Artigos
Reprodução assistida após a morte e o direito de herança
Em 1984, na França, a jovem Corine Richard se apaixonou por Alain Parpalaix. O varão descobriu estar com câncer nos testículos e, no intuito de poder ter um filho com a mulher amada, depositou num banco de sêmen seu material genético para que após as sessões de quimioterapia pudesse usá-lo para gerar a almejada prole.
Como previsto, a doença não só o deixou estéril, como, após alguns dias do casamento, veio a fatalizá-lo. Negado pelo banco de sêmen, Corine Richard buscou a autorização judicial para cumprir a vontade de seu falecido esposo.
O banco alegava que não havia um acordo de entrega do material genético a outra pessoa, senão ao falecido, e, como na França não havia legislação que autorizava inseminação artificial post mortem, foi necessário buscar a tutela do Estado para preenchimento deste vácuo legislativo.
Depois de muita batalha, o tribunal francês de Créteil condenou o banco de sêmen na entrega do material para um médico designado pela viúva. Infelizmente, pela morosidade da ação, a inseminação artificial não foi realizada, pois, os espermatozóides não estavam mais próprios à fecundação.
Após este caso, diversos países começaram a discutir sobre o destino do material coletado, principalmente, após a morte do doador, inclusive no Brasil. Ocorre que o rumo do debate em nosso país tomou outra proporção após o código de 2002 por contradições sócio-jurídicas existentes.
Não é novidade que a legislação encontra-se em descompasso com a realidade, tampouco que há conflitos entre normas jurídicas. O atual código civil não escapou em nenhum desses casos, pois, além de ficar aquém das necessidades sociais em vários aspectos, possui profundas contradições entre seus institutos e ante outras normas, principalmente em relação a Carta Magna.
A Constituição arrola como um dos direitos fundamentais do ser humano:
Art. 5º. [...]
XXX - é garantido o direito de herança;
O Código Civil, tutelando o assunto, informa que:
Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
Acontece que pelos métodos atuais de reprodução assistida, sabe-se possível promover a inseminação mesmo após a morte do doador e tal possibilidade não fica adstrita apenas ao campo científico, foi prevista como possibilidade pelo próprio legislador civilista (embora sem mais aprofundamentos) no disposto:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...]
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
Se a legislação civil, no Direito de Família, prevê a reprodução assistida post mortem, e em alguns artigos a frente, no Direito das Sucessões vincula o fator "já concebido" como determinante para a capacidade sucessória, surge uma lacuna legislativa ante ao caso concreto, onde o filho concebido após a morte se vê tolhido do direito constitucional à herança.
Alguns doutrinadores informam que o celeuma se desfaz com a previsão testamentária, em que o pai, doador do sêmen, por testamento, indica a prole futura, porém, além de não ser uma prática usual, o testamento não é obrigatório no Brasil.
Nos casos, em que não haja testamento, não haverá direito sucessórios aos filhos concebidos por reprodução assistida após a morte do autor da herança? Num Estado Democrático de Direito onde o se apregoa o garantismo constitucional tal possibilidade não pode prosperar, há de se achar meios para tutelar os direitos desta prole.
São questões que o direito deve enfrentar, sem dúvida, e que o fará melhor se houver a disponibilidade para os cruzamentos interdisciplinares, pontuando as eventuais soluções sucessórias a partir da análise acurada do fenômeno biotecnológico inovador, à luz dos demais saberes e das demais ciências, sempre sob o indispensável enfoque constitucional, matizado pelos valores supremos da ordem jurídica, como os ideais de dignidade, de igualdade, de segurança e de justiça.[1]
Há necessidade de adequação do texto frio da lei na flagrante realidade, bem como solução das controvérsias havidas dentro do próprio sistema. Cabe então, a vertente intradogmática,[2]bem como a extradogmática,[3]em buscar a solução destes impasses, sem esperar pela alteração legislativa.
A solução mais acurada, sem dúvida é a adoção das regras hermenêuticas. O jurista Lenio Streck leciona que:
Interpretar é, pois, hermenêutica, e hermenêutica é compreensão, e através dessa compreensão se produz sentido [...] Desse modo, fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito.
Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o direito de soslaio, rompendo-se com um(a) hermé(neu)tica jurídica tradicional-objetificante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência".[4]
Num processo dialético, é indispensável que a verticalização constitucional seja aplicada em relação as normas infraconstitucionais, numa "hermenêutica total"[5], para que assim possa ser dirimidas as situações conflituosas sob o fundamento da Lei Máxima, mesmo que para tanto, tenhamos que superar as dificuldades paradoxais de olharmos o novo com os olhos do velho.
A nossa Carta Magna em seu art. 226, §7º, defende a livre decisão do casal quanto ao planejamento familiar, vedando qualquer minoração deste direito, por quem quer que seja, e, se houver, estará atacando os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.
A vontade do doador (cônjuge ou companheiro) na reprodução assistida sempre será expressa por força da Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, sem que, necessariamente, haja o doador realizado um testamento, por isto, é importante prever uma solução para o caso concreto de haver material genético para reprodução assistida sem testamento indicando a prole futura.
À luz do que já fora explanado, havendo clara vontade do casal em gerar o fruto deste amor não pode haver restrição sucessória alguma, quando no viés parental a lei tutela esta prática biotecnológica.
Independente de ter havido ou não testamento, sendo detectada no inventário a possibilidade de ser utilizado material genético do autor da herança (já que sua vontade ficara registrada no banco de sêmen por força da resolução já informada), no intuito de evitar futuro litígio ou prejuízo ao direito constitucional de herança, há de ser reservados os bens desta prole eventual sob pena de ao ser realizado o procedimento, vier o herdeiro nascido depois, pleitear, por petição de herança, seu quinhão hereditário, como se fosse um filho reconhecido por posterior ação de investigação de paternidade.[6]
--------------------------------------------------------------------------------
[1] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. 22.04.07. Fonte: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=290.
[2] São os operadores que utilizam a via judicial ou interpretativa para a resolução do conflito.
[3] Referente a linha que necessita da intervenção legislativa.
14 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 198 e 227.
[5] Refere-se a uma outra mensagem de hermenêutica, onde não é preciso ativar (ou esperar que seja ativado) o motor incessante (e ineficaz) da produção frenética de leis, decretos, medidas provisórias, entre outras. Os textos normativos em consonância com a Constituição, já dão subsídios para inumeráveis casos concretos. In SEBOYA, Camila Maria Oliveira. Hermenêutica total. Revista jurídica consulex. Brasília: Consulex, 31 ago. 2000, p. 16.
[6] CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil. Vol 6: direito das sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 357.
Douglas Phillips Freitas é Coordenador das Comissões do IBDFAM/SC, advogado, doutorando em direito e especialista em psicopedagogia. Professor de graduação e pós-graduação pelo CESUSC, IES/FASC, VOXLEGEM e autor de diversos livros pela OAB, VOXLEGEM e CONCEITO.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM