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IBDFAM ACADÊMICO - Prisão Civil por Dívida Alimentícia
INTRODUÇÃO
A prisão civil por dívidas, segundo ÁLVARO VILLAÇA citado por GAGLIANO (2004, p. 330), "é o ato de constrangimento pessoal, autorizado por lei, mediante segregação celular do devedor, para forçar o cumprimento de um determinado dever ou de uma determinada obrigação".
O preparo intelectual da prisão civil por dívida alimentícia encontra guarida na Constituição Federal de 1988 - CF/88 -, cujo enunciado pertinente é retrato da política internacional protetora dos direitos humanos. Neste passo, convém citar, dentre outros, o bastante conhecido artigo 7º, item 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica -, de 22 de novembro de 1969: "Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandatos de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar" [grifo nosso].
A Constituição Federal de 1988, porém, fez tornar elementar a essa infração legal o ato "voluntário e inescusável", é dizer, para que ocorra o enquadramento na presente tipificação, é necessário que o agente devedor de alimentos não arque com sua responsabilidade de pagar por mera liberalidade unilateral e sem qualquer justo motivo que ratifique o inadimplemento. A Magna Carta, no seu artigo 5º, inciso LXVII, exalta a seguinte dicção:
"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel [grifos nosso]."
É certo que o desemprego dará margem ao não-pagamento da prestação incumbida, entretanto lhe faltará o animus debendi, havendo, por isso, escusa ao pagamento. Diferente é o devedor que se faz encaixar na premeditada situação (voluntariedade) com único intuito de não arcar com os débitos ao ele consignados (sem motivo justo). Daí se extrai a eficiência da norma, aonde punirá aqueles que só cumprem suas obrigações quando ameaçados pela ordem de prisão.
Distinção entre ilícito civil e ilícito penal
Diante das colocações se faz necessário ponderar que a prisão civil em nada toca a razão da privação da liberdade em decorrência de crime, porque não consubstancia uma resposta estatal à prática de infração penal, mas a um meio processual reforçado para execução indireta[1] da dívida de alimentos (MENDES, 2008, p. 677). Por isso, é importante acentuar a diferença[2] entre o ilícito civil e o ilícito penal. Concluindo com clareza ímpar, o escol JESUS (1992, p. 142) versa:
"Em suma, seguindo a lição de Hungria, podemos dizer que ilícito penal é a violação do ordenamento jurídico, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, e o ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções atenuadas da indenização, da execução forcada, da restituição in specie, da breve prisão coercitiva, da anulação do ato etc."
Mas o tema deve ser visto com cautela, já que o legislador penal também tipificou a conduta, configurando-a como "abando material" nos termos do artigo 244 do Código Penal - CP. São as letras da lei:
"Art. 244 [do Código Penal]. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada" [grifos nossos].
O exame do tipo elaborado por CUNHA (2008) salienta que o artigo 244, do CP é um tipo objetivo, cujo bem jurídico tutelado é a assistência familiar[3]. Na perspectiva do direito a alimentos, importante frisar é forma de praticar o crime: o não-pagamento da pensão fixada por sentença judicial alimentícia. FRAGOSO citado por CUNHA (2008, p. 264) "entende que a inobservância da ordem estabelecida pela Lei Civil na atribuição da obrigação de prestar alimentos é irrelevante para o aperfeiçoamento do crime", e é justa sua colocação, afinal, o Direito Penal é a ultima ratio, devendo ser suscitada apenas quando a gravidade da lesão do bem jurídico fazer necessária intervenção mais severa, pois é sabido que os efeitos da sentença penal condenatória são inúmeros.
Destarte, a simples escusa voluntária para o pagamento deve ser analisada diante do caso concreto, porque ora incidira as regras de direito privado (indivíduo - individuo) pela prisão civil, ora pelo direito público (como é o direito penal, regulando a relação sociedade - indivíduo). No primeiro caso, certamente é a realização do comando informativo da Magna Carta, que através deu artigo 5º, inciso LXVII permite ao particular incitar ao juiz coagir o devedor de alimentos e, por conseguinte, a agir conforme os ditames da sentença judicial de alimentos - nesta ótica, o pagamento o liberará do cárcere[4]. O Direito Penal, via de regra, será cogitado quando o Estado perceber que a afronta a legalidade está ferindo os anseios da sociedade, é dizer, além das vítimas propriamente ditas ou diretas, o sujeito ativo do crime feriu a assistência familiar de modo que seja necessária a repressão estatal para educá-lo a não reincidir na prática delituosa, ainda que de maneira menos gravosa. Ainda neste último, há que se ressaltar que o pagamento da pensão em atraso não sustará a ordem de prisão, porque, como salientado, não é mais execução indireta da prestação de alimentos, mas pena por seu comportamento face ao sistema penal vigente[5].
Momento da medida executória privativa da liberdade
Cabe registrar por relevante que o uso da prisão civil deve ser sempre evitado por constituir medida in extremis. Neste diapasão, considera MARINONI (2008, p. 390):
"Entre todas as técnicas destinadas à execução da obrigação alimentar, a prisão civil é a mais drástica e a mais agressiva ao devedor, de modo que a sua adoção some é possível quando não existem outros meios idôneos à tutela do direito. Isto pelo simples motivo de que os meios de execução se subordinam às regras do meio idôneo e da menor restrição possível."
Quanto ao cabimento, o Supremo Tribunal Federal - STF - tem considerado possível a prisão em comento quando o "acúmulo de parcelas não se deu por inércia do credor [grifo nosso]"[6], vez que é largamente asseverado na doutrina a perda do caráter alimentício das prestações há muito tempo em atraso. Assim, revigora os motivos da pensão alimentícia, que são a sobrevivência de quem pede alimentos e sua vida com dignidade. Se não buscou a satisfação do crédito ao passo que se tornara exigível, conclui-se que sua futura execução, tempestiva, conferirá ao exeqüente mera reposição daquilo que gastou durante o tempo que estava sem o apoio obrigacional realizado espontaneamente pelo alimentante.
Sob este prisma, o Superior Tribunal de Justiça - STJ - também se posicionou, firmando como pressuposto objetivo que a prisão civil por dívida estará sujeita a limites quantitativos. É o que estabelece o Enunciado nº 309 da súmula da jurisprudência predominante do STJ: "O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo".
Crítica ao Enunciado nº 309 da Súmula da Jurisprudência predominante do STJ
A posição da colenda Corte deve ser preservada face a sua representatividade diante do caso concreto, que contribui para evitar o hipertrofiamento do sistema carcerário brasileiro, dado o elevadíssimo número de demandas cujo objeto seja a busca do pagamento as prestações vencidas. Mas a análise ao caso a caso deveria permitir alargar a proposta da prisão civil a mais parcelas vencidas do que a apenas três anteriores ao ajuizamento da ação, porque o Direito é dinâmico e a norma nunca preverá a totalidade das hipóteses. MARINONI (2008, p. 391), por seu turno, lembra que são diversas as causas que levam o credor de alimentos agir com mora perante a ação de execução de alimentos, dentre elas, o "temor em demandar pela o Poder Judiciário e a dificuldade em encontrar e contratar advogado" e avilta, com segurança ínsita à suas lições, que "a demora, neste caso, obviamente não pode fazer gerar a presunção (absoluta) de desinteresse em obter os alimentos".
Ademais, a limitação do enunciado anteciparia a prescrição da pretensão condenatória da dívida alimentar, que é de 02 anos nos termos do artigo 206, § 2º, do Código Civil de 2002 - CC/2002 -, sem que outra norma supralegal ou ordinária, retire a eficácia contida no procedimento da prisão civil por dívida alimentícia presente na Norma Processualista Civil, no seu artigo 733 e na Lei de Alimentos, no artigo 19. No teor destas colocações, deve-se lembrar que os meios executórios não são sucessivos, mas finalísticos, sendo lançada à mão a via mais célere para o caso à baila.
Também é esta a conclusão de GAGLIANO (2004, p. 333) após análise minuciosa da matéria:
"O juiz, atuando com a devida cautela, pode, no caso concreto, decretar a prisão civil em face de mais de três prestações em atraso, respeitado, é claro, o limite máximo da prescrição da pretensão condenatória da dívida alimentar, uma vez que o recurso à execução por quantia certa (cite-se, para pagar em 24 horas, sob pena de penhora...), é, na prática, moroso e sujeito a manobras processuais, não se justificando o limite das três parcelas em atraso, o qual é prejudicial ao imediato interesse alimentar do alimentando, hipossuficiente na relação jurídica."
E tão descolocado é o caso dentro do próprio STJ, que o enunciado citado acima já consta de sua segunda redação[7], onde a primeira veiculava a permissão para a referida prisão civil apenas quanto às três parcelas anteriores a citação do devedor. Nisto se escorava os devedores imorais, que se esquivavam do ato citatória como notória vontade de fraudar a lei. A eminente Ministra Nancy Andrighi (HC nº 53.068-MS), em voto relatorial, registrou o inconformismo com a antiga redação:
"Quero crer, que se laborou em equívoco quando da redação do referido Enunciado, mesmo porque, admitir-se que o devedor possa afastar o decreto prisional, na ação de execução de alimentos, com o pagamento das três últimas parcelas anteriores a sua citação, é premiar e incentiva a má-fé daquele que se esquiva de cumprir a obrigação de prestar alimentos.
Assim [e por isso], submeto a proposta de revisão do Enuciado a esta Segunda Seção, que passará a ter a seguinte redação: [conforme a citação atualizada alhures]."
Mas as críticas doutrinárias qual tenham esta mesma perspectiva ainda não tocaram os Tribunais, os quais mantêm cediço o posicionamento jurisprudencial em não estender a via executória a alimentos pretéritos. Porém, há posições do STJ (embora antigas) adotando a conclusão de que esta regra não é absoluta, admitindo sua relativização. MARINONI (2008, p. 392), em estudo específico, ilustra a possibilidade com os seguintes exemplos: "STJ, 4ª T., RHC 10028, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 18.09.2000; STJ, 4ª T., HC 11163, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 12.06.2000; STJ, 3ª T., HC 11176, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 15.05.2000."
"Dosimetria" da restrição da liberdade
Arrematando o tema em testilha, convém verificar qual o prazo da prisão que é conferido pela lei. A questão é polêmica por causa da dupla previsão. De acordo com o artigo 733, §1º, do CPC, o prazo deve ser fixado entre um e três meses. Segundo o artigo 19 da Lei de Alimentos, em prazo não superior a sessenta dias.
É certo que as particularidades do caso concreto favorecer para o juiz fixar o quantum da prisão, esclarecendo que o prazo será indubitavelmente aquele disposto no Código de Processo Civil, porque é lei posterior a Lei de Alimentos, regulando especificamente a mesma matéria. Isto posto, o prazo máximo será noventa dias, ao sentir de MARINONI (2008)[8]. Malgrado seus argumentos sistemáticos salientarem ainda que o legislador perdeu a oportunidade de pacificar o entendimento ao passo da edição da Lei 6.014, de 27 de setembro de 1973, sua doutrina não ganha espaço no cenário acadêmico e jurídico, sendo, por fim, minoritária neste ponto.
O fato é que a dúvida se enaltece com alusão ao artigo 18 da Lei de Alimentos, alterado por essa citada lei, que aduz a faculdade da execução subsidiária para satisfação do débito na forma do artigo 733, do CPC, dentre outros, mantendo a mesma lei reformuladora intacto o artigo 19, da Lei de Alimentos, que preceitua o prazo de 60 dias.
Mas o artigo 620, do CPC, dispositivo bem lembrado por PORTO (2003, p. 98), conduz à inevitável (porque legal) busca pelo modo menos gravoso para o devedor, quando por vários meios o credor puder promover a execução. A duplicidade da fixação dos prazos também não coaduna com artigo 2º, §2º, da Lei de Introdução ao Código Civil - LICC -, consonante interpretação de ASSIS (2004, p. 191), que não admite que lei processual geral derrogue lei processual especial. Pensa da mesma forma PEREIRA (2007, p. 114). São as dicções legais respectivamente citadas:
"Artigo 620, do CPC - Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.
Artigo 2º, da LICC - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
[...]
§2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior."
CONCLUSÃO
Em suma, a prisão civil por dívida de alimentos, decorrente do ato ilícito civil configurado pela escusa não justificada e inadimplemento voluntário da obrigação de alimentos, será processado na forma do artigo 733, do CPC, cujo prazo máximo não ultrapassará a 60 dias. Vale dizer ainda que o pagamento ou o acordo entre as partes contribuirá para a revogação do decreto prisional exarado em virtude das três parcelas vencidas antes da propositura da execução de alimentos.
NOTAS
1 - É indireta porque ainda que diante do cumprimento integral do prazo da prisão imposta, isto por si só não adimplirás os débitos vencidos, podendo, inclusive, ser renovado o mandado de prisão. (artigo 19, § 1ª, da Lei nº 5.478/68). É pois, medida in extremis com fito no adimplemento (ASSIS, 2005, p. 190).
2 - Neste exato sentido, a Ministra Ellen Gracie acentuou ao proferir voto no HC nº 83000, de sua relatoria.
3 - Acrescenta MIRABETE (1999, p. 1.411) que "somente pode ser reconhecida [a existência do crime] quando provada, de fato, a impossibilidade da vítima sustentar-se por causas anormais ou de ordem física".
4 - O acordo entre as parte quanto a prorrogação prazo de pagamento das prestações em atraso, também comina com a revogação do decreto prisional, conforme HC nº 83.939-8, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, perante o STF.
5 - JESUS (1992, p. 5).
6 - HC 87.134, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 08/08/2006, DJ de 29/09/2006
7 - Alteração realizada com fundamento no artigo 125, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do STJ.
8 - Apesar de ser posição minoritária, Luiz Guilherme Marinoni tem o apoio do ilustrado MOREIRA (2007, p. 272): "[...] a requerimento do credor, decretará a prisão do devedor, por tempo não inferior a um nem superior a três meses (art. 733, § 1º, derrogado aqui o art. 19, caput, fine, da Lei n. 5.478)"
REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken de. Da execução de alimentos e prisão do devedor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 243 p.
CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: Parte especial. 3. vol. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 479 p.
BRASIL. Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça . Disponível em: . Brasília, 2008.
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Obrigações. 4.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 2. vol. 390 p.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte geral. 16. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1992. 1. vol. 657 p.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. 1.432 p.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: execução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 3. Vol. 478 p.
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Ação de Alimentos. 4.ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. 127 p.
PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e Prática dos Alimentos. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 350 p.
Rhuan Carlos Duarte Martins é sócio universitário do IBDFAM e aluno do 10º período de Direito - UNESC, Colatina - ES
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