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Direitos às Famílias
A família foi, é e continuará sendo o núcleo básico e essencial de qualquer sociedade. Não podemos mais revisitar tempos nostálgicos em que ela era tão somente aquela constituída entre um homem, uma mulher e filhos unidos pelo sagrado laço do matrimônio e por uma certidão de casamento.
As Ciências Humanas já demonstram que o modelo tradicional de família, por si, não é garantidor de indivíduos bem estruturados. Como já disse Jacques Lacan, na década de 1930, a Família é uma estruturação psíquica onde cada membro ocupa e desenvolve funções de pai, mãe, filho, etc.
É muito comum assistirmos nas famílias ditas tradicionais um desarranjo familiar. Apesar de terem pais que convivem em matrimônio, muitos desses filhos, também das classes médias, tornaram-se droga-adictos, criminosos e delinqüentes. O que garante que alguém seja feliz, e bem estruturado psiquicamente, é a boa formação psíquica oriunda do cuidado, do amor, da educação e da proteção fornecida por alguém que tenha exercido as funções paternas e maternas em sua vida.
A função de pai independe do matrimônio. Ela pode ser exercida por uma mulher, e as de mãe por um homem. Viúvas ou viúvos criam seus filhos sem o pai ou mãe. Mulheres ou homens solteiros têm a ajuda de outros parentes para a criação de seus filhos.
Foi com base na evolução do conceito de família desenvolvido nos dois últimos séculos, e especialmente a partir da segunda metade do século XX, que o Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM viu-se obrigado a responder a uma demanda social pungente. Apresentamos, através do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, ao Congresso Nacional o PL nº 2.285/2007, ao qual denominamos Estatuto das Famílias. Sabemos, de antemão, que não é um projeto perfeito, mas o nosso compromisso com o ideal de justiça nos obrigou a elaborar um texto jurídico que atendeu aos apelos de inclusão e cidadania. Aprendemos com a própria história do Direito de Família que não podemos mais perpetuar injustiças cristalizadas no próprio texto jurídico. Ainda é difícil conceber que antes da Constituição Federal de 1988, filhos havidos fora do casamento não podiam ser registrados, mulheres deviam obediência aos maridos e as famílias que não fossem constituídas através do casamento não eram reconhecidas pelo Estado e excluídas do laço social.
Embora o Estado tenha se separado da Igreja em 1891, até hoje ela continua querendo intervir no modo como ele regula a vida privada dos cidadãos. Causa-nos espanto e indignação o artigo, publicado nesta seção em 08/09/2008, assinado pelo competente numerário da Opus Dei, professor Carlos Alberto Di Franco. A indignação advém, primeiro de sua ignorância jurídica ao dizer que o referido Projeto de Lei é inconstitucional. Equívoco este que não merece qualquer comentário. Depois, por não mostrar exatamente onde estão os descabimentos e incongruências de nosso projeto. Ele apenas divaga em suas concepções moralistas e reacionárias, e nos acusa de estarmos implodindo a família.
Em um Estado Democrático de Direito devemos respeitar as diversidades das opiniões porque democracia se constrói por meio do encontro e do confronto de idéias e de forças diversificadas. Surge desse processo dialético e transformador a necessidade de se incluir no laço social, também as diversas formas de família. A diversidade, em todos os sentidos, é imprescindível para a democracia. O competente articulista tem todo o direito de desejar que a família tradicional esteja incluída como uma das formas legítimas de constituição familiar. O que nos preocupa é o discurso excludente de todas as outras conformações familiares, que são realidade, quer queiramos, gostemos ou não. Excluir aquilo que não se gosta ou não se identifica não pode ter mais lugar em nosso país.
O que nos causa maior perplexidade é a arrogância de alguém com a autoridade e propriedade de um articulista, tentar impor sua convicção que é de foro íntimo e religioso. Com a revelação do "sujeito do inconsciente" por Freud há mais de um século, associado à evolução do conhecimento científico e tecnológico e à globalização de mercados, não podemos ficar apegados a uma nostalgia de um tempo que não existe mais. Concordamos com o professor Di Franco em alguns aspectos, principalmente nos que ele concerne que a família deve centrar-se no amor e ser o lócus da prática das virtudes. Contudo, por mais bem intencionado que ele seja, suas premissas são equivocadas, ultrapassadas e se apóiam no mesmo discurso excludente e moralista do século passado e que tanta injustiça já produziu ao excluir determinadas categorias do laço social. Este moralismo já é conhecido de todos e não pode nos enganar mais.
As palavras da historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, em seu livro "A família em desordem" nos alerta, mas também nos conforta. Enganados estão os que pensam que corremos o risco de sermos engolidos por indivíduos concebidos por pais desvairados e mães errantes. Essas desordens não são novas e não impedem que a família continue sendo reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.
Rodrigo da Cunha Pereira é Presidente do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, Mestre (UFMG) e Doutor (UFPR) em Direito Civil, Advogado e autor de vários livros em Direito e Psicanálise.
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