maria Antonia, desde o ano de 2002. A união apresenta todos os requisitos constantes na lei civil. Toda a sociedade local reconhece a existência da entidade familiar, tratando os companheiros como se casado fossem. Entretanto, Tício é viajante e, desde o ano de 2003, encontra-se com Maria Figueiredo todas as segundas-feiras, na cidade de Franca, onde mantém um escritório. A relação também se enquadra nos termos do art. 1.723 do Código Civil. Tício e Maria Figueiredo têm um filho comum: João Henrique, de um ano de idade. Tício mantém ainda uma união pública, notória, contínua com Maria Augusta, na cidade de Batatais, para onde vai toda as quintas-feiras vender seus produtos. Aliás, Maria Augusta é dona de um estabelecimento comercial em que Tício consta como sócio. Ambos têm um negócio lucrativo naquela cidade do interior paulista. O relacionamento amoroso dura desde o ano de 2004. Por fim, Tício tem um apartamento montado na cidade de São Paulo, aonde vai ocasionalmente, de quinze em quinze dias, a fim de comprar produtos para vender no interior paulista. Nesse apartamento, reside Maria Carmem, com quem o Tício tem um relacionamento desde o final do ano de 2004. Essa sua convivente está grávida e espera um filho seu. No caso hipotético, uma Maria não sabe a existência da outra como convivente de seu companheiro, até que, um dia, o pior acontece e o mundo desaba.
Por mais incrível que possa parecer, a situação descrita pode ocorrer na prática. A primeira dúvida que surge é: constituem todos os relacionamentos união estável, nos termos do que consta do Código Civil e da Constituição Federal? Três posicionamentos podem surgir quanto ao caso em questão.
Um primeiro entendimento poderá apontar que nenhum dos relacionamentos constitui união estável. A encabeçar essa corrente está Maria Helena Diniz, para quem a fidelidade ou lealdade constitui um dos requisitos da união estável, sem o qual não há a referida entidade familiar. [32] Entretanto, diante do desrespeito à boa-fé, as Marias poderão pleitear que Tício indenize-as por danos materiais e morais, pela caracterização do abuso de direito, por desrespeito à boa-fé objetiva, que também ser espera na união estável. Esse primeiro entendimento pode ser afastado pela conclusão de que a fidelidade ou o respeito mútuos não constitui elemento essencial para a caracterização da união estável, mas apenas um dever dela decorrente, constante do art. 1.724 do novo Código Civil. [33]
Já para uma segunda corrente, deveriam ser aplicadas, para o caso em questão, as regras previstas para o casamento putativo. Assim sendo, as Marias que ignorassem a existência da primeira união constituída - com Maria Antonia -, poderiam pleitear a aplicação analógica do que consta do já transcrito art. 1.561 do atual Código Civil. Filia-se a esse entendimento Euclides de Oliveira. [34]
Esse segundo entendimento também apresenta alguns problemas. O primeiro é que a união estável não se iguala ao casamento, conclusão retirada do próprio Texto Constitucional. Ora, como o art. 226, § 3º, da Lei Maior prevê que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, tais institutos não são iguais, porque institutos semelhantes não são convertidos um no outro. Por certo, o conceito e os requisitos do casamento são diferentes dos da união estável. O segundo problema reside na necessidade de provar o início dos relacionamentos, a fim de ordenar as uniões paralelas no tempo e apontar qual é a união estável e quais são as uniões putativas.
De qualquer forma, essa parece ser a posição mais justa dentro dos limites do princípio da socialidade, com vistas a proteger aquele que, dotado de boa-fé subjetiva, ignorava um vício a acometer a união. Assim sendo, merecerá aplicação analógica o dispositivo que trata do casamento putativo também para a união estável putativa. No caso descrito, como todas as Marias ignoravam a situação, poderão pleitear a aplicação das regras decorrentes da união estável, como o pagamento de alimentos no caso de dissolução. Sem prejuízo disso, por ter o convivente agido com má-fé, as Marias poderão ainda pleitear dele indenização por danos morais, se os mesmos estiverem configurados, diante do desrespeito à boa-fé objetiva. A responsabilidade objetiva de Tício tem fundamento o abuso de direito cometido, previsto no mesmo art. 187 do novo Código Civil, bem como a quebra dos deveres anexos decorrentes da boa-fé.
De qualquer forma, se uma Maria não ignorar a existência da união plúrima do seu convivente, não terá a mesma direito à aplicação das regras da união estável putativa, já que não ignorava o impedimento. Também não poderá requerer indenização, pois não há que se falar em abuso de direito quando ambas as partes agem de má-fé no negócio jurídico celebrado.
Após a análise dessa segunda corrente, repita-se, para nós a mais justa, abordemos um terceiro entendimento, pelo qual todas as uniões constituem entidade familiar, devendo ser reconhecido os direitos de todas as Marias, independente de qualquer coisa. Essa corrente é encabeçada por Maria Berenice Dias. [35] De qualquer forma, também há problemas nesse entendimento: primeiro, por desprezar a fidelidade como fator essencial ou quase essencial à união estável; depois, por desprezar os próprios requisitos da sua caracterização, pois a união deve ser exclusiva. De qualquer modo, a visão dessa corrente também tem um cunho social relevante pela relação com a boa-fé objetiva.
Para concluir, percebe-se que surgem vários problemas práticos decorrentes da união estável plúrima. Em casos tais, a boa-fé objetiva pode também ser útil para resolver a problemática decorrente dessa entidade familiar bastante freqüente na realidade. De qualquer modo, recomenda-se prudência na análise casual das questões fáticas que a envolvem.
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4.A BOA-FÉ OBJETIVA E OS ALIMENTOS
Os alimentos podem ser conceituados como sendo as prestações devidas a quem não pode provê-las com o seu trabalho próprio. [36] A obrigação de pagá-los decorre de um vínculo de parentesco, de casamento ou de união estável e está fundamentada no dever de solidariedade que deve imperar nas relações familiares.
O Código Civil de 2002 trata dos alimentos entre os arts. 1.694 a 1.710, em que são apresentadas regras materiais quanto a esse importante instituto. Além disso, continuam em vigor os preceitos legais instrumentais constantes na Lei n. 5.478/68 (Lei de Alimentos) e no Código de Processo Civil.
O atual Código Civil, ao ser confrontado com o anterior, apresenta algumas modificações importantes quanto ao instituto assistencial: a possibilidade de mesmo o cônjuge ou companheiro culpado pleitear os alimentos necessários, indispensáveis à sobrevivência (arts. 1.694 e 1.704, parágrafo único); a possibilidade de o primeiro obrigado convocar os demais para integrar a lide em que se pleiteiam os alimentos (art. 1.698); a transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor (art. 1.700); a contribuição dos cônjuges de acordo com as suas condições e rendimentos (art. 1.703); a previsão expressa do filho havido fora do casamento pleitear os alimentos (art. 1.705); a impossibilidade dos alimentos serem objeto de renúncia, cessão, compensação ou penhora (art. 1.707); a previsão de que o novo casamento, a união estável ou o concubinato do credor faz cessar a obrigação de pagá-los (art. 1.708), entre outras novidades.
No presente trabalho, pretendemos comentar a previsão do parágrafo único do último comando legal acima transcrito, o art. 1.708, cuja redação integral merece destaque:
Art. 1.708. Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos.
Parágrafo único. Com relação ao credor cessa, também, o direito a alimentos, se tiver procedimento indigno em relação ao devedor. [37]
A previsão a ser debatida é a destacada no texto citado, que faz cessar a obrigação alimentar. A grande dúvida é saber o que é procedimento indigno. Ora, à luz do que já comentamos na introdução deste trabalho, trata-se de uma cláusula geral, a ser preenchida pelo aplicador do Direito caso a caso, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. O que aqui pretendemos demonstrar é a relação direta entre a referida cláusula geral e a boa-fé objetiva.
De qualquer modo, por certo surgem entendimentos que pretendem interpretar restritivamente a referida previsão. Nesse sentido, foi aprovado, na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, o Enunciado n. 264, em que se prevê: "Na interpretação do que seja procedimento indigno do credor, apto a fazer cessar o direito a alimentos, aplicam-se, por analogia, as hipóteses dos incisos I e II do art. 1.814 do Código Civil". [38] A partir desse entendimento, apenas gerariam a extinção da obrigação alimentar o homicídio doloso, ou sua tentativa, praticado pelo credor contra o devedor, a calúnia ou outro crime contra a honra. [39]
Dispositivo do Código Civil que também trata da indignidade de forma indireta, utilizando a palavra ingratidão, é o art. 557, que prevê a revogação da doação se o donatário: a) atentar contra a vida do doador ou cometer crime de homicídio doloso contra ele; b cometer ofensa física contra o doador; c) injuriar gravemente ou caluniar o doador; d) recusar-se a prestar alimentos ao doador, que deles necessitava. Substituindo as expressões doador por credor e donatário por devedor, defendem alguns autores a possibilidade de também aplicar esse comando legal a fim de complementar a previsão do art. 1.708, parágrafo único, do novo Código Civil, tese com a qual concordamos. [40] De qualquer forma, percebe-se que, basicamente, os casos são os mesmos tratados no art. 1.814, com exceção do último deles. Vale citar que alguns entendem ser o rol constante do art. 557 do Código Civil exemplificativo e não taxativo, ao contrário do que está previsto no art. 1.814 do mesmo Código. [41]
O objetivo dessa interpretação restrita é impedir a aplicação do parágrafo único do art. 1.708 do novo Código Civil em hipóteses nas quais o ex-cônjuge ou ex-companheiro que recebe os alimentos tenha relacionamentos amorosos com outras pessoas após a dissolução da união com a pessoa que lhe paga os alimentos. [42] De qualquer modo, entendemos que em alguns casos deve-se ampliar a concepção de procedimento indigno de forma extensiva, principalmente em hipóteses de notória gravidade. [43] Para tanto, entra em cena a boa-fé objetiva.
Imaginemos um caso concreto, mais uma vez em uma pacata e pequena cidade do interior de Minas Gerais, onde uma ex-mulher paga cerca de R$ 1.000,00 (mil reais) por mês a título de alimentos ao ex-marido, que vive exclusivamente com o montante que lhe é pago pela ex-esposa: não trabalha, bebe todos os dias, é viciado em jogo, boêmio notório, violeiro cantador, e diz a todos que a outra é quem lhe mantém. Tem duas amantes e vive fazendo escândalos nos botecos da cidade. Nesse caso, não seria aplicado o art. 1.708, parágrafo único, do atual Código Civil? Não cessaria o dever alimentar da credora? Acreditamos que sim, desde que seja formulado pedido exoneratório e seja construída a prova desse comportamento indigno.
Nesse sentido, pertinente destacar as palavras de Arnaldo Rizzardo, com quem concordamos de forma integral:
O procedimento desrespeitoso se revela em várias matizes, ou se desdobra através de atos de cunho moral e pessoal negativo à pessoa do ex-cônjuge. Assim, os costumes desregrados; o indisfarçado e aberto relacionamento sexual com várias pessoas; a difamação da pessoa do ex-cônjuge ou de parentes próximos ao mesmo; a prostituição; o enveredar para a criminalidade; a dilapidação do patrimônio granjeado mais pela profissão e qualidades do ex-cônjuge; a agressão física ou moral e outros atos atentatórios à pessoas daquele que foi seu cônjuge arrolam-se como exemplos de situação aptas a desencadear a cessação dos alimentos. [44]
Para a caracterização desse procedimento desrespeitoso, entrará em cena a tese dos deveres anexos, a qual se relaciona com a boa-fé objetiva, particularmente quanto ao dever de respeito, que também deve estar presente após a dissolução da sociedade conjugal ou mesmo do casamento.
Desse modo, acreditamos que o art. 1.708, parágrafo único, está a apresentar uma espécie de responsabilidade pós-negocial casamentária ou pós-contratual - para aqueles que defendem a tese pela qual o casamento e a união estável são contratos -, decorrente da boa-fé que também é exigida em todas as fases do casamento, negócio jurídico por excelência. [45]
É interessante deixar claro que, pelo art. 1.576 do novo Código Civil, a separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca, bem como ao regime de bens. Entretanto, a dissolução da sociedade conjugal ou mesmo do casamento não põe fim aos outros deveres decorrentes do matrimônio previstos no art. 1.566 do mesmo Código: o dever de mútua assistência; [46] o dever de sustento, guarda e educação dos filhos e o dever de respeito e considerações mútuos. O dever de respeito e consideração também é mantido com a dissolução da união estável. Tanto no casamento quanto na união estável esse último dever não pode ser quebrado, sendo inerente à eticidade que regulamenta o Direito Privado, sob pena de caracterização do comportamento indigno e aplicação do art. 1.708, parágrafo único, do atual Código Civil.
Mas que fique claro: é preciso prudência do magistrado para preenchimento da cláusula geral contida no comando legal em comento. Mero exercício de um direito afetivo ou amoroso não gera a quebra da boa-fé. Como sempre, recomendamos a análise caso a caso das relações familiares.
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5.A BOA-FÉ OBJETIVA E O RECONHECIMENTO DE FILHOS
Tema explosivo do atual Direito de Família que gera várias repercussões práticas é reconhecimento de filhos. A matéria está tratada pelo Código Civil de 2002 (arts. 1.596 a 1.617), pela Lei n. 8.560/1992, pela Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e também pela Constituição Federal de 1988, que igualou em direitos todos os filhos, havidos ou não durante o casamento, em direitos patrimoniais e extrapatrimoniais (art. 227, § 6º).
Acreditamos que, no âmbito das relações privadas de cunho familiar, a matéria reconhecimento de filhos é aquela que hoje gera um maior número de questões controvertidas para o aplicador do Direito: a relativização da coisa julgada em ações de investigação de paternidade; as presunções advindas do art. 1.597 do atual Código Civil (pater is est); a certeza absoluta ou não do exame de DNA, que revolucionou a matéria; a paternidade ou parentalidade socioafetiva; as presunções advindas da negativa à realização do exame e os limites de incidência da Súmula n. 301 do Superior Tribunal de Justiça. [47]
Aqui pretendemos apresentar mais uma questão polêmica sobre o tema: a aplicação da boa-fé objetiva para as questões que envolvem o reconhecimento de filhos. No caso em questão, não pretendemos aplicar os arts. 113 e 422 do novo Código Civil, pois não há um negócio jurídico constituído entre as partes envolvidas, mas sim o art. 187 da mesma codificação a casos que se tornam cada vez mais comuns no dia-a-dia.
Mais uma vez, caso prático será muito importante para captar a matéria que estamos discutindo. Imaginemos, mais uma vez, que a história ocorra em uma pacata cidade do interior do Estado de Minas Gerais. Tício é um jovem empresário, solteiro e filho de uma rica família da cidade interiorana. Certo dia, ele tem relação sexual com Maria José, o que aconteceu apenas uma noite. Um mês após o ocorrido, Tício recebe a notícia de Maria José: ela está grávida e o filho é seu. Tício desconfia, pois lembra que tomou todas as precauções naquela noite. De qualquer modo, a dúvida incomoda-o. Mesmo assim, movido pela boa-fé, o jovem acredita no que lhe foi confidenciado, mas mantém a notícia escondida de toda a sociedade e de sua família. Justamente por acreditar na história e por agir de boa-fé, Tício passa a sustentar o nascituro e Maria José. Aluga um apartamento para eles residirem, paga-lhes todas as despesas mensais. Mesmo assim, a situação atormenta o jovem empresário: além da dúvida, ele sente angústia, depressão em decorrência de todo o ocorrido. Mas prefere não contar nada à sua família. Oito meses depois, a criança nasce. Tício vai visitá-la e, quando a conhece, a desconfiança transforma-se em quase certeza: a criança em nada parece com ele. Assim sendo, não registra a criança em seu nome. Tício procura um advogado e o profissional recomenda que seja feito um exame extrajudicial de DNA em laboratório idôneo. A mãe hesita no início, mas acaba submetendo-se à perícia, junto com o filho. O exame constata, com 99.99% de certeza que Tício não é o pai da criança.
O ódio o acomete e ele quer receber todos os alimentos que pagou à criança desde a notícia dada por Maria José até o resultado do exame. Por certo, não poderá pleitear os alimentos pagos, pois os mesmos são irrepetíveis, não cabendo a actio in rem verso. Mas, sem dúvida, Maria agiu de má-fé. Com certeza, ela sabia que Tício não era o pai de seu filho. Aliás, se tinha dúvidas, não deveria ter informado o jovem empresário daquela forma. Nesse caso, o desrespeito à boa-fé é flagrante. Podemos até defender a aplicação máxima tu quoque, apontada pelo Direito Comparado como fórmula relacionada com a boa-fé objetiva. [48] Maria violou um direito relacionado com a confiança e tentou tirar benefícios dessa violação.
Já defendemos, outrora, que a tu quoque está também amparada na vedação de que a pessoa não faça contra o outro o que não faria contra si mesmo, citando as palavras de Cláudio Bueno de Godoy. [49] Em decorrência da boa-fé, a violação desse dever gera o abuso de direto, nos moldes do art. 187 do novo Código Civil. Para concluir, no caso descrito poderá Tício pleitear indenização por danos morais de Maria Augusta.
Em outra situação, se Maria passar a pressionar Tício ou mesmo lhe fazer ameaças, dizendo que o filho é seu, poderá o mesmo ingressar com ação específica com vistas afastar a existência do vínculo de paternidade, conforme vem reconhecendo a jurisprudência. [50] Aliás, a mesma jurisprudência já reconheceu a possibilidade de um marido enganado pleitear danos morais da esposa, segundo nosso entendimento, por flagrante desrespeito à boa-fé objetiva. O mesmo julgado reconhece serem irrepetíveis os alimentos no caso em questão. [51]
Como se pode perceber, a encerrar o tratamento da matéria, a responsabilidade civil apresenta uma nova feição, um novo dimensionamento nas relações de cunho familiar. [52] Muitas vezes, esse novo tratamento surge do desrespeito à boa-fé objetiva.
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6.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi exposto, podemos chegar às seguintes conclusões:
a)os princípios do novo Código Civil são a socialidade, a eticidade e a operabilidade. Tais regramentos merecem aplicação direta em todos os ramos do Direito Privado, o que inclui o Direito de Família;
b)a boa-fé objetiva mantém relação direta com esses três princípios, constituindo a evolução do próprio conceito de boa-fé e estando relacionada com a boa conduta que deve estar presente em todas as fases dos negócios jurídicos em geral. A boa-fé objetiva está ainda relacionada com os deveres anexos, cuja quebra gera a violação positiva do negócio, de modo a imputar responsabilidade objetiva àquele que a desrespeitou;
c)na nova codificação, a boa-fé objetiva tem três funções básicas: função de interpretação (art. 113, CC), função de controle (art. 187, CC) e função de integração e correção (art. 422, CC). Os três comandos legais não só podem como devem ser aplicados aos institutos de Direito de Família. A função de controle gera a responsabilidade objetiva daquele que desrespeita a boa-fé objetiva (Enunciado n. 37 do Conselho da Justiça Federal);
d)como exemplo de aplicação da boa-fé objetiva no casamento, podemos citar a responsabilidade civil decorrente da quebra de promessa de casamento futuro, seja no noivado, seja no namoro. Há, no caso em questão, uma responsabilidade civil pré-negocial casamentária ou pré-contratual decorrente do casamento, o que engloba inclusive danos morais. O fundamento jurídico para o dever de indenizar em casos tais é o art. 187 do novo Código Civil;
e)a boa-fé objetiva também pode ser aplicada à união estável, particularmente para as situações que envolvem as uniões paralelas. Além da possibilidade de reconhecimento da união estável putativa - pela boa-fé subjetiva -, é possível também reconhecer o dever de indenizar, em casos tais - pela quebra da boa-fé objetiva;
f)o art. 1.708, parágrafo único, do atual Código Civil apresenta inovação interessante ao prever a cessação do dever de indenizar daquele que teve comportamento indigno em relação ao credor. Para nós, trata-se de importante cláusula geral, que mantém relação direta com a boa-fé objetiva, auxiliadora do seu preenchimento. Diante desse comando legal, surge uma espécie de responsabilidade civil pós-negocial casamentária ou pós-contratual decorrente do casamento. Entendemos que, por razões óbvias, o dispositivo legal em questão também pode ser aplicado à união estável;
g)a boa-fé objetiva também entra em cena nos casos que envolvem o reconhecimento de filhos, para atribuir eventual dever de indenizar àquele que agiu mal, em abuso de direito, ao imputar paternidade inexistente a outrem. Quem age assim também comete abuso de direito, por desrespeito à boa-fé objetiva, nos moldes do sempre invocado art. 187 do Código Civil em vigor;
h)ao encerrar-se o presente estudo, evidencia-se, mais uma vez, o importantíssimo papel exercido pela boa-fé objetiva no Direito Privado atual, o que também engloba as relações privadas familiares. Constitui um ledo engano pensar-se que essa importante cláusula geral apenas se aplica ao contrato, negócio jurídico patrimonial.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos. Do código de defesa do consumidor ao novo código civil. São Paulo: Método, 2005.
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Notas
Vale conferir para consulta: Miguel Reale. O projeto do novo código civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 7-12
Nas palavras de Judith Martins-Costa, percebe-se, em virtude da linguagem empregada na nova codificação, um sistema aberto ou de "janelas abertas", o que permite a constante previsão e solução de novos problemas, seja pela jurisprudência, seja por uma atividade de complementação legislativa. São suas estas brilhantes palavras, que explicam muito bem a intenção do legislador: "Estas janelas, bem denominadas por Irti de concetti di collegamento, com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais, técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos ainda não expressos legislativamente, de standards, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo. Nas cláusulas gerais a formulação da hipótese legal é procedida mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado intencionalmente vago e aberto, os chamados 'conceitos jurídicos indeterminados'. Por vezes - e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas - o seu enunciado, ao invés de traçar punctualmente a hipótese e as conseqüências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, do que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas" (O novo código civil brasileiro: em busca da "ética da situação". Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 118).
A suposta "confusão", pode ser percebida do seguinte trecho da obra de Miguel Reale, em que o mesmo comenta sobre a eticidade: "O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com os valores éticos, ou se a regre jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto" (O projeto do novo código civil, cit., p. 8). Nesse ponto, parece-nos, o jurista faz mais referência à efetividade das cláusulas gerais, à operabilidade.
Francesco Carnelutti. Teoria geral do direito. São Paulo: Lejus, 1999, p. 432.
Essa subjetivação da boa-fé é explicada pelo autor português António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro: "No Direito romano da recepção - e, daí, no Direito comum -, a boa-fé era, simplesmente, a versão subjectivo-psicológica traduzida, na posse, pelo convencimento, do possuidor, de ser o proprietário - Bártolo - ou, pelo menos, de não lesar direitos alheios. A subjectivação da boa-fé durante o período da recepção do Direito Romano é confirmada através de Acúrsio e de Bártolo tomados como expoentes máximos dos glossadores de dos pós-glossadores, respectivamente. Como método de investigação, foram pesquisadas, nas obras respectivas, as referências à boa-fé e ao dolo. No primeiro caso, apenas podem ser relevadas, praticamente, referências ao possuidor. O segundo tem um interesse muito especial. Recorde-se que o dolo, através da ch. inerência da expeção respectiva, foi, muitas vezes, apontado pelo literatura como traço essencial do regime próprio dos b. f. iudicia. Quer na Glosa ordinaria de Acúrsio, que nos Commentaria, de Bártolo, trata-se a questão sem referir a bona fides. Como pano de fundo, é patente o interesse escasso denotado, em ambos os autores pela boa-fé. O que, a ser a boa-fé um dado psicológico elementar, será explicado" (A boa-fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 2001, p. 187).
António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. A boa-fé no direito civil, cit., p. 212.
António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. A boa-fé no direito civil, cit., p. 224.
Sobre o tema: Judith Martins-Costa. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
Em relação à quebra dos deveres anexos, foi aprovado o seguinte enunciado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em 2002: Enunciado 24 - "Art. 422: em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa". Apesar de o enunciado referir-se ao art. 422 do novo Código Civil, que trata dos contratos, acreditamos que a ementa tem aplicação a qualquer negócio jurídico, como é o caso dos institutos de Direito de Família, dos quais decorrem deveres anexos importantes.
Sobre esse comando legal, já tivemos a oportunidade de comentar: "Seguindo tendência ética-socializante, o artigo 113 do novo Código Civil prevê que 'os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração'. Nesse dispositivo, a boa-fé é consagrada como meio auxiliador do aplicador do direito para a interpretação dos negócios, particularmente dos contratos. Entendemos, na verdade, que o aludido comando legal não poderá ser interpretado isoladamente, mas em complementaridade com o dispositivo anterior, que traz regra pela qual nas 'declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem' (art. 112 do novo Código Civil). Quando esse dispositivo menciona a intenção das partes, traz em seu bojo o conceito de boa-fé subjetiva, por nós já apresentado" (Flávio Tartuce. Função social dos contratos. Do código de defesa do consumidor ao novo código civil. São Paulo: Método, 2005, p. 172).
"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". Conforme o Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, a responsabilidade civil que decorre do abuso de direito é objetiva, isto é, não depende de culpa.
"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Quanto à aplicação da boa-fé em todas as fases negociais, citamos a previsão de dois enunciados do Conselho da Justiça Federal: Enunciado n. 25 - "Art. 422: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual" e Enunciado n. 170 - "Art. 422: A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato". O primeiro enunciado é da I Jornada, enquanto o segundo é da III Jornada de Direito Civil. Apesar de parecidos, os enunciados têm conteúdos diversos: o primeiro é dirigido ao juiz, ao aplicador da norma no caso concreto; o segundo é dirigido às partes do negócio jurídico.
"Casamento é o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem a mútua assistência" (Sílvio Rodrigues. 27.ed. Direito civil. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 19).
Flávio Tartuce. Função social dos contratos, cit., p. 25.
Particularmente, quanto ao contrato, interessante verificar o conteúdo do Enunciado n. 26 do Conselho da Justiça Federal, também aprovado na I Jornada de Direito Civil: "Art. 422: a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes".
Nesse ponto, interessante transcrever o que ensina Maria Berenice Dias quanto à natureza jurídica do casamento: "Muitos consideram o casamento um contrato sui generis, isto é, um contrato diferente, com características especiais, ao qual não se aplicam as disposições legais dos negócios patrimoniais. Daí afirmar-se que o casamento-ato é uma instituição. De qualquer modo, é descabido tentar identificar o casamento com institutos que tenham por finalidade exclusivamente questões de ordem obrigacional. Os pressupostos dos contratos de direito privado não são suficientes para explicar a sua natureza. O casamento é um negócio jurídico bilateral que não está afeito à teoria dos atos jurídicos. É regido pelo direito de família. Assim, talvez a idéia de negócio de direito de família seja a expressão que melhor sirva para diferenciar o casamento dos demais negócios de direito privado. Ainda que o casamento não faça surgir apenas direitos e obrigações de caráter patrimonial ou econômico, não se pode negar que decorre de um acordo de vontade. É uma convenção individual, devido ao seu caráter de consenso espontâneo e aos pressupostos exigidos para que as pessoas o possa contrair. Inquestionavelmente, é o envolvimento afetivo que gera o desejo de constituir uma família: lugar idealizado onde é possível integrar sentimentos, esperanças e valores, permitindo, a cada um, se sentir a caminho da realização de seu projeto pessoal de felicidade" (Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 145). Apesar da renomada doutrinadora mencionar que não se aplica ao casamento as regras gerais previstas para o ato e negócio jurídico, entendemos que o princípio da boa-fé objetiva pode ser perfeitamente aplicado ao instituto casamento, até porque essa nova feição da boa-fé mantém relação direta com os relacionamentos pessoais.
Nesse sentido, Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk: "Outro efeito gerado pelo casamento é o da mútua assistência, que consiste, essencialmente, em ajuda e cuidados nos aspectos morais, espirituais, materiais e econômicos. Tais deveres expressam-se em vários momentos da vida familiar, como no cuidado do outro quando enfermo, no conforto prestado nas adversidades e vicissitudes da vida, compartilhado dores e alegrias. Assim, é um dever de conteúdo ético, variável historicamente conforme os costumes de uma sociedade em dado tempo e determinado local". (Código civil comentado. Álvaro Villaça de Azevedo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2003, v. XV, p. 209). A relação entre esse dever do casamento e a boa-fé aflora quando os autores enfatizam o seu valor ético.
Nesse sentido, Sílvio Rodrigues (Comentários ao código civil. Antônio Junqueira de Azevedo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2003, v. 17, p. 126).
Concordamos com Antonio Carlos Mathias Coltro, Sálvio de Figueiredo Teixeira e Tereza Cristina Monteiro Mafra quando afirmam, quanto o dever de vida em comum do domicílio conjugal, que "esse dever não se viola com as separações transitórias, às vezes até necessárias, tampouco em razão de necessidade funcional ou profissional" (Comentários ao novo código civil. 2.ed. Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. XVII, p. 301). Lembramos que o art. 1.569 do novo Código Civil prevê que o cônjuge, eventualmente, poderá ausentar-se para atender a encargos públicos, ao exercício da sua profissão, ou a interesses particulares relevantes.
"Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos. Parágrafo único. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses."
A essa mesma conclusão chegam Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzuk no seguinte sentido: "Refere-se o art. 1.561 ao denominado casamento putativo. Trata-se de tutela jurídica àquele que manifesta o consentimento em estado de ignorância quanto a vício capaz de dirimi-lo, que se designa por meio da figura jurídica da boa-fé. A noção de boa-fé pode apresentar-se como princípio, e é designada por boa-fé objetiva (Treu und Glauben), ou como estado, tratando-se de boa-fé subjetiva. Trata-se, aqui, como é evidente, da denominada boa-fé subjetiva, que se manifesta como estado de ignorância, e não, propriamente, da boa-fé objetiva, que se coloca como princípio. Sem embargo, não se pode deixar de reconhecer que a boa-fé também se aplica às relações de família, e que pode ser identificada, até mesmo, em certas hipóteses de casamento putativo, embora de modo puramente acidental, sem repercussão no que tange a seus efeitos" (Comentários ao novo código civil, cit., p. 188).
Inácio de Carvalho Neto. Responsabilidade civil no direito de família. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 401.
"Falando em dano moral e ressarcimento pela dor do fim do sonho acabado, o término de um namoro também poderia originar responsabilidade por dano moral. Porém, nem a ruptura do noivado, em si, é fonte de responsabilidade. O noivado recebia o nome de esponsais e era tratado como uma promessa de contratar, ou seja, a promessa do casamento, que poderia ensejar indenização. Quando se dissolve o noivado, com alguma freqüência é buscada a indenização não só referente aos gastos feitos com os preparativos do casamento, que se frustou, mas também aos danos morais. Compete à parte demonstrar as circunstâncias prejudiciais em face das providências porventura tomada em vista da expectativa do casamento. Não se indenizam lucros cessantes, mas tão-somente os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso, a outro título que não o de considerar o casamento como um negócio, uma forma de obter o lucro ou vantagem. Esta é a postura que norteia a jurisprudência" (Maria Berenice Dias. Manual de direito das famílias, cit., p. 118).
"RESPONSABILIDADE CIVIL - ROMPIMENTO DE NOIVADO ÀS VÉSPERAS DO CASAMENTO - FALTA DE MOTIVO JUSTO, GERANDO RESPONSABILIDADE E INDENIZAÇÃO - DANO MORAL - CONFIGURAÇÃO - VALOR DA INDENIZAÇÃO FIXADO MODERADAMENTE - RECONVENÇÃO IMPROCEDENTE FACE À CULPA DO RÉU PELO ROMPIMENTO - RECURSO DA APELANTE PROVIDO E DO APELADO DESPROVIDO. O noivado não tem sentido de obrigatoriedade. Pode ser rompido de modo unilateral até momento da celebração do casamento, mas a ruptura imotivada gera responsabilidade civil, inclusive por dano moral, cujo valor tem efeito compensatório e repressivo, por isto deve ser em quantia capaz de representar justa indenização pelo dano sofrido." (Tribunal de Justiça do Paraná, Acórdão n. 4651, Apelação Cível, relator: des. Antonio Gomes da Silva, comarca: Londrina, 3ª Vara Cível, órgão julgador: Quinta Câmara Cível, data public.: 13/03/2000.) "AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - FALSA IMPUTAÇÃO DE CONDUTA DESONROSA, ENSEJADORA DO TÉRMINO DE DURADOURO RELACIONAMENTO AMOROSO - CULPA CARACTERIZADA - DANO MORAL - CONFIGURAÇÃO - QUANTUM INDENIZATÓRIO - ARBITRAMENTO - PRUDENTE ARBÍTRIO DO JULGADOR. I - Não coaduna com o ordenamento jurídico pátrio a conduta daquele que, sendo pretendente de uma determinada mulher, que, à toda evidência, não correspondia às suas pretensões, põe-se a difamá-la, notadamente para com o seu então namorado de longos anos, com o qual já falava em noivado, vindo a ensejar o rompimento do namoro, com nefastas conseqüências de ordem emocional para ela. II - Deve-se fixar o valor da compensação do dano moral com cautela e prudência, atendendo às peculiaridades próprias ao caso concreto, de modo que o valor arbitrado não seja elevado ao ponto de culminar aumento patrimonial indevido ao lesado, nem demasiadamente inexpressivo, por desservir ao seu fim pedagógico, advindo do ordenamento jurídico atinente à espécie." (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 0378853-0 Apelação Cível, 2002, comarca: Belo Horizonte/Siscon, órgão julg.: 1ª Câmara Cível, relator: juiz Osmando Almeida, data julg.: 25/02/2003, decisão: unânime.)
"CIVIL - RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL - ALEGAÇÃO DE DEFLORAMENTO E DE PROMESSA DE CASAMENTO - CONCUBINATO - ROMPIMENTO - OFENSA À HONRA - NÃO CARACTERIZAÇÃO. O ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito, de sorte que, alegando a autora, mas não provando, que foi desvirginada pelo réu e que este lhe fez promessa de casamento, em razão da qual teria deixado os estudos e o trabalho, não há que se falar em ofensa à honra e, por conseguinte, no dever de indenizar. O rompimento unilateral de concubinato não constitui ato ilícito, ofensivo à honra do concubino abandonado, e, via de conseqüência, não gera, por si só, direito à indenização por dano moral." (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 0369540-9, Apelação Cível, 2002, comarca: Guaxupé, órgão julg.: 3ª Câmara Cível, relator: juiz Maurício Barros, data julg.: 11/12/2002, dados publ.: não publicada, decisão: unânime.) "DANOS MORAIS - NOIVADO - PROMESSA DE CASAMENTO - DESFAZIMENTO. É incabível dano moral contra o parceiro que desiste de contrair casamento. Improcedência do recurso e condenação da recorrente nos ônus de sucumbência, suspensa a exigibilidade em face da concessão a assistência judiciária gratuita" (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Processo n. 71000485318, 2004, comarca: Passo Fundo, órgão julg.: 3ª Turma Recursal Cível, relator: juíza: Maria José Schmitt Santanna).
"NOIVADO - ROMPIMENTO - DANO MORAL E MATERIAL - DESCARACTERIZAÇÃO. - Somente se caracteriza a ocorrência do dano moral indenizável em decorrência de rompimento de noivado, quando este se verifica às vésperas da data do casamento. Não se configura a ocorrência de danos materiais decorrentes de despesas contraídas em virtude da declaração da data do casamento, quando, após o rompimento, os bens adquiridos permaneceram de posse da parte autora. - Recurso não provido." (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 0382351-0, Apelação Cível, 2002, comarca: Belo Horizonte/Siscon, órgão julg.: 2ª Câmara Cível, relator: juiz Alberto Aluizio Pacheco de Andrade, data julg.: 20/05/2003, dados publ.: não publicada, decisão: unânime.)
"INDENIZAÇÃO - ROMPIMENTO DE NAMORO - PROMESSAS DE CASAMENTO - DANO MORAL E MATERIAL - AUSÊNCIA DE PROVAS - RESSARCIMENTO AFASTADO. Para que enseje a ruptura de namoro de longa duração o dever de reparação, devem restar devidamente demonstrados o dano material e o dano moral, além da estabilidade da relação com a promessa de casamento, posto que o rompimento de relacionamento de namoro, por si só, não é capaz de ensejar presunção de tais danos." (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 0410802-5, Apelação Cível, 2003, comarca: Belo Horizonte/Siscon, órgão julg.: 7ª Câmara Cível, relator: juiz D. Viçoso Rodrigues, data julg.: 17/03/2004, dados publ.: não publicado, decisão: unânime).
"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."
Vale transcrever o art. 927, caput, do atual Código Civil, dispositivo que trata do dever de indenizar em decorrência do ato ilícito ou do abuso de direito: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".
O conceito é do saudoso Rubens Limongi França e consta de nosso livro Função social dos contratos, cit., p. 186.
Para Arnaldo Rizzardo, "a fidelidade dá ensejo à presunção da sociedade de fato. Não que se configure como condição indispensável, pois nada impede que duas pessoas constituam um patrimônio comum, sem que mantenham a fidelidade. Daí se apresentar um tanto forte o pensamento de Adhyil Lourenço Dias: 'O elemento essencial dessa união é a fidelidade, a dedicação monogâmica, recíproca vivendo em more uxorio, em atitude ostensiva de dedicação em laços íntimos, que o direito espanhol chama de barrangania, ou seja, la union sexual permanente y de cierta fidelidad entre hombre y mujer no ligados por matrimonio'". (Direito de família. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 891)
A questão é abordada por Rolf Madaleno em A união (ins)estável (relações paralelas). In Direito de família em pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 63.
"Tal fidelidade é exigida porque nossa cultura baseia-se no princípio monogâmico. Se alguém mantiver relação afetiva com duas amantes, vindo a casar-se com uma delas, não poderá excluir a outra da partilha de bens adquiridos, com sua contribuição, em razão de sociedade de fato, e não de união estável, por ser esta inexistente" (Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro. Direito de família. 17.ed. São Paulo: Saraiva, v. 5, 2002, p. 321).
"Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos."
"O mesmo se diga das uniões desleais, isto é, de pessoa que viva em união estável e mantenha uma outra simultânea relação amorosa. Uma prejudica a outra, descaracterizando a estabilidade da segunda união, caso persista a primeira, ou implicando eventual dissolução desta, não só pelas razões expostas, como pela quebra dos deveres de mútuo respeito. Do que ficou exposto, conclui-se que não é possível q simultaneidade de casamento e união estável, ou de mais de uma união estável. Mas cumpre lembrar a possibilidade de união estável putativa, à semelhança do casamento putativo, mesmo em casos de nulidade ou anulação da segunda união, quando haja boa-fé por parte de um ou de ambos os cônjuges, com reconhecimento de direitos (art. 221 do CC/16; art. 1.561 do NCC). A Segunda, terceira ou múltipla união de boa-fé pode ocorrer em hipótese de desconhecimento, pelo companheiro inocente, da existência de casamento ou de anterior ou paralela união estável por parte do outro. Subsistirão, em tais condições, os direitos assegurados por lei ao companheiro de boa-fé, desde que a união por ele mantida se caracterize como duradoura, contínua, pública e com o propósito de constituição de família, enquanto não reconhecida ou declarada a nulidade." (Euclides de Oliveira. União estável. 6.ed. São Paulo: Método, 2003, p. 128)
"Negar existência de uniões paralelas, quer um casamento e uma união estável, quer duas ou mais uniões estáveis, é simplesmente não ver a realidade. A justiça não pode chancelar essas injustiças. Mas, é como vem e inclinando a doutrina. São relações que repercutem no mundo jurídico, pois os companheiros, convivem, às vezes, têm filhos, e há construção patrimonial em comum. Destratar mencionada relação, não lhe outorgando qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filho porventura existentes. Além disso, reconhecer apenas efeitos patrimoniais, como sociedade de fato, consiste em uma mentira jurídica, porquanto os companheiros não se uniram para construir uma sociedade" (Maria Berenice Dias. Manual de direito das famílias, cit., p. 181).
O nosso conceito está amparado em Orlando Gomes, citado por Maria Helena Diniz (Curso de Direito civil brasileiro, cit., p. 458).
Destacamos.
Quanto a esse enunciado, foram as justificativas do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Luiz Felipe Brasil dos Santos, autor da proposta: "Inovação do atual diploma civil, a regra do parágrafo único do artigo 1.708 deve receber interpretação restritiva. Primeiro, porque, em sendo norma limitativa de direito, não pode ser passível de hermenêutica ampliativa, como é cediço. Segundo, porque, se assim não for, o devedor dos alimentos buscará exercer permanente fiscalização sobre o comportamento de seu ex-cônjuge, buscando caracterizar, a cada atitude deste, uma forma de comportamento indigno, de molde a liberar-se da obrigação alimentar. Ademais, o conceito de indignidade já está consagrado em nosso ordenamento jurídico (art. 1.814 c/c 1.815), não havendo necessidade de ampliá-lo a outras hipóteses aleatórias".
É a exata previsão do art. 1.814, incs. I e II: "Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro". Por uma questão lógica, o inc. III do comando legal em comento foi excluído de aplicação pelo Enunciado n. 264 CJF: "III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade".
"O art. 557 do Código Civil, que trata da revogação da doação por ingratidão pode também fornecer diretriz para o intérprete". (Silmara Juny Chinelato. Comentários ao código civil. Antônio Junqueira de Azevedo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2004, v. 18, p. 519.)
"O novo Código Civil estabeleceu um novo sistema para a revogação da doação por ingratidão, pois o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses" (Enunciado n. 33 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil).
Comenta Carlos Roberto Gonçalves que "Francisco Cahali mostra preocupação com a redação do mencionado parágrafo único do art. 1.708 do novo diploma, a merecer enorme dose de cautela para evitar perplexidade. Aguarda-se, neste contexto, complementa o autor: 'seja prudente e razoável o aplicador da norma, para não transformar o conceito vago em perseguição do ex diante do ponderado exercício da liberdade afetiva do credor, valendo-se do permissivo legal apenas para evitar abusos, rechaçando, o quanto possível, eventual parasitismo possível de ser criado pelo recebimento da pensão'". (Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, v. VI, p. 486.) Maria Berenice Dias ensina que o "conceito de indignidade deve ser buscado nas causas que dão ensejo à revogação da doação (557) ou à declaração de indignidade do herdeiro para afastar o direito à herança (1.814). O exercício da liberdade afetiva do credor não pode ser considerado postura indigna, a dar ensejo à exoneração da obrigação alimentar em favor do ex-cônjuge, mormente quando considerado que, com o término da relação, não mais persiste o dever de fidelidade" (Manual de direito das famílias, cit., p. 480.).
Nesse sentido: Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alves. Código civil anotado. São Paulo: Método, 2005, p. 874.
E completa o doutrinador gaúcho: "Como se analisará ao final do presente item, o simples relacionamento sexual com outra pessoa não é causa de extinção da obrigação alimentar" (Arnaldo Rizzardo. Direito de família, cit., p. 777).
No que tange aos contratos, a doutrina fala em culpa post pactum finitum, que corresponde "à projeção simétrica da culpa in contrahendo no período pós-contratual. Segundo Jhering e seus seguidores poderia, antes de concluído um contrato, constituir-se, a cargo das partes, um dever de indemnizar, por culpa contratual. Desta feita, ocorreria o fenómeno inverso: depois de extinto, pelo descumprimento ou por outra forma diversa, um processo contratual, subsistiriam, ainda, alguns deveres para os ex-contraentes". (António Manuel da Rocha Menezes Cordeiro. A boa-fé no direito civil, cit., p. 626.)
O dever de assistência deve ainda ser mantido em casos excepcionais como naquele previsto no art. 1.704, parágrafo único, do CC/02: "Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência". Diante do piso mínimo de direitos que deve ser assegurado à pessoa, à luz dos princípios constitucionais de proteção da dignidade humana (art. 1º, inc. III, da CF/88) e da solidariedade social (art. 3º, inc. I, da CF/88), entendemos que tal comando legal deve ser aplicado mesmo no caso de divórcio.
Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça: "Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade".
"A fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de um regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído." (António Manuel da Rocha Menezes Cordeiro. A boa-fé no direito civil, cit., p. 837.)
Em nosso livro Função social dos contratos (cit., p. 171), chegamos a essa conclusão ao citar o trabalho do magistrado paulista, constante em sua obra Função social do contrato. De acordo com o novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 88 (Coleção Agostino Alvim).
"NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - AÇÃO PROPOSTA PELO SUPOSTO PAI. Carência da ação argüida pelo ministério público e não acolhida por decisão judicial, que considerou parte legitima o promovente do pedido, dado o nítido cunho declaratório deste e o direito daquele em pretender comprovar a existência de erro ou falsidade do registro, o que se enquadra nos termos do art. 348 do código cível. Recurso desprovido." (Tribunal de Justiça do Paraná, Acórdão n. 14035, Agravo de Instrumento, relator: des. Silva Wolff, Comarca: Mal. Cândido Rondó, Vara Cível da Infância, Juventude, Família e anexos, órgão julgador: 3ª Câmara Cível, data publ 10/08/1998, decisão: unânime.)
"RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL - MARIDO ENGANADO - ALIMENTOS. RESTITUIÇÃO. A mulher não está obrigada a restituir ao marido os alimentos por ele pagos em favor da criança que, depois se soube, era filha de outro homem. - A intervenção do Tribunal para rever o valor da indenização pelo dano moral somente ocorre quando evidente o equívoco, o que não acontece no caso dos autos. Recurso não conhecido" [Superior Tribunal de Justiça, Acórdão n. Resp n. 412684/SP (200200032640), Resp n. 463280, data julg.: 20/08/2002, órgão julgador: 4ª Turma, rel.: min. Ruy Rosado de Aguiar, data publ.: 25/11/2002, veja: (PENSÃO ALIMENTÍCIA - IRREPETIBILIDADE E INCOMPENSABILIDADE) STJ, REsp n. 25730-SP (RT 697/202).]
52.Sobre as novas vertentes da responsabilidade civil, podemos citar a tese de livre-docência de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, intitulada Responsabilidade pressuposta. A renomada autora busca, na verdade, uma nova concepção da matéria, nos seguintes termos: "Provavelmente será necessário revisar, reler, reconsiderar sem demora, e em tempo já não tão distante de chegar, aquelas mesmas objeções que foram levantadas, ao longo da segunda metade do século que findou, contra uma efetiva possibilidade de se fundar, sobre a noção de mise en danger, ou sobre um critério melhor, que se possa logo estruturar, um mecanismo de reparação de danos cometidos às vítimas, que não fosse simplesmente um mecanismo assentado sobre a velha noção de culpa, mas que fosse um tal mecanismo no qual a exposição ao risco pudesse representar algo além da mera identificação causal do dano reparável, apresentando-se, quiçá, como um verdadeiro critério de imputação da responsabilidade sem culpa, elevado à categoria de règle à valeur d'ordonnancement juridique". (Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 353). Uma coisa é certa: quando se trata de responsabilidade civil, a noção do que seja dano - efeito ou conseqüência danosa - é extremamente fluida e dinâmica, em constante evolução, "sofisticando-se ao longo da história, na exata proporção em que se amplia também a tutela dos direitos da pessoa", nas palavras de Luiz Felipe Brasil Santos (Pais, filhos e danos. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?op=true&cod=5294>. Acesso em: 10 de junho de 2005). É ele também quem refere Konrad Zwegert e Hein Kötz, citado por Eugênio Facchini Neto (Da responsabilidade civil no novo código. In: Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). O novo código civil e a constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 151), que diz que "o principal objetivo da disciplina da responsabilidade civil consiste em definir, entre os inúmeros eventos danosos que se verificam quotidianamente, quais deles devam ser transferidos do lesado ao autor do dano, em conformidade com as idéias de justiça e eqüidade dominantes na sociedade".
Flávio Tartuce é membro da diretoria do IBDFAM/SP , advogado , mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP)
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