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Sistema Multiportas: O Judiciário e o Consenso
As recentes análises sobre a explosão de litigiosidade, no âmbito do sistema de justiça, têm destacado a cultura excessivamente adversarial do povo brasileiro. Embora esse fenômeno revele uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em relação aos seus direitos, o culto ao litígio, porém, parece refletir a ausência de espaços - estatais ou não - voltados à comunicação de pessoas em conflito.
Com raras exceções, não há, no Brasil, serviços públicos que ofereçam oportunidades e técnicas apropriadas para o diálogo entre partes em litígio. Diante de tal carência, as pessoas utilizam os meios de resolução de conflito disponíveis: a aplicação da "lei do mais forte", seja do ponto de vista físico, armado, econômico, social ou político - o que gera violência e opressão - a resignação - o que provoca descrédito e desilusão - ou o acionamento do Poder Judiciário, cuja universalidade do acesso ainda é uma utopia.
Aqueles que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades impostas por um sistema talhado na lógica adversarial. Os profissionais do Direito nem sempre dispõem de habilidades específicas para a condução de processos de construção do consenso. Ao contrário, o que se verifica, em geral, é a aplicação de técnicas excessivamente persuasivas, comprometendo a qualidade dos acordos obtidos.
Nesse contexto, ainda que o sistema de justiça se esforce em modernizar os seus recursos - humanos, materiais, normativos e tecnológicos - a dinâmica da explosão de litigiosidade, ocorrida nas últimas décadas no Brasil, continuará apresentando uma curva ascendente em muito superior à relativa aos avanços obtidos.
Para o sistema operar com eficiência, é preciso que as instâncias judiciárias, em complementaridade à prestação jurisdicional, implementem um sistema de múltiplas portas, apto a oferecer outros meios de resolução de conflitos voltados à construção do consenso, dentre eles, a mediação. Por esta técnica, as partes constroem, em comunhão, uma solução que atenda as suas reais necessidades.
O mediador não julga, não sugere, nem aconselha. O seu papel é o de facilitar que a comunicação seja (re) estabelecida, sob uma lógica cooperativa e não adversarial. Além de efetiva na resolução de litígios, a mediação confere sentido positivo ao conflito porque patrocina o diálogo respeitoso entre as diferenças; o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que repousam os conflitos; a prevenção de futuros litígios, a coesão social e, com ela, a diminuição da violência.
A mediação, ao lado de outras técnicas de edificação do consenso - a conciliação e a negociação - pode ser manejada por agentes efetivamente capacitados para tal função e adotada tanto nas demandas pré-processuais quanto nas já judicializadas.
O atual arcabouço legal permite, pois, que as instâncias judiciárias sensíveis a novos paradigmas viabilizem um sistema de múltiplas portas que possa gerar um choque de eficiência na gestão judiciária. Indispensável, pois, a destinação de recursos para intensificar as possibilidades de acesso e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional. Somente após a consolidação de múltiplas experiências, em nível nacional, é que haverá elementos para eventual proposta legislativa que regulamente a matéria.
Vencidos os desafios institucionais para a implantação do sistema, caberá à sociedade que legitimamente anseia por justiça e paz, intensa participação para que o exercício do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade mais pacífica, coesa e solidária.
Para a abertura dessas múltiplas portas, não se pode conceber a paz social sem a paz jurídica e, por meio da consciência coletiva do dever individual e respeito mútuo, atinge-se uma convivência humana sem diferenças geradoras de conflitos. É o dialogo e a conduta assertiva, ensinados desde os primeiros passos e em todos os cantos, que têm o condão de conduzir a humanidade ao equilíbrio da vida harmoniosa.
A contenciosidade cede lugar à sintonia de objetivos e os rumos da beligerância podem ser abandonados para dar lugar à Justiça Doce, que respeita a diversidade em detrimento da adversidade. Descortina-se, dessa forma, uma nova estrada que todos podem construir, na busca do abrandamento dos conflitos existenciais e sociais, com a utilização do verdadeiro instrumento e agente da transformação - o diálogo conduzido pelo mediador, negociador ou conciliador -, no lugar da sentença que corta a carne viva.
Nancy Andrighi é Ministra do Superior Tribunal de Justiça.
Gláucia Falsarella Foley é Juíza Coordenadora do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do DF.
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