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COMENTÁRIO: Direito e arte. E por falar em família...
Falar de família por vezes é simples: um pouco do vivido de cada um, mesclado com a experiência das demandas nos Tribunais articulados a uma teoria que dá suporte e eis que surge o texto!
Porém, quando o texto envolve arte, espetáculo, mostração e onde não se dispõe de um só palavra pra dizer tudo o que é transmitido no espaço familiar, como torná-lo apreensível?
"Cruel" é a resposta belíssima da Cia Deborah Colker: espetáculo de dança que está sendo encenado numa turnê pelo Brasil e que, com o precioso olhar do diretor de teatro Gilberto Gawronski - o mesmo que fez Torquato Neto na peça do diretor e psicanalista Antonio Quinet: ArTorquato - apresenta histórias de laços e desenlaces familiares.
Desde a criação do IBDFAM e pela intervenção de seus associados nos Tribunais, na mídia e no corpo social, as situações entre os membros familiares, secretas e por vezes dramáticas, começaram a ser desveladas e ganharam a possibilidade de compreensão e intervenção. No entanto, ainda é chocante o silêncio das crianças e das mulheres na violência intrafamiliar; no abuso, pedofilia, no enfrentamento da adolescência e, a ambivalência própria do humano, que Lacan denominou de amódio, pois sabemos que um não vai sem o outro.
Esse foi o tecido que Colker costurou a coreografia que encanta e por vezes atemoriza o espectador, totalmente fascinado pelo trabalho corporal impecável e milimétrico para representar eros e tânatus, duas forças que Freud descobriu que coexistem no ser humano e que encontram na família o molde de seus investimentos futuros.
Colker diz que "as histórias estão ali para serem apreendidas por cada um de um modo particular sem qualquer compromisso com a explicitação do sentido, mas sim com a exigência de sua produção" (entrevista na Folha de SP). Como toda arte, tem o dom de "inexprimir o exprimível", como diria Barthes.
Lacan, no Seminário sobre a Ética da Psicanálise, diz que: "A arte é um certo modo de organização em torno do vazio". A arte pincela, esculpe, toca e baila com notas musicais a figuração do silêncio, do que está mais escondido.
Cruel se desenvolve em dois atos:
1º ato: O começo nos faz lembrar de "Lecuona" do Grupo Corpo, por resgatar os grandes bailes de salão, porém sem a melosidade dramática e a sensualidade de Pederneiras, porque Deborah aposta mais no enigma que o espectador deve responder com sua emoção. Tanto que coloca pas-de-deux de homens, identificando que os casais se formam independente do gênero - masculino ou feminino.
O figurino primoroso que remete aos bailes, mas é devidamente atualizado, permite os movimentos e ao mesmo tempo se conjuga perfeitamente com a valsa de Vivaldi, a canção de Nelson Gonçalves e o blues quase inaudível de Julie London.
Depois, numa grande mesa branca, o jogo da cena familiar transparece, como nas ceias natalinas ou grandes ocasiões onde o amor, os afetos, os ódios, as mentiras, as intrigas e por fim, a violência e a morte se presentificam na habilidade em lidar com facas e fazer valer o dito de Picasso:" A arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade".
2º ato: os corpos se despedaçam através de paredes de espelhos num reflexo de movimento das peças agora negras e pelo efeito plástico da luz, colocando novamente a ambivalência do sublime e do cruel. Quem tem prazer, quem sofre com a dor? O que acontece quando o sujeito carrega o peso do "tu-deves" (Nietzsche) familiar e, ao mesmo tempo, a pulsão de morte que carrega em si? Corpos sensuais, quebrados, amputados, equilibrando-se no ar pela força dos bailarinos, agonia de corpos que levam o espetáculo ao ápice pela incrível leveza e destreza dos 17 bailarinos excepcionais equivocam mais do que respondem a essa mensagem cifrada do gozo.
Toda invenção artística só pode advir de uma falta: falta em ser do sujeito da linguagem. A dança, em sua linguagem corporal, animada pelos acordes e de maneira sublime, para que não se fechem os olhos e os ouvidos diante da crueza dos laços familiares, que precisam ser amansados todos os dias e que seja às custas de um belo espetáculo!
Alba Abreu Lima é sócia do IBDFAM, psicanalista do Campo Lacaniano e psicóloga do TJ /SE
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