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Os fundamentos do Direito das Sucessões
Oriunda do termo latino successio, a palavra sucessão traz a noção de que alguém assume o lugar de outra pessoa, passando a responder pelos seus bens/direitos/obrigações anteriormente contraídos. Sucessão, portanto, nada mais é do que transmissão de direitos.
Para uma melhor compreensão, podemos dizer que a palavra sucessão deve ser vista sob dois prismas: um subjetivo e outro objetivo. Pelo aspecto subjetivo, trata-se do direito de alguém adquirir bens e obrigações do falecido, ao passo que, sob o aspecto objetivo, refere-se às leis que regem a transferência integral dos bens e das obrigações que compõem o patrimônio do falecido.
A sucessão é uma relação jurídica complexa, com vários elementos ou condições, que são também fases pelas quais deve passar até atingir a sua finalidade: a) morte do autor da herança ou abertura da sucessão; b) devolução da herança ou vocação hereditária; c) sobrevivência e idoneidade do sucessor; d) aquisição ou aceitação da herança. (CUNHA GONÇALVES, p. 590). Portanto, quando ocorre a substituição pelos legitimados a tal, a relação jurídica primária não sofre nenhum prejuízo, tendo em vista a permanência do objeto da relação em seu estado inicial, sendo alterado, apenas, um dos pólos da relação.
A mencionada alteração se procede com a integralidade dos bens/direitos/obrigações (denominada sucessão a título universal) ou de forma restrita, sendo determinados os direitos/obrigações que serão transmitidos a quem de direito (denominada sucessão a título singular).
As referidas sucessões operam-se de duas formas: durante a vida do titular (sucessão inter vivos) ou em decorrência da morte do titular (sucessão causa mortis); abrangendo, esta última, a totalidade do espólio.
O Direito das Sucessões é enraizado nas demais áreas de nosso Direito Civil, possuindo vínculo com o Direito das Obrigações, Direito das Coisas e Direito de Família. Ainda que esteja posto como um direito privado, não pairam dúvidas acerca de sua característica pública, assim como o Direito de Família, vez que dita regras e mecanismos de todo um sistema de determinada nação.
Sob nossa ótica, a matéria tem sua abrangência facilmente detectável diante da própria ordem dos Livros do Código Civil (Parte Geral e Parte Especial - Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Família e Direito das Sucessões), haja vista a facilidade de visualizar toda a vida do ser humano dessa maneira: o indivíduo nasce, passa a ser sujeito de direitos e obrigações, adquire bens, constitui família e falece, deixando os bens/direitos/obrigações adquiridos para seus herdeiros.
Espelhado no civilismo francês, nosso ordenamento adotou o denominado direito de saisine, pelo qual, morto o titular dos bens/direitos/obrigações, transmite-se, imediatamente, sua posse aos herdeiros.
Ramo integrante da parte especial do Direito Civil, o Direito das Sucessões trata da alocação de todos os bens e obrigações contraídas pelo de cujus, cumprindo-nos ressaltar que tal ramo do Direito abriga apenas as relações entre pessoas físicas, vez que apenas estas podem exprimir suas disposições de última vontade.
Direito hereditário ou das sucessões, como visto, é o complexo dos princípios segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de alguém que deixou de existir. Essa transmissão constitui a sucessão; o patrimônio transmitido denomina-se herança; e quem a recebe se diz herdeiro. (BEVILAQUA, 1899, p. 12)
As novas tendências e modificações sofridas pelo Direito de Família exerceram forte influência sobre o Direito das Sucessões, o que pode acarretar mudanças na ordem dos vocacionados, pois o reconhecimento do afeto como criador de vínculo familiar trará uma nova visão no campo da vocação hereditária.
O Direito das Sucessões teve vários fundamentos. Passaremos, então, a discorrer sobre as mais importantes.
Fundamento de ordem socialista:
No início do Século XX, a teoria socialista de Estado lançou a idéia de que a herança poderia representar um mal, iniciando-se, desta feita, uma verdadeira tentativa de impugná-la.
Tal impugnação teve início antes mesmo dos ideais socialistas serem tomados como suporte/sustentáculo pelos revolucionários que adotaram o regime comunista em determinados Estados, de onde extraímos que a doutrina da época pregava um verdadeiro repúdio à propriedade.
Para aqueles que defendiam a legalidade da propriedade privada e, não obstante, sua transmissão pelo evento morte, a sucessão estimulava, de forma acirrada, a desigualdade social e a pobreza, trazendo como conseqüência a injustiça social. No mesmo sentido, entendiam, ainda, que o direito das sucessões (leia-se transmissão da propriedade mortis causa) era inconveniente, pois estimulava o comodismo dos sucessores daqueles que eram afortunados (aspecto financeiro e patrimonial), gerando diminuição da produção do Estado, vez que sua mão de obra sofreria uma considerável redução, devendo, portanto, ser este o único sucessor dos bens deixados pelo de cujus.
Os programas de Marx e Engels a consideravam como um privilégio protetor da burguesia: é a sociedade a única que tem direito a receber os bens dos indivíduos, como recompensa aos serviços prestados por ela. (LACRUZ, 1961, p. 14). [...] a sucessão causa mortis encontra envolventes opositores, destacando-se em uma linha os socialistas, contrários à propriedade privada especialmente sobre os bens de produção, que vêem nela um incentivo às injustiças e desigualdades entre os homens, concentrando riquezas nas mãos de poucos, além de prestigiar a indolência e preguiça, nocivas ao desenvolvimento produtivo e econômico indispensáveis à sociedade [...]. (CAHALI, 2002, p. 26).
As escolas socialistas ou comunistas dirigiram vivas críticas à esta concepção. Quando não combatem o próprio princípio direito de propriedade, negam que este direito confere ao seu titular a faculdade de dispor dos seus bens para o tempo que seguirá a sua morte: se a relação que une o assunto e o objeto de um direito, não cessa necessariamente à morte do sujeito, porque cessar com o desaparecimento do objeto? As teses socialistas conduzem, assim, pelo menos no plano teórico, a negar a possibilidade da herança, e, por conseguinte, atribuir ao Estado os bens que compõem o patrimônio do de cujus: o Estado o toma em virtude de um direito real, fundado sobre os interesses da comunidade ao prejuízo da qual estes bens foram adquiridos.(Mazeaud et Mazeaud, 1963, p. 534); (TRABUCCHI, 1999, p. 826).
Ausência de bases concretas para sustentar tal posição num passado recente a idéia de Estado perfeito, nada mais era que pura utopia.
Na Rússia, o direito sucessório foi extirpado da legislação civil por força de um decreto baixado em abril de 1918, independente de ser sucessão legal ou sucessão testamentária. O governo russo determinou quantias máximas e mínimas para a sucessão, vez que o referido decreto não teve aplicação sistemática, tendo, inclusive, flexibilizado a sucessão aberta no mesmo grupo familiar, que passaria a ser regida por lei anterior à Revolução.
Com a vitória do bolchevismo, na Rússia, e derrota do menchevismo, com seu cunho acentuadamente socialista um dos primeiros atos do governo revolucionário foi a abolição da herança. Talvez tenha sido esta a causa principal do desestímulo da atividade laborativa do povo russo, a par da absorção, pelo Estado, da maior parte da produção agrícola-pastoril que se seguiu ao ano de 1918, quando a Rússia abarrotou o mercado do mundo com víveres de toda a espécie. Foi uma explosão emocional de liberdade ilusória e privatização de riqueza que durou pouco. No ano seguinte (1919), a produção caiu verticalmente, ante o desestímulo que dominou a classe trabalhadora. (MIRANDA, 1986, p. 612).
A posição adotada pelo outrora direito soviético nos traz a idéia de que não podemos ignorar o direito sucessório, pois clara é a sua ligação íntima com a propriedade particular, haja vista que esta é complementada por aquele.
Não há por que ignorar o direito à herança, pois, mesmo na antiga URSS, o comunismo baixou a guarda diante de uma nada animadora vivência. Como bem disse Carlos Maximiliano (1942, p. 33), "a realidade é a mais implacável arrasadora das utopias".
Fundamento de ordem patrimonial e familiar:
O segundo fundamento do Direito das Sucessões é o que defende a idéia de mantença do patrimônio no mesmo grupo familiar.
Como visto, a família sofria as influências de elementos morais e religiosos, sendo relevante para configurar e sustentar a idéia de transmissão da propriedade dos pais para os filhos, quando a propriedade passou a ter sua transmissão como verdadeira praxe e a ser vista como costume social, já que as mais remotas civilizações reconheciam o direito de herança dos filhos.
A propriedade corporificou, assim, a idéia de sucessão hereditária como um poderoso fator da perpetuidade da família, pelo cumprimento do culto dos antepassados, traduzido nas cerimônias e nos sacrifícios em honra dos mortos, de modo que se não pudesse adquirir a propriedade sem o culto, nem este sem aquela. (ITABAIANA DE OLIVEIRA, 1952, p. 47).
Na origem da propriedade está afinal o trabalho, um esforço maior ou menor, que a legitima e a torna conforme com o direito natural e mesmo uma imposição sua. (TELLES, 1991, p. 263). Desta lição nos vem a idéia de que não haveria por que uma determinada família trabalhar para constituir um patrimônio e depois não deixá-los a seus sucessores.
Decerto, a transmissão dos bens pelo evento mortis se manterá como um incentivo à economia e ao labor, não havendo razão para adotar, em algum momento, a teoria defendida pelos soviéticos.
O fundamento da sucessão por ordem patrimonial familiar se dá pelo facto de a propriedade continuar a ser, ainda hoje, largamente familiar: usufruída (quando não constituída) pelo conjunto de familiares mais próximos; que têm, assim, uma expectativa de recebê-la por morte do seu titular (formal) (CAMPOS, 1997, p. 446).
A herança cumpre de certa forma, uma função familiar, vez que pode ser entendida como uma modalidade de execução de um dever dos pais de garantir, materialmente, sua prole.
A idéia mais antiga que explica o direito das sucessões é que a propriedade tem um caráter familiar. O chefe da família exerce os direitos da comunidade familiar. À sua morte, é substituído por um dos membros da família, que se torna o chefe. O herdeiro toma o lugar do defunto, assegurando o culto privado e manutenção do grupo. (PLANIOL, 1946, p. 473)
"A matéria da sucessão causa mortis está estritamente aos temas da propriedade e, [...], da família. É certo que o problema da continuidade das relações jurídicas, que é o que se põe como o essencial para solucionar quando ocorre o falecimento de uma pessoa, em termos abstratos pode ser solucionado sem a referencia à propriedade ou à família: poderia se dispor a transferência dos bens vacantes à coletividade, que poderia reter-los como tal, ou deferi-los à outros particulares, sem nenhuma relação de parentesco com aquele que determinou a sucessão. Mas tal solução não corresponde como a tradição histórica, que é bem outra, e com seguranças é amparada por atuais ditames constitucionais, [...]. (LÓPEZ Y LÓPEZ, 1999, pp. 28-29)
A teoria socialista é utópica e insensata, pois visava, tão somente, acabar com as heranças, o que resultaria numa fonte de inúmeras injustiças, contrárias ao interesse social.
Fundamento de ordem econômica e social:
Defendido pela doutrina francesa de Michel Grimaldi (1989, pp.25-26), o fundamento econômico reveste-se de grande interesse social, distinguido-se dos demais por sua natureza patrimonial, vez que a sucessão privada encoraja o espírito de empreendimento e favorece o progresso econômico.
Certo é que não se pode imprimir a este fundamento outro caráter senão o que tenha fundo econômico. O instituto da sucessão é o complemento necessário do direito de propriedade, conjugado, ou não, com o direito de família. Este último é invocado pela lei, ora para conter em justos limites o exercício do direito de testar, ora para suprir a ausência de vontade do proprietário, de harmonia com os seus sentimentos e instintos naturais e normais. Propriedade que se extingue com a morte do seu titular e não se transmite ao seu sucessor, por sua vontade expressa ou presumida pela lei, não é propriedade; é usufruto vitalício. (CUNHA GONÇALVES, p. 601).
Percebe-se, assim, que a finalidade de se manter na família o valor de determinada propriedade nada mais é do que evitar que um pai deixe seu filho numa condição financeira prejudicada ou insuficiente para manter sua subsistência ou a de sua família.
A busca pela retenção das riquezas não é novidade. Desde o início de sua história, o direito das sucessões teve traços familiares, políticos e, principalmente, econômicos, traços estes que serviram de base para diversas codificações civis ao longo do tempo e em diversas nações.
[...] a solução adotada pelo legislador civil de manutenção do patrimônio na família do de cujus pode até ser considerada, porém é inegavelmente um meio satisfatório de se permitir aos integrantes da família enlutada de prosseguir com os propósitos para os quais tal patrimônio foi constituído, com a percepção das necessidades dos sucessores. (LISBOA, 2006, p. 426).
Há uma forte e consistente tendência à constitucionalização do direito sucessório. Não pairam dúvidas de que, nos termos do artigo 5º, XXX da CF/88, a herança passou a ter proteção constitucional, devendo atingir a sua finalidade: garantir aos legitimados para suceder o direito de perceber aquilo que lhes é justo.
A ordem social e econômica nos tempos atuais favorece e corrobora tudo aquilo que tratamos até aqui, haja vista que, sem sombra de dúvidas, não se pode negar a existência, ainda que remota, dos fundamentos expostos e de suas influências para chegarmos ao atual contexto.
Referências bibliográficas:
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Thiago Felipe Vargas Simões é sócio do IBDFAM, advogado, especialista em Direito Privado pela Univila/ES, mestre em Direito Civil pela PUC/SP e doutorando em Direito Civil pela PUC/SP. Contato: tfvsimoes@terra.com.br - Home Page: http://www.tfvsimoes.site.adv.br/
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