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Procriações artificiais: bioética e biodireito
Palestrante: Eduardo de Oliveira Leite
Debatedora: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Direito à Identidade Genética
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (1)
Cumprimento, em primeiro lugar, o conferencista ilustre deste painel, o Professor Doutor Eduardo de Oliveira Leite, festejado jurista e autor, mas superiormente festejado pelo incrível ser humano que é.
Admira-me, mais, ao reconhecê-lo tão culto, tão estudioso, tão ilustre, o fato de que não perde de vista, nem por um único minuto sequer, o homem, antes de tudo, o par nas batalhas, o próprio titular dos direito e deveres que descreve, o ser humano, enfim.
Nada de endeusar-se ou de encastelar-se por conta das naturais habilidades desenvolvidas ao longo do seu trajeto; nada de olhar os problemas da humanidade com a supremacia dos generais do direito, agindo como se não lhes dissesse respeito. Ao contrário. Sua tônica é sempre a do amor, mola propulsora da vida mesma: ela se apresenta na preferência de seus temas, na escolha de suas linhas de pesquisa e, principalmente, na maneira como coordena seu pensamento final.
Vimos, hoje. Foi um encanto total, caro amigo. Parabéns.
Os chineses antigos diziam: “Viverás tempos desinteressantes...”
E diziam-no sob a forma de maldição!
Senhores.
Tenho para mim que, desinteressantes, estes nossos atuais tempos não são. Talvez alarmantes, talvez preocupantes... Desinteressantes, não!
Prova disso é que estamos reunidos, nós, do Direito, neste evento fantástico, comemorativo da marca secular desta linda Belo Horizonte, para discutirmos os novos rumos do Direito de Família. Nada há de desinteressante na temática proposta. Ao contrário! E devo enfatizar, de público, meus cumprimentos à comissão organizadora do Congresso.
Neste painel, especificamente, nada há de desinteressante ao cuidarmos, do ponto de vista do denominado Biodireito, dos reflexos da procriação artificial, na órbita jurídica dos homens.
O número de congressistas presente, às escâncaras endossa o que afirmo.
A previsão chinesa não deu certo, quer me parecer. Sequer creio que a “maldição”, por detrás contida, emergiu.
O que temos – vimos, ouvimos – são tempos novos, são conquistas novas, são pesquisas avançadas, são caminhos nunca percorridos que se abrem rapidamente, em face do pasmo de uma humanidade atônita.
Tempos preocupantes? Por certo que sim. Desinteressantes, jamais.
E porque assim é, aqui estamos para, juntos, provocarmos o mundo jurídico, no sentido de, como resultado de discussões em toda a parte, haver a produção de um instrumental legislativo destinado à proteção da vida humana, na plenitude de sua extensão.
Muito se tem discutido, no mundo científico e, especificamente, no mundo jurídico, sobre os perigosos sintomas de má saúde de nosso próprio planeta, resultantes da ação dos próprios homens e refletindo na reação da natureza mesma. O clima mostra comportamento incomum; as condições do meio ambiente pioram ameaçadoramente.
Preocupamo-nos com esta dura realidade, extra-humana, porque repercute na nossa própria condição. E aí estão os ambientalistas para ilustrarem o que afirmo. E aqui estamos nós, os da Ciência Jurídica, a construir o Direito Ambiental ou Ecológico e suas normas limitadoras e cogentes. Se o planeta pede socorro, estamos procurando responder.
Por outra parte, enquanto se queimam as florestas, enquanto borbulham os rios poluídos, enquanto se multiplicam os detritos tóxicos e enquanto se rompe a camada de ozônio, em outro lugar, com um “focinho rosado, dócil e desajeitada”, surgia a simpática Dolly, o primeiro mamífero clonado, réplica de sua mãe genética, provando que “cada célula do corpo de um mamífero contém todas as informações genéticas necessárias para produzir um organismo completo”.(2)
Daí à clonagem humana, deveria a ciência genética dar senão mais um único e insignificante passo, não fosse a preocupante, mas providencial movimentação no próprio meio científico de origem, em face dos gigantescos obstáculos éticos que impedem – ao menos por agora – que se rompam as ancestrais barreiras da moral.
A biociência, por meio do conhecido Projeto Genoma, refere à possibilidade de se redesenhar o homem, de tal sorte que, de posse dos “mapas da vida”, a engenharia genética seja utilizada para uma seleção dirigida das espécies, com o intuito fundamental de readaptar o novo homem ao novo meio...
Preocupante.
Nada mais, parece, será deixado ao acaso; as procriações artificiais – bem pode ser – superarão estatisticamente a procriação genuinamente baseada no encontro dos sexos, apilastrada pelo amor que une seres humanos, em corpos e almas.
Bem, a clonagem humana, efetivamente, parece ainda um pouco distanciada da realidade. Mas seria de se perguntar: até quando? De tal sorte, o Direito ou o Biodireito (nosso assunto, enfim) deve estar se preocupando com aquilo que já está disponibilizado, hoje, pela biociência.
Desta forma, já temos assunto importante, difícil e grave para cuidarmos, todo ele relacionado com o direito à vida, cujas principais vertentes são, como sabemos, a engenharia genética, a reprodução humana assistida, a fecundação in vitro, a investigação, a experimentação e a utilização de gametas, de pré-embriões e de embriões e, ainda, a doação e o translante de órgãos humanos, a livre disposição da própria vida e a eutanásia.
No Painel de hoje preocupamo-nos (e destacou, principalmente, o conferencista ilustre) com as chamadas procriações artificiais, assunto por si só já fantástico, mas – e não é possível deixar de novamente referir – exemplarmente cuidado por EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, na obra exatamente denominada “Procriações artificiais e o Direito” (3), na qual o autor perpassa os aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos do tema.
O assunto de hoje, senhores, versa, enfim, sobre o ancestral e eternamente mágico fenômeno do encontro de esperma e óvulo, que admite a procriação humana.
A ciência inova e traz à luz a possibilidade deste encontro se produzir de modo diverso daquele clássico no qual homens e mulheres, atraídos pela química do amor e do afeto, geravam seus filhos. Modos outros, enfim, menos glamourosos e atraentes que o tradicional, a dizer que crianças nascerão após a concepção fora do corpo humano, ou como resultado inseminações artificialmente estabelecidas, sob a forma homóloga, ou heteróloga ou, ainda, por meio das mães de substituição.
O Biodireito desponta em seqüência à Bioética, que por sua vez busca frear, limitar, regulamentar, ainda que no plano moral, a Biomedicina e a Biotecnologia.
E nesta questão de limites e freios, já há muito tempo se repete a espetacular e crua indagação: até onde a ciência pode ir? Neste passo, situa-se a Bioética, que busca ser o elo primeiro entre a ciência e a ética, entre o avanço e o limite, entre o progresso e o bom senso. O equilíbrio deve obrigatoriamente restar presente, sob a cominação de se destruir a própria humanidade, em nome de quem se pesquisa e avança. O respeito à condição e dignidade humana não deve ceder seu especo a conquistas científicas, de modo indiscriminado, sob pena de não se poder mais distinguir entre a indispensabilidade da evolução e a preservação dos valores.
Enfim. O que pode interessar mais ao homem, personagem deste mega-espetáculo da vida? Não tenho dúvida de que o fundamental – o básico, a gênese – reside na preservação dos valores essenciais ligados à pessoa humana.
Duvidar a este respeito seria reavivar, por exemplo, o inferno de Hitler.
Contudo, a Bioética em si mesma encontra seus limites. Vale dizer, ela não alcança ou atinge, diretamente, o plano das normas, já que suas disposições, recomendações e mesmo proibições encontram-se despidas do caráter cogente, encontram-se despojadas de juridicidade e, por isso, privadas da correspondente sanção ao descumprimento.
Este é o ponto de apresentação, no cenário iluminado pela urgência de efetivas soluções, do Biodireito, dotado de regras imperativas, de normas cogentes, todas capazes de sustentar a obrigatoriedade de seus próprios comandos.
O momento contemporâneo tem nos angustiado com enormes perguntas a respeito do novo Direito – o Biodireito – como estas, por exemplo: qual, exatamente, o rol de situações que deverão estar sendo regulamentadas? A legislação deve ter caráter geral ou deve ser fixada de modo minucioso? Onde residiria a pobreza maior, na arte de legislar?
São questões duras. E são questões cruciais. Então, são urgentes.
Contudo – e que ninguém se engane – “esta formalização tem por risco a própria vida”, conforme advertira, já, o conferencista de hoje, EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE.
Já sabemos onde estamos, na história da civilização humana. Pessoalmente não me sinto vivendo um tempo desinteressante, conforme a velha previsão chinesa. Sequer maldito.
Apenas preocupante como, de resto, é a história dos homens.
Ao Congresso, ao conferencista e aos senhores, desejo deixar alguns pontos de reflexão, para os nossos debates. Na verdade deixo-os, preferencial e primordialmente, ao nosso conferencista insuperável, meu caro amigo, o Doutor Eduardo de Oliveira Leite, para sua apreciação, por primeiro, se o desejar.
Assim, entre outros tantos temas polêmicos, escolho encaminhar, ao debate, o constrangedor assunto relativo ao direito à identidade genética.
Em que pese o item 2 do Cap.IV (Doação de gametas ou pré-embriões) da Resolução CFM 1358/92, determinar que “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”, e em que pese o item 3, do mesmo capítulo, determinar que “obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas ou pré-embriões, assim como dos receptores”, dispondo, ainda, que “somente em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente pra médicos, resguardando-se a identidade civil do doador”, não seria conveniente lembrar que o direito à identidade genética, inalienável, incessível, imprescritível como é (4), devesse estar a admitir exatamente o contrário do que dispõe a Resolução?
Conheço a belíssima posição do conferencista deste painel que, com invejável clareza, desfila a fundamental diferença entre verdade biológica e verdade afetiva. Reconheço, como mulher e mãe, que o verdadeiro laço de união entre a paternidade (ou maternidade) e filiação, é mesmo o amor. Reconheço que as preocupações com a eventual possibilidade de ocorrência de relações incestuosas entre pessoas que desconheçam a sua proximidade parental são preocupações apenas remotas, mas sempre preocupações.
Tudo isto reconheço, mas, às vezes, fico a imaginar se todas as pessoas em tal situação – e, obviamente conhecedoras dela – aceitariam esta realidade de sigilo obrigatório a respeito da verdade de sua ascendência.
Penso sempre nisso, senhores congressistas, porque pessoalmente adoro a idéia de saber as minhas origens, as minhas raízes, saber que meu avô veio de Portugal e que minha avó veio da Espanha, e que antes da imigração viveram em tal ou qual lugar e que suas vidas eram desta ou daquela forma. Agrada-me sobremaneira este elo com o passado. Importa a mim – e deve importar a tantos – saber de onde vim, quem veio antes e o porquê de tantos mistérios da vida...
E fico a pensar que, talvez, tantas outras pessoas sejam assim.
Conheço filhos adotivos que passaram por esta angústia e buscaram seus ascendentes biológicos. E nem por isso amaram menos seus ascendentes civis. Ou os desrespeitaram...
Proponho que afastemos desde logo, da superfície de nosso raciocínio, aquela idéia que insiste em estar sempre presente, relativa às conseqüências patrimoniais advindas de tal revelação. Partamos do pressuposto que o filho que busca suas raízes biológicas só esteja a exatamente buscá-las. Então, seria possível pensar que a lei futura poderia autorizar o exercício deste direito, quero dizer, por partes, dependendo do interesse visualizado pelo seu titular. Por que não?
Na verdade, a questão versa sobre o direito à identidade genética, de natureza extrapatrimonial, cujo exercício apenas faria emergir esta revelação. Nada mais.
Seria mesmo nefasto – jurídica, psicológica ou afetivamente – que uma pessoa desejasse conhecer, por exemplo, a verdade a respeito daquela situação que se costuma chamar de “tríplice maternidade”, isto é, sua mãe doadora (a biológica), sua mãe portadora (a que acolheu, no ventre, o embrião implantado), além de sua mãe de recepção (a sócio-afetiva)?
Já não nos bastam os abandonados, os rejeitados, as crianças sem pais, os filhos da rua, os que carregam e carregarão sempre o estigma do desconhecimento a respeito de sua origem?
Será que poderemos mesmo – do alto de nossa verdade, vivência, experimentação e competência – ter a certeza de que estejamos a traçar ou projetar um corpo normativo eficazmente protetivo e assegurador de direitos, se a norma estabelecida começa por tolher um dos mais expressivos, um dos fundamentais, um dos imprescritíveis, um dos personalíssimos direitos, denominado direito à identidade genética? Onde repousaria a certeza do acerto?
Repousaria, por acaso, na fantasiosa idéia de que o magnânimo doador só deseja mesmo contribuir para a felicidade daqueles que não puderam gerar seus próprios filhos, mas que não deseja repartir seu patrimônio, ou seu nome, ou seu arcabouço genético, com aqueles filhos do vidro?
Ah! Quantas dúvidas! Que interessante debate, senhores congressistas. Alinhavei-lhes estas, por hora.
E ao encerrar, reitero a ausência de preocupação, nas minhas considerações, com o efeito patrimonial decorrente desta tão decantada revelação da identidade genética de alguém; mas reitero, também, que está, sim, presente nas minhas angústias e preocupações a respeito do tema, este personalíssimo direito de alguém querer conhecer sua raiz biológica e poder fazer a correspondente pesquisa.
Recordo-me, permitam-me ainda dizê-lo, que no passado tanto se discutiu a respeito do direito de nascer... E, hoje, sorrio sozinha ao me perguntar se este, a quem garantimos o direito de nascer, não corre o risco de nascer desprovido da posição jurídica de ser o titular do atávico direito que cada um deve ter a respeito de saber como, de onde e por que nasceu?
Esta é a preocupação fundamental que expresso, neste Congresso, aguardando, ansiosa, pelos debates enriquecedores que virão. Obrigada.
1. Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Doutora do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.
2. BUSTAMANTE, Patrícia Goulart. “Uma ovelha e seu duplo: o primeiro mamífero clonado”, in Ciência e Futuro (Livro do Ano de 1997), os. 247-250.
3. LEITE, Eduardo de Oliveira. “Procriações Artificiais e o Direito – aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos”, Ed. Revista dos Tribunais, 1995.
4. A respeito, v. ALMEIDA, Silmara J. ª Chinelato e. “Bioética e Direitos de Personalidade”, inédito.
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