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A Lei Maria da Penha e a União Homoafetiva
1. INTRODUÇÃO
Breve histórico - A conhecida biofarmacêutica Maria da Penha Maia, cuja luta perdurou cerca de 20 anos para ver seu agressor condenado, acabou se transformando num símbolo nacional contra a violência doméstica, problema tão conhecido e vivenciado na nossa sociedade.
Em 1983, o marido de Maria da Penha Maia, o professor universitário Marco Antonio Herredia, tentou assassina-la duas vezes. Na primeira vez, efetuou um disparo contra a mesma, deixando-a paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la. À época, ela tinha 38 anos e mãe de três filhas, com idades entre 2 e 6 anos.
A fase investigativa começou em junho do mesmo ano, mas a denúncia somente foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 1984. Oito anos depois, Marco Antonio foi condenado a oito anos de prisão, mas continuou a usar de recursos jurídicos no afã de protelar o cumprimento de sua pena.
Ante a sua notoriedade, chamada a atenção internacional acerca da sociedade violenta em que vivemos, o caso singular culminou na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que, pela primeira vez, acatou a denúncia de um crime de violência doméstica. Marco Antônio Herredia foi preso em 28 de outubro de 2002 e cumpriu apenas dois anos de prisão. Hoje, está em liberdade.
Após todo o fato, a Sra. Maria da Penha Maia dedicou-se na atuação de movimentos sociais contra "violência" e "impunidade" e atualmente é Coordenadora de Estudos, Pesquisas e Publicações da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV) no seu estado de origem, o Ceará.
Ela comemorou a aprovação da lei de violência doméstica e familiar que carrega o seu nome, afirmando que a sociedade já há tempo aguardava uma lei cuja natureza fosse dar proteção à parte mais frágil da sociedade, asseverando ainda que a mulher não pode conviver com violência dentro de casa, devendo denunciar a partir da primeira agressão, sob pena de terminar em assassinato.
O projeto inicial foi elaborado por um grupo interministerial cujo anteprojeto surgiu de organizações não governamentais. Em novembro de 2004 o Governo enviou o projeto ao Congresso, onde se transformou em projeto de lei de conversão 37/2006, aprovado e sancionado em 07 de agosto de 2006, incorporada na Lei n° 11.340, que pune a violência doméstica e familiar.
2. ASPECTOS CONTROVERTIDOS
Avanços Sociais- É inegável o avanço de mentalidade dessa lei que, fruto de sofrimento de uma só mulher, reflete um problema que há muito incomoda a sociedade brasileira: A tolerância da violência doméstica contra a mulher como um todo. Essa violência não se resume tão somente à esposa propriamente dita, mas à companheira, à filha, à mulher em geral, independente de sua condição social, cultural, idade ou orientação sexual.
Diga-se de passagem, a Lei Maria da Penha, alinhada com a Constituição Federal Brasileira, Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, além de alterar os Códigos de Processo Penal, Penal e a Lei de Execução Penal, inovou de certa forma o conceito legal de família no Brasil.
É de se notar que, não obstante a inexistência de disciplinamento específico no que tange à união de pessoas do mesmo sexo na legislação brasileira, a doutrina e a jurisprudência[1][2] pátrias, por seu turno, já vinham admitindo a união homoafetiva com forma de normalizar o estado de igualdade entre pessoas do mesmo sexo perante as lides patrimoniais, bem como de evitar discriminações de natureza sexual. Ou seja, a união de pessoas compostas do mesmo sexo, desde que possua os requisitos de uma união estável, já vem merecendo a atenção dos nossos Tribunais para regularizar uma situação há muito desvantajosa para quem muitas vezes convivia de forma homossexual com um parceiro, mas ao final da vida, via o patrimônio muitas vezes construído com esforço mútuo, escapar-lhe as mãos haja vista a taxatividade fria da legislação substantiva civil. Isso porque o Código Civil Brasileiro, mesmo o Novo Código de 2002 não tratou especificamente da união afetiva estabelecida entre homossexuais.
Veja-se que a nossa legislação substantiva civil, mesmo com o advento do Novo Código Civil de 2002, permanece ainda por demais conservadora e fortemente arraigada a jum conceito familiar antigo em que predomina a divergência de sexos com requisito fundamental para a caracterização do casamento. Para uma observação meramente exemplificativa, basta olharmos a redação dos arts. 1517; 1535; 1565; 1567, do Código Civil, que trazem toda uma carga ideológica e legalista, trazendo os pressupostos para a união entre sexos diferentes, silenciando assim a discussão acerca da união homoafetiva, excluindo-a de sua previsão legal.
Ora, vale observar que pela simples definição conceitual de casamento de catedráticos como Modestino, Lafayette e Washington de Barros, além de ressaltarem estes a existência da diversidade de sexos, não cogitam da possibilidade de divórcio, fato este perfeitamente aceitável haja vista o momento histórico em que cada uma foi elaborada. Maria Helena Diniz, por sua vez, afirma que "O casamento possui o pressuposto fático da diversidade de sexos dos contraentes, e que se duas pessoas do mesmo sexo convolarem núpcias, ter-se-á um "casamento inexistente", portanto uma farsa.
Pois bem. Com o surgimento da Lei Maria da Penha, algo mudou no cenário legislativo nacional. E mudou de forma rápida, responsável e consciente, pois a festejada lei veio a reconhecer efetivamente uma situação fática já há muito existente e não raramente marginalizada na sociedade brasileira, qual seja, a união afetiva e duradoura de pessoas do mesmo sexo. Não é à toa que o assunto já vem sendo ventilado de forma difundida através da mídia televisiva, com novelas nacionais, filmes americanos e europeus, alavancando a discussão, sobretudo no o lar dos brasileiros, de forma clara, ética e realista.
E é Nesse sentido que a lei Maria da Penha, no seu art. 5º, preencheu o fosso legislativo concernente ao assunto da união de pessoas do mesmo sexo, senão vejamos:
"Art. 5º - Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - omissis
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual." (grifou-se)
Pode-se tranquilamente observar, e já clarificado pela supracitada Lei, que a situação legalmente englobada como âmbito familiar, por constituição de vontade expressa, reflete a perfeita aceitação interpretativa da inclusão de casais homossexuais, em especial casais formados por mulheres. Isso porque a "vontade expressa" aqui prevista traz toda uma carga valorativa de cunho informal, fugindo às regras da família tradicional ora composta por pessoas que se unem mediante os pressupostos oficiais do casamento, mais especificamente a distinção de sexos.
E que outra união humana afetiva poderia ser consolidada legalmente tão somente pela "vontade expressa"? Ora, desconsiderar tal interpretação, por outro lado, seria por demais ilógico e juridicamente incongruente quando, por exemplo, uma mulher sofresse de sua parceira uma violência física ou de outra natureza (psicológica, sexual, moral ou patrimonial) e não pudesse ser protegida e atendida nos preceitos da Lei Maria da Penha. Sabemos que no Direito nenhuma interpretação pode ser levada ao absurdo. Pensar de tal forma seria no mínimo discriminar, rejeitar, marginalizar, negar a uma mulher a proteção legal instituída pelo simples fato de não considera-la casada nos termo formais da legislação civilista. Ainda, tal tratamento seria em primeiro plano contrário ao princípio fundamental consagrado na Constitucional Federal, que é o da Dignidade da Pessoa Humana (CF. art. 1º, III). Em segundo, estar-se-ia afrontando também um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, IV). Como se não bastasse, haveria ainda todo o desrespeito ao art. 5º da Constituição Federal, quando trata dos direitos e garantias fundamentais, asseverando expressamente que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Por assim dizer, conclui-se que a Mens legislatoris impingida na clareza inciso III, do art. 5º da Lei Maria da Penha, quando fala em "qualquer relação íntima de afeto", bem como também o seu parágrafo único, na sua redação - "as relações pessoais enumeradas neste artigo independem de orientação sexual"- pretenderam afastar qualquer interpretação divergente da que trata de incluir na proteção jurídica do dispositivo legal em comento a relação homoafetiva.
Em verdade, os dispositivos legais aqui citados e a sua interpretação bem trazida pela Lei Maria da Penha, estão em perfeito alinhamento com a filosofia protetiva do art. 226, caput, e seu parágrafo 8º, da CF, quando tratam do âmbito familiar a que se destinam. A família, afinal, é a base da sociedade, possuindo especial proteção do Estado, devendo este cuidar e criar mecanismos diligentes para a coibição da violência no âmbito de suas relações (violência doméstica).
A família, hoje, como base da sociedade, mais do que nunca deve ser entendida como um "núcleo de afetividade", não se confundindo com a mera e restrita união de pessoas do mesmo sexo. Consequentemente, a interpretação legal da Lei Maria da Penha, transmudada agora sob o prisma da analogia, estende-se ao núcleo afetivo de casais do mesmo sexo formados por pares masculinos.
Aliás, Paulo Luiz Netto Lobo (2002:95), em sede de entendimento de núcleo familiar afetivo, afirma que a enumeração Constitucional é meramente exemplificativa, não permitindo assim a rejeição de qualquer entidade que possua os requisitos da afetividade, ostensividade e estabilidade. De fato, por mais abrangente que seja o rol constitucional, este não é exauriente uma vez que não logrou enumerar todas as composições familiares contemporâneos, formada a partir das relações afetivas. Dessa forma, as pessoas do mesmo sexo, que possuam uma relação estável e lastreada no afeto humano, devem merecer a efetiva proteção da Lei e o reconhecimento Constitucional devido.
É com foco ainda nessa nova mentalidade trazida pela Lei n. 11.340/06, que houve também uma inovação, e porque não dizer, um verdadeiro marco na proteção feminina, tanto na questão das relações homoafetivas, com na já repisada regra fundamental de regência das relações familiares quando se faz referência ao ao direito da mulher ao livre e pleno planejamento familiar. O art. 7º, inciso III da Lei Maria da Penha, ao ampliar magistralmente o conceito de violência sexual, traz na sua extensa redação a figura do impedimento ao método contraceptivo escolhido pela mulher. Vejamos:
Art. 7º - São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - omissis
II - omissis
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça coação ou uso da força, que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto, ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
Pois bem. O planejamento familiar, como forma igualitária de regência a relação familiar, funda-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Isso porque o planejamento familiar deve ser de livre decisão do casal, competindo ao Estado tão somente propiciar recursos educacionais e científicos par ao exercício desse direito (seja ele de forma positiva ou negativa), vedada qualquer forma coercitiva oficial, ou de natureza privada.
A Lei Maria da Penha, no que tange à matéria de violência sexual, abordou um tema de fundamental importância, em especial para as mulheres de baixa renda, que é o direito, dentro da filosofia da igualdade do casal nas relações familiares, de exercer o controle efetivo de seu próprio poder de concepção. Ou seja, a mulher, assegura a Lei Maria da Penha, agora, sob a batuta de uma lei ordinária, pode e deve denunciar como ato de violência sexual a conduta por parte de seu companheiro de constrangê-la a deixar de usar qualquer método contraceptivo.
Com isso, ganha a mulher o poder de decidir quando e quantos filhos poderá gerar, ganha a família, que será consequentemente mais ou menos numerosa a partir de um planejamento livremente orientado. E ganha também a sociedade, que possuirá indivíduos mais saudáveis do ponto de vista físico e psicológico, pois quantas crianças sabemos que nascem à revelia da vontade das mães que, naquele momento, não dispõem de condições mínimas de alimentação, tratamento de saúde adequado (pré-natal), condições psicológicas mínimas de gerar e de cuidar futuramente de um filho que não fora adequadamente planejado.
Acrescente-se à observância da festejada Lei, acerca do art. 9º, que trata da "assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar", mais precisamente no seu parágrafo terceiro, quando não deixa dúvidas quanto ao intuito protetivo da novel legislação no tema do planejamento familiar. Tal dispositivo incluiu ainda como política pública e urgente proteção à mulher, a sua assistência em situação de violência doméstica (violência sexual) o total acesso aos benefícios científicos e tecnológicos dos serviços de contracepção de emergência, profilaxia das DSTs (Doenças sexualmente transmissíveis) e AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), bem como outros procedimentos médicos necessários. Certamente que um dos métodos bastante conhecidos e acessíveis para uma contracepção de emergência é o conhecido medicamento, popularmente nominado de "pílula do dia seguinte", cujo efeito contraceptivo é mais forte que o anticoncepcional convencional, ingerido regularmente em pequenas doses diárias pela mulher. A lei, por sua vez, não especifica qual ou quais outro(s) procedimento(s)s médico(s) cabíveis em casos de violência sexual praticado contra a mulher. O importante, todavia, é o reconhecimento da preocupação do legislador quanto à urgência e imediatidade do atendimento ambulatorial em casos dessa natureza, devendo o Estado dispor de todos os meios e benefícios necessários ao conforto, segurança e à liberdade sexual da vítima.
É importante não olvidar também, e, diga-se de passagem, todos conhecemos bem a nossa sofrida realidade, com casos gritantes que ocorrem nas cidades do interior do nosso Estado e País, em especial nas famílias sem qualquer assistência econômica, espiritual, e muitas vezes carentes de orientação moral, quando os homens (maridos, companheiros, namorados etc.), muitas vezes analfabetos e impregnados de uma sub-cultura machista e distorcida, forçam as suas mulheres a procriarem até a exaustão, cerceando as mesmas de se desenvolverem como pessoas plenas e sociais, aptas ao estudo e ao trabalho. Quem já não ouviu de mulheres que sofrem com os seus maridos porque os mesmos as forçam à maternidade somente para as prenderem dentro de casa, impedindo aquelas de continuarem os seus estudos, prejudicando dessa forma o bem desenvolver da própria família?
O ato de impedir a mulher ao uso de métodos contraceptivos necessários a um bom planejamento familiar, agora alçado à forma de violência sexual, revelou o mérito da Lei Maria da Penha na preocupação social, ambiental e no equilíbrio familiar, avivando também as responsabilidades das instituições públicas competentes quanto ao oferecimento de meios e métodos contraceptivos, necessárias ao bom ordenamento e ao equilíbrio das gerações futuras. É preciso, não obstante o mérito da Lei, que se criem Órgãos capazes de orientar os setores femininos mais carentes, em especial nas comunidades mais pobres das cidades e do campo, no sentido de fazer com que valha de forma efetiva mais esse direito de liberdade sexual. Caso contrário, transforma-se em letra morta e imprestável ao bom desenvolvimento da sociedade.
Conclui-se ainda que a Lei Maria da Penha, longe de pacificar entendimentos a respeito de temas tão abrangentes no âmbito doméstico e familiar em geral, adveio acompanhada de toda uma valoração filosófica e cultural, possuindo o mérito de ampliar sobremaneira os horizontes legislativos tanto na esfera civil, com os seus novos conceitos e interpretações, aplicações de medidas protetivas etc. (restrição ou suspensão de visitas a filhos, afastamento da ofendida do lar, separação de corpos etc) como na seara penal. É forçoso reconhecer que no patamar dos crimes contra a mulher, categoria até então inexistente no Código Penal como figura singular, pode-se agora quantificar a violência em 05 (cinco) categorias: Violência física, constiuindo-se esta qualquer conduta que cause ofensa à integridade física da mulher, independente da gravidade das lesões. Isso por si só criou uma novas figuras penais, retratadas nos §§9º e 11º , do art. 129 do Código Penal; a Violência Psicológica, entendida agora como qualquer conduta que cause dano emocional, incluindo-se ai a auto-estima da mulher, dano ao seu pleno desenvolvimento, degradação de suas crenças, comportamentos e decisões, mediante ameaças, constrangimento ou humilhação de sua pessoa, manipulação ou controle psicológico de qualquer espécie, tais como isolamento, vigilância, perseguição, chantagem, o ainda, insulto, ridicularização, exploração, limitação ao direito de ir e vir, bem como prejuízo à saúde psicológica ou de auto-determinação da mulher. Tal conduta delituosa ; a Violência sexual, já discutida nesse breve ensaio, ressaltando-se, agora, com matizes de diferentes medidas protetivas, inclusive emergenciais, necessárias à reparação do ato ilícito como um todo, na condição de crime sexual propriamente dito; a Violência patrimonial, na condição de qualquer conduta que configure a privação dos bens, valores, objetos de trabalho e pessoais da vítima mulher, constrangendo-a a sofrer pela carência do que materialmente lhe for de direito; e por fim a Violência moral, talvez como um dos maiores avanços conceituais dessa lei na parte criminal (juntamente com as violências psicológica e sexual), que garante proteção à mulher contra qualquer delito que diga respeito aos conhecidos crimes contra a honra já tipificados nos arts. 138, 139 e 140, do CP, reiterados expressamente no art. 7º, V da lei da violência doméstica e familiar contra a mulher.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclusões finais - Sem se prestar a modificar padrões comportamentais ou querer desenraizar a base da sociedade, que é a família constituída conforme todos conhecem, a Lei Maria da Penha, certamente surge como um marco inovador do conceito familiar, pois acresce, soma, aglutina à esfera do convívio humano uma situação fática, real, já existente, que é a união de pessoas do mesmo sexo.
Quando a lei fala em violência doméstica familiar contra a mulher, assunto antes envolto pela manta da impunidade de uma sociedade ainda machista e preconceituosa, traz juntamente a ampliação do conceito valorativo de família, considerando singularmente a afetividade humana como padrão de regência próprio das relações e entrelaçamentos na intrínseca esfera da entidade familiar como um todo. Em sendo assim, essa interpretação, acreditamos estar em harmoniosa consonância com a previsão constitucional de proteção à família nos termos do art. 226 da Constituição Federal "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Hodiernamente, pois, a família deve ser entendida como um núcleo de afetividade. Logo, o afeto não se restringir às uniões entre pessoas do sexo oposto.
Não há mais lugar na nossa sociedade contemporânea para violência de qualquer tipo, seja física, sexual, moral, psicológica ou patrimonial contra a mulher, seja qual for a sua orientação sexual, constituindo qualquer conduta desse tipo afronta clara e violação aos direitos humanos há muito adotada e proclamada pela Resolução n. 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data, reconhecendo a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da Paz no mundo.
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[1] EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CASAL HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO. A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado para reconhecimento da existência de união estável entre parceria homoerótica, desde que afirmados e provados os pressupostos próprios daquela entidade familiar. A sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em abandonar os nichos da segregação e repúdio, em busca da normalização de seu estado e igualdade às parelhas matrimoniadas. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Embargos Infringentes Nº 70011120573, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 10/06/2005). Disponível in http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php. Acesso em 25 de agos. 2006.
[2] "Ementa: Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das Varas de Família (grifos nossos), a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido. (Agravo de Instrumento nº 599075496, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Breno Moreira Mussi).
"Ementa: Homossexuais. União Estável. Possibilidade jurídica do pedido. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais esculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida.. (9 FL S) (Apelação Cível Nº 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des José Ataídes Siqueira Trindade).
"Ementa: Agravo de Instrumento. O relacionamento homossexual não está amparado pela Lei 8971 de 21 de dezembro de 1994, e Lei 9278, de 10 de maio de 1996, o que impede a concessão de alimentos para uma das partes, pois o envolvimento amoroso de duas mulheres não se constitui em união estável, e semelhante convivência traduz uma sociedade de fato. Voto vencido. (21 fls) (Agravo de Instrumento nº 70000535542, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Antônio Carlos Stangler Pereira).
Ricardo José de Medeiros e Silva é Promotor de Justiça no Estado da Paraíba
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